Duas denúncias ao Ministério Público (MP) apontam para irregularidades na atribuição de centenas de vistos gold a cidadãos turcos desde 2019. Em causa estão suspeitas da utilização de “documentos sem validade” e da “simulação de negócios” imobiliários que serviram para que “os processos fossem ao encontro do que estava previsto na lei”, aponta, à VISÃO, a advogada Isabel M. Alves, que tem vindo a chamar a atenção para este caso. A investigação corre no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa. As denúncias também deram entrada na Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), na altura ainda Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). “O meu interesse é denunciar uma situação que considero ilegal e que lesa os interesses de todos os portugueses. Apesar de identificado um conjunto de irregularidades, temos centenas de cidadãos turcos na posse de vistos gold, elegíveis para requisitarem passaporte português. A situação comprova as falhas que existem nos serviços do SEF/AIMA e a incapacidade que o próprio Estado português tem para corrigir ou resolver um problema que é muito sério”, acrescenta.
Do epicentro da polémica emerge o nome de Abdullah Çoruhlu, cônsul honorário da Turquia em Aveiro, a residir em Portugal há mais de três décadas. Isabel M. Alves acredita que este homem criou um esquema, com vista a “angariar clientes” no seu país natal que estariam interessados nos vistos gold: através da aquisição de imóveis a precisarem de ser reabilitados, condição que permitia baixar o preço exigido pelo Estado português – dos €500 mil para “apenas” €350 mil –, garantia aos requerentes a Autorização de Residência para Atividade de Investimento (ARI), dando-lhes a possibilidade de circular livremente no Espaço de Schengen.
Negócio da Turquia
“Percebi que algumas coisas não podiam estar certas”, diz Isabel M. Alves. A advogada fez duas denúncias ao MP e queixa à AIMA por alegadas irregularidades na obtenção de vistos gold por cidadãos turcos
Em 2016, a Turquia era um caldeirão de tensões políticas e sociais. A viver tranquilamente em Portugal, Abdullah Çoruhlu aproveitou a oportunidade para, através dos vistos gold – que começaram a ser emitidos em 2012, por decisão do governo de Pedro Passos Coelho –, fazer negócio, chegando a criar, em abril desse ano, uma página de Facebook intitulada Portugal Golden Visa, que rapidamente reuniu cerca de nove centenas de seguidores.
No espaço de dois anos, tornou-se representante legal e fiscal em Portugal “de, pelo menos, 60 turcos”, diz, à VISÃO, um antigo parceiro de negócio do cônsul. “[Abdullah Çoruhlu] chegou a ter mais de 200 números fiscais que tinham a sua residência como morada. Cheguei a alertá-lo para o facto de que ainda teria problemas com isso”, conta a mesma fonte. “Os interessados nos vistos [gold] eram cidadãos turcos de classe média-alta, formados, com um pé-de-meia razoável. Perante a situação que se vivia naquele país – em julho de 2016 chegou a haver uma tentativa falhada de golpe de Estado –, estas pessoas queriam assegurar um passaporte que lhes desse mais liberdade e segurança na Europa Ocidental, mais até a pensar no futuro dos filhos do que neles próprios”, explica.
A estratégia era simples: os cidadãos turcos passavam uma procuração a Abdullah Çoruhlu, com a qual este conduzia os processos para a obtenção da autorização de residência em Portugal, atribuída após o investimento na aquisição de imóveis a precisar de reabilitação, situados em Lisboa e no Algarve. De acordo com a lei, o investimento tinha de ser de, pelo menos, €350 mil. “Não houve nenhum ‘esquema’. As casas existiam, foram compradas, as obras foram realizadas, o dinheiro veio, de facto, das contas daqueles que, depois, requeriam os vistos gold. Obviamente, houve um aproveitamento da lei; mas tudo era aparentemente legal”, sublinha esta fonte, que pede anonimato.
Zangam-se as comadres
Durante dois anos, o negócio correu sem percalços. Segundo uma fonte próxima de Abdullah Çoruhlu, o turco lucrava perto de €2 mil por processo (informação que o próprio não confirma). Dezenas de turcos e respetivos familiares diretos terão obtido ARI através deste expediente; tudo parecia correr lindamente.
