Quando, em 1952, saiu o número 4 da revista coimbrã Sísifo, dirigida por Manuel Breda Simões, três textos chamavam a atenção sobre Sebastião da Gama (SG): logo na abertura, uma nota da direção a dar conta do falecimento do poeta, contando que a notícia da sua morte chegara quando a revista estava “em andamento” e já integrava o poema inédito “Anunciação”, que nesse número se publicava (o segundo texto); na página seguinte, sob o título “Uma carta do Poeta”, surgiam as respostas de SG, redigidas aquando do seu regresso do Marão (onde fora em meados de setembro de 1951), a um conjunto de quatro questões que uma carta de Breda Simões lhe fizera chegar.
As três primeiras perguntas debruçavam-se sobre o percurso biobibliográfico do poeta, mas a quarta recaía unicamente sobre a arte poética: “Que pensa da Poesia em geral e da sua própria Poesia?”
A resposta do autor de Campo Aberto, obra publicada em fevereiro de 1951, foi telegráfica, sem se desviar do assunto: “Minhas ideias acerca da poesia. Vide: “Louvor da Poesia”, in Campo Aberto. Será tudo? Olhe que a resposta ao n.º 4 não é para posar. É que só nos versos sei o que penso da Poesia.” De forma simples e objetiva, Sebastião da Gama separava o poeta da pessoa que era, assumindo a existência de uma biografia literária, responsável pelo acto e pelo percurso poéticos.
O “campo aberto” da Poesia No poema, de três estrofes, datado da Arrábida em 7 de fevereiro de 1950, o “louvor da poesia” é assim justificado: “Dá-se aos que têm sede, / não exige pureza. (…) // Sabe a terra, a montanhas, / caules tenros, raízes, / e no entanto desce / da floresta dos mitos.” A poesia como dádiva a quem se predispõe a recebê-la e a quem a procura, o trabalho do poeta, afinal, numa atitude de adesão ao seu tempo e ao seu espaço, à vida (…).
A ideia expressa no poema “Louvor da Poesia” surge como a amplificação do eco vindo do dístico que abre Campo Aberto: “Tudo frutificou: o campo estava aberto, / deu conchego e raiz a todas as sementes.”
(…)
Em 12 de agosto de 1947, em “Noturno”, poema incluído em Cabo da Boa Esperança, saído nesse mesmo ano, surgia um retrato do ambiente requerido para o tempo poético: “Era um murmúrio longo de ondas mansas… / Um cochichar de Estrelas curiosas… / Um concerto de grilos tresnoitados… / Mais presente que tudo, aquele enorme / silêncio religioso, imagem pura / dos ouvidos atentos do Poeta…”
O título escolhido para esta poesia reunida, O Inquieto Verbo do Mar, resulta da opção por um verso do poeta e justifica-se por uma simultaneidade de linhas de leitura em Sebastião da Gama
Os elementos vão-se juntando mansamente, num perscrutar dos sons da Natureza — uns, reais, como o som das ondas ou o estridular dos grilos; outros, sugeridos, como o segredar entre estrelas —, favorecedores do encontro com um “silêncio religioso” ouvido pelo poeta.
A audição é, de resto, uma das linhas que percorre a sua poesia, captada, preferencialmente, a partir da Natureza, cujos sons se transformam em música (…) Não por acaso, o primeiro poema de Serra-Mãe fala-nos de “melodia” e de “som” e o segundo intitula-se “Harpa”.
A partir do poema “Noturno”, podemos descobrir como linhas fortes desta poesia a atenção dada ao mar (calmo ou bravo, rumorejando ou espelhando, no ambiente de paisagem ou de trabalho para os pescadores), aos animais que povoam os espaços frequentados pelo poeta, ao céu (que se manifesta pelas estrelas, pelo luar, pelo sol), ao silêncio (que não significa ausência de ruído em absoluto, mas possibilidade de captação dos sons que constituem a orquestra da Natureza, apresentando-se esta como um Outro com quem o poeta se relaciona). (…)
Campo Aberto foi publicado em meados de fevereiro de 1951, não tendo incluído o poema “Viesses tu, Poesia…”, composto a 10 desse mês, depois inserido na obra póstuma Pelo Sonho É que Vamos (1953). Neste poema, a poesia é associada a uma fada, dotada de vara mágica, que tem o poder de contribuir para a nomeação e para a (re)descoberta — “Bem sei: antes de ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água… / Mas tu é que disseste e os apontaste: / — Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram graça, aparição, presença, / sinal…”.
