Olhado de perto ninguém é normal, já toda a gente sabe. O problema é que Mike Leigh olha as suas personagens de tão, tão perto, que todos os poros, os pêlos, as máculas, nódoas e imperfeições são revelados na sua mais despudorada e desprezível nudez moral. Que é cruel, cínica e sarcástica – mas profundamente humana. Ou dir-se-ia mesmo, alterando só o advérbio, angustiosamente humana.
Nestes três filmes editados em DVD pela MIDAS, A Vida é Doce (1990), Nu (1993) e Raparigas de Sucesso (1997), o realizador e encenador britânico exibe o selo Leigh mais radical, perante outros sucessos como Segredos e Mentiras (1996) ou Vera Drake (2004) – com a sua marca sempre identificável, mas um pouco mais aguada e mais condescendente com as fraquezas da condição de se pertencer à espécie humana. Estas três obras são todo um tratado de iniciação ao universo de Mike Leigh (premiadíssimo e nomeadíssimo, vencedor da Palma de Ouro em Cannes): estão lá os vagabundos errantes tão filosóficos quanto andrajosos, as personagens femininas sempre cheias de ambivalências, no limiar da neurose e da euforia forçada; está lá a classe média instruída mas corrompida por tumultos interiores e sórdidos constrangimentos sociais, está lá a humilhação, o grotesco, o suicídio, a “impiedade”.
E também sempre o clima peganhento londrino, as classes sociais esquecidas da era Thatcher e pós–Thatcher e a cidade feita chão de palavras pisadas. “Em Londres”, diz o inesquecível anti-herói, uma espécie de tarado genial, protagonizado por David Thewlis, em Nu, “nunca se consegue estar a menos de nove metros de uma ratazana”. É sempre assim em Leigh: quando se pensa que alguma personagem é desvairada, delirante, praticamente demente, logo a seguir há-de aparecer uma outra que consegue ser ainda mais enlouquecida. E trocam-se-nos as coordenadas. Afinal, os loucos são os outros, somos nós, ou todos… É sobretudo nesta fase da filmografia de Mike Leigh que mais ele explora a particular técnica de trabalho com os actores, de pura improvisação, sem guião prévio, partindo de uma premissa, que, depois, ao longo de semanas, se vai delineando na narrativa e formando as personagens.
As interpretações são sempre tensas e intensas. O seu grupo de actores, que reaparece recorrentemente, transfigura-se de filme para filme, quase ao ponto do irreconhecimento. Foi no teatro que Leigh se iniciou, enquanto dramaturgo e encenador e, aliás, o seu mais incompreendido filme Topsy-Turvy (1999), uma comédia de época, pretendia celebrar o mundo teatral. O teatro também é uma maneira de desnudar a vida real. Mas quando muitos preferem mostrar-nos a maçã, Leigh há-de preferir sempre apresentar-nos a larva.