A coisa só azedou quando surgiram desentendimentos entre a sociedade controlada por este cônsul e uma outra empresa (representada por Isabel M. Alves), contratada pela primeira para reabilitar alguns dos imóveis comprados com dinheiro made in Turquia. O “braço-de-ferro” resultou em dois processos cíveis, que ainda correm nos tribunais e que acabaram por estar na origem das duas denúncias apresentadas ao MP e da queixa ao SEF/AIMA.
“Percebi, à medida que os processos cíveis foram avançado, que algumas coisas não estavam certas: as procurações davam poder a Abdullah Çoruhlu para comprar imóveis, mas não para assinar contratos para a reabilitação dos mesmos, o que, neste caso, era obrigatório; depois, há a questão dos prazos das procurações (que terminavam a 31 de dezembro de 2018), com vários vistos gold a serem pedidos apenas a partir de 2019 e 2020. Só posso supor que a documentação estava inválida. Pergunto: o SEF/AIMA não detetou estas falhas? Para mais, foi ainda identificado o que parece ser um negócio simulado, entre uma outra sociedade, detida por sócios também de nacionalidade turca, e dois cidadãos turcos, que assinaram a escritura de compra e venda dos imóveis (por €580 mil), mas não transferiram a verba do negócio até essa data. Podemos estar perante um acordo para que estas pessoas pudessem pedir um visto gold, sem entrada de capitais no território nacional, como previsto na lei”, enumera Isabel M. Alves. “Hoje, conhecemos estas situações. Passados cinco anos, os cidadãos turcos estão habilitados a pedir a nacionalidade portuguesa, e tudo graças a documentos que, logo à partida, tinham de ter sido considerados inválidos pelas entidades competentes”, lamenta a advogada.
Turcos tranquilos
Contactado pela VISÃO, Abdullah Çoruhlu manifestou surpresa em relação às denúncias apresentadas. “É a primeira vez que ouço isto”, garante. O cônsul honorário da Turquia em Aveiro admitiu que “foi o procurador de pessoas que conhecia” no âmbito de processos para a obtenção de ARI, mas realça que “tudo foi feito dentro da legalidade, sem quaisquer problemas”. Sobre a investigação que corre no DIAP e a queixa apresentada na AIMA, Abdullah Çoruhlu manifesta despreocupação. “É algo que não tem nada que ver comigo. Não posso comentar mais nada”, conclui.
Recorde-se que os vistos gold terminaram em Portugal em setembro de 2023, por decisão do governo de António Costa, como parte de medidas para solucionar a crise na habitação em Portugal (no âmbito do plano Mais Habitação).
Até àquela data, Portugal tinha atraído mais de 12 mil investidores de diversas nacionalidades, a maioria oriunda de países de fora da União Europeia. Os vistos gold emitidos para familiares superavam os 20 mil. O Estado português acredita que o programa tenha gerado €7,3 mil milhões em investimentos, embora grande parte se ficasse pelo setor do imobiliário, tendo permanecido “esquecida” a aposta na criação de emprego. No ranking das nacionalidades, a Turquia ocupa o quarto lugar, com mais de 600 vistos gold atribuídos, apenas atrás de China, Brasil e EUA. Abdullah Çoruhlu terá sido responsável por boa parte destes documentos.
CORREÇÃO: Ao contrário do que foi referido no artigo intitulado “Vistos gold: mancha turca”, assinado pelo jornalista João Amaral Santos, publicado na edição n.º 1651 da VISÃO, do dia 24 de outubro, a advogada Isabel M. Alves não terá afirmado, como consta no texto, que “foi ainda identificado o que parece ser um negócio simulado, entre a sociedade de Abdullah Çoruhlu e dois cidadãos turcos, que assinaram a escritura de compra e venda dos imóveis”. O que deveria estar referido é que o descrito como “negócio simulado – e que motivou uma denúncia no SEF/AIMA – terá sido realizado por “uma outra sociedade, detida por sócios também de nacionalidade turca”, mas à qual Abdullah Çoruhlu não tem ligações. Aos visados, apresentamos as nossas desculpas.