Força (re)criadora, responsável por conferir naturalidade e beleza ao universo, garantia de equilíbrio, regeneradora, numa relação de proximidade e intimidade com o poeta, num tratamento por “tu”, ela é invocada no seu poder: “Ó Poesia!, viesses / na hora desolada / e regressara tudo / à graça do princípio…”
Cantar a vida Ruy Belo foi o primeiro prefaciador de Sebastião da Gama, que não o conheceu pessoalmente, tendo mesmo dado nota desse pormenor no texto que escreveu em 1970 para abrir a segunda edição de Pelo Sonho É que Vamos, vinda a público no ano seguinte.
Considerando ser este “o seu melhor livro”, depois de um percurso de crescente maturidade, afirma sobre esta obra: “Bastam os poemas que temos diante para catalogar Sebastião da Gama como aquilo que fundamentalmente ele foi: um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza.”
Não será difícil ver a proximidade entre “Viesses tu, Poesia…”, a apreciação de Ruy Belo e aquilo que SG pensava da poesia e da forma de a mostrar aos seus alunos, quando registou no Diário, na entrada de 9 de março de 1949, a justificação para ter organizado uma Semana da Poesia: “O Poeta beija tudo, graças a Deus… E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade… E diz assim: ‘É preciso saber olhar…’ E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos… (…)”
Depois, vem a justificação prática deste desvendar o poder transformador da poesia e a necessidade de o incutir nos jovens alunos: “É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno — não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia (…).”
O poeta faz questão de se manter fiel à sua temática, aos seus motivos inspiradores, ao seu cenário de poesia, num trajeto quase linear de convicção — data de 28 de dezembro de 1948, um pequeno poema, “Arte poética”, divulgado numa das mais recentes obras póstumas, Estevas (2004), em que advoga o fim do seu estado de poeta se existir o desvio na sua motivação: “Quando em meus versos nada houver que lembre um ninho, / então sim! — chorem a minha morte.”
Talvez não tenha havido ninguém a melhor definir os conteúdos da poesia de SG que não ele próprio — se recuarmos no tempo até 1942 (ano em que tinha 18 anos), o poema “Testamento”, datado de 20 de janeiro, até agora inédito, pretendia garantir as marcas por que o poeta queria ficar alinhado, sugerindo, em tom algo humorístico, que, após a sua morte, fosse enterrado na Arrábida, rodeado de alecrim e de rosmaninho, com um letreiro feito de conchas contendo os seguintes dizeres: “Aqui dorme seu sono derradeiro // (…) um doido que viveu a versejar / a Arrábida, a Mulher, a Lua, o Mar.”
Arrábida sempre presente
A Arrábida tornou-se, desde cedo, o espaço e o motivo poético privilegiado de SG. Se Serra-Mãe, publicado em 1945, a enaltece no título e num dos mais longos poemas, que tem título homónimo do livro, a verdade é que a serra está presente desde os seus versos mais recuados que se conhecem, assim tomando lugar de primazia nas imagens apresentadas. (…)
De 1939, são-lhe conhecidos textos (…) em que a serra aparece (…) respirada pelos sentidos, dimensão que podemos ver em muitos poemas vibrantes de uma flora que, exaustivamente, o poeta mostra — entre flores, arbustos, vegetação rasteira e árvores, algumas trazidas para título de poemas, muitas atapetando os versos (…).
Num poema de dezembro desse ano, “Arrábida”, o nome da serra aparece apenas no título, mas o texto desenvolve os atributos que lhe conferem o merecimento dos versos — “um canteir’ abençoado / que pasma toda a gente”; “linda serra” rodeada por um “mar muito calmo / verde, azul e prateado”, que “um salmo / sói cantar, quand’ encrespado”; “vista, / que encanta muit’ e deslumbra” (…)
Certamente próxima desta visão está a admiração do poeta por Frei Agostinho da Cruz, o eremita que passou na Arrábida os derradeiros 14 anos da sua vida e que também sobre ela poetou. As referências do poeta do século XX ao seu “irmão” do século XVI surgem evidentes na epígrafe com que abre Serra-Mãe, construída com versos do franciscano — “Oh Serra das Estrelas tão vizinha: / Quem nunca de ti, Serra, se apartara…”
Na mesma obra, a imagem do frade passa ainda por “Elegia para a minha campa” e por “Versos para eu dizer de joelhos”. E, nos títulos subsequentes, ele aparece em A Região dos Três Castelos (1949), Campo Aberto (“Palavras a Frei Agostinho”), Itinerário Paralelo (“Confidência”), Estevas (“Romance do Lima”), Diário (em registo de 11 de Outubro de 1949), O Segredo É Amar (“Páginas de Diário” e “Folhas de Jornal”), havendo ainda outros textos que o referem, presentes nos “Poemas Dispersos” (…) e nos “Poemas Inéditos” (…).
A literatura: entre as formas, os autores e os temas
Pelos poemas de SG passa também o reflexo do conhecimento da história literária portuguesa e de muitos dos seus autores, uns invocados, imitados outros — por um lado, na escolha de formas e tipologias, como “vilancete”, “soneto”, “cantar de amor”, “epigrama”, “cantiga de amigo”, “écloga”, “elegia”, “ode”, “madrigal”, “cantilena” ou no recurso a formas populares como a quadra ou no uso de referências advindas da literatura oral, como as lendas; por outro, na menção de referências à lírica trovadoresca e a nomes como Alexandre Herculano, António Botto, António Feijó, António Nobre, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo, Camões, David Mourão-Ferreira, Diogo Bernardes, Eça, Fernando Pessoa (e nos heterónimos Campos e Caeiro), Guerra Junqueiro, João de Deus, José Duro, José Régio, Júlio Dantas e Nicolau Tolentino.
Mas passa também a voz popular, quer por lhe dar lugar de motivo em epígrafe (“Roma”), quer pelo reconhecimento do que deve às origens (“Nasci pra ser ignorante”) ou por ir buscar a imagem do povo e de figuras que constituem a sua paisagem, impregnados do seu saber, para muitos dos seus poemas.
Este conjunto possibilita-lhe que na sua obra corram o tom sério e o humor, os temas mais frequentes da literatura (como o amor, a morte, a alegria de viver, a espiritualidade, a contemplação, o espírito do local, o seu tempo, a Grande Guerra — de que foi contemporâneo—, entre outros) e o traçar de um caminho em que o lirismo se impõe, tal como legou registado num dos últimos textos que escreveu, não concluído, que seria para uma futura conferência sobre António Sardinha (incluído em O Segredo É Amar), iniciado em guisa de manifesto: “Cabe aos poetas mostrar a grandeza da Vida” (…) Dois parágrafos adiante, na mesma conferência, explica: “A nobreza da Poesia (…) está (…) nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que está; nisso de não querer saber da convenção que faz de uns temas poéticos, de outros apoéticos.
Que a verdade é que não há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há acontecimentos, há coisas – e há Poetas em face de tudo isso.” (…)
Inquieto verbo do mar
O título escolhido para esta “poesia reunida”, O Inquieto Verbo do Mar, resulta da opção por um verso do poeta e justifica-se por uma simultaneidade de linhas de leitura em SG — o desassossego do poeta na escuta e na procura, a força da palavra essencial, o mar como um dos signos de eleição e de inspiração —, aqui se encontrando:
a) Serra-Mãe, primeiro livro, com poemas escritos entre 1943 e 1945 (…);
b) Loas a Nossa Senhora da Arrábida, de 1946, (…) que integra algumas estrofes do poeta popular Miguel Caleiro, falecido em 1935;
c) Cabo da Boa Esperança, segundo livro, em que, dos poemas datados, o mais antigo é “Maré alta”, de 4 de novembro de 1945, e o mais recente, o único que Sebastião da Gama fez aparecer com dedicatória em livro, de 9 de novembro de 1947, “Ode a um amigo morto”;
d) Campo Aberto, terceiro e último livro publicado em vida, com poemas produzidos entre 1947 e 1950 (…);
e) Pelo Sonho É que Vamos, a primeira obra póstuma, título ainda escolhido pelo autor, que integra textos criados entre 17 de dezembro de 1950 e 8 de dezembro de 1951, “Fé”, o último poema do autor;
f) Itinerário Paralelo, com versos escritos entre novembro de 1942 e agosto de 1947;
g) Não Morri porque Cantei, que reúne quadras da juvenília do autor, da primeira metade da década de 1940;
h) Estevas, (…) que contém poemas concebidos entre 1947 e 1950;
i) Lenda de Nossa Senhora da Arrábida (…), de 1942, apenas publicada em 2014;
j) “Poemas Dispersos”, que integra cerca de 70 poemas escritos entre 1939 e 1950, surgidos dispersamente por variadas edições (publicações periódicas, livros de curso, antologias) (…);
k) “Poemas Inéditos”, conjunto de quase 300 textos só agora publicados, datados do período entre 1939 e 1950. (…)