No processo, irregular e múltiplo, da fixação da memória de António Variações, é frequente perguntarem-me como o conheci e porque resolvi biografá-lo. Em rigor, enquanto ele viveu, não o conheci. Entrevistar uma pessoa, uma ou várias vezes, e mesmo cruzarmo-nos nos mesmos palcos, Bairro Alto à cabeça, implica, apenas, proximidade privilegiada. O conhecimento veio depois. Devo confessar até que fui contrariada conhecer o “barbeiro de que toda a gente fala”. Ainda não tinha ouvido o seu Povo que Lavas no Rio (1982), um single recebido com uma chuva de aplausos temperados por uma revoada de apupos, e já não gostava. Nem o tinha visto no famosíssimo O Passeio dos Alegres, em fevereiro de 1981 (não tínhamos televisão), quando António (que ainda não era Variações) cantou Toma o Comprimido que isso Passa, enquanto atirava smarties para o chão no estúdio, sob o olhar afável de Júlio Isidro. Nem ouvira, ainda, o seu primeiro disco, quando Artur Duarte Ramos, diretor da revista Top Música & Som, decidiu enviar-me a casa dele, para a rubrica “Um almoço com”. Depois, a porta abriu-se e ele fez-nos entrar. A casa era esplendorosa, sala de paredes verde-alface, brinquedos de lata, bonecos de loiça, pratinhos das Caldas, numa mistura de cores e formas e feitios conjugados com uma elegância a raiar o kitsch mas a ultrapassá-lo uma oitava a acima. E ele, baixo, musculado, louro, olhos verdes, sorriso desarmante, tímido, de aventalzinho do mesmo tecido que a tolha de mesa e os guardanapos… Foi o mais delicioso, divertido e surpreendente de todos os almoços daquela rubrica… Deixei-me envolver pela música, pelas letras, pela sua imagem a dançar como ninguém dançava, a cantar como ninguém cantava, vestido como ninguém se vestia, apresentando um projeto musical singularíssimo. Quando ele morreu, chorei como se tivesse acabado de perder alguém muito próximo. Eu, e Portugal (quase) inteiro.
Cerca de 20 anos depois, duas jovens da Fonoteca da Câmara Municipal de Lisboa pediram-me para escrever a biografia dele. A ideia não me pareceu sedutora. Muito trabalho e muito rigor. E tive medo. E se ele fosse muito diferente da pessoa que nos tínhamos habituado a amar?
“De olhar para trás
/pensamento em frente”
António nasceu pelas seis horas da manhã de 3 de dezembro de 1944, na então chamada Casa do Farmacêutico, lugar do Pilar, freguesia de Fiscal, concelho de Amares, distrito de Braga. Era o quinto filho de Jaime e Deolinda de Jesus Ribeiro. No verão de 2004, visitei a casa da sua infância, as velhas paredes desbotadas do verde, do rosa velho, dos azuis que ele levou para as paredes da sua casa e da sua barbearia É Pró Menino e Prá Menina, em Lisboa. O Minho, no verão, explode de alegria e baila, canta, come e bebe, espelhando as cores da paisagem nos riquíssimos trajes dos ranchos folclóricos minhotos, os mais belos de todo o Portugal. Havia desfiles de gigantones. Romarias e festas dos santos populares. Feiras. Ouvi os cantares estridentes, vozes agudas e afiadas, como agulhas de pinheiro, que ele trouxe na voz. Visitei a sua escola, falei com o padre, com antigos condiscípulos, ouvi estórias da formidável diáspora minhota. Subi ao rochedo onde ele soltava a voz que atravessava ares e ventos e se ouvia léguas em redor…
Encontrei-me assim, com a criança silenciosa, tímida, de uma teimosia invulgar, que se escondia de estranhos e ficava atrás das portas, a espreitar as visitas. Adorava cantar, no quintal ou em frente ao espelho, e passava horas a ouvir rádio. Irmãos e pais diziam: “Nós não sabemos a quem é que esta criança sai.” Nas aulas, o antigo colega de carteira, o Chico da Torre, recorda-o cumpridor, atento e silencioso, pouco dado a brincadeiras a destempo… Infância breve. Acabada a 4ª classe, o mundo do trabalho aguardava estes meninos e meninas, grande parte dos quais migrava para as cidades grandes, ou mesmo para fora de Portugal. Mais de milhão de portugueses foi para fora, entre os anos 40 e 60, para ganhar o pão em terra alheia. António tinha emprego em Caldelas, mas queria ir para Lisboa. Enfrentou pai e mãe, e conseguiu. “E assim saí daí/ de olhar para trás/ pensamento em frente.” Aos 11 anos: “Pra pensar na vida já tenho idade/mãe quero ir ganhar dinheiro/ pai quero ir para a cidade”. (Olhei para trás, Dar & Receber, 1984). Em 1983, em entrevista a Cláudia Baptista, resume: havia a escola, a catequese e pequenos trabalhos na quinta. Detestava ir buscar erva para os coelhos. Gostava das romarias, do folclore, e começou então “a despertar para a música”: “O meu pai, embora agricultor, tocava muito bem acordeão e cavaquinho.” A mim, em 1983, contou-me ter sido muito feliz, dentro das possibilidades. Família muito grande, dez irmãos, “o clássico ambiente de tareias, dos mais velhos a quererem mandar nos mais novos”. Mas, acrescenta, “o clima era tão saudável, tão bom, mesmo com bofetada à mistura e nomes feios que chamávamos uns aos outros, mas eu acho isto normal a nível de irmãos”. Quanto aos pais, eram “o melhor exemplo de um pai e de uma mãe”. Se voltasse a nascer, “não queria outros”.
O longo corredor até chegar ao palco
António chegou a Lisboa em janeiro de 1956, num dos invernos mais rigorosos de que a Europa tinha registo. Vai viver num quarto alugado, em Sapadores, e trabalha como marçano. Provinciano, com sotaque e sem instrução, sente-se “apavorado” e cheio de “complexos”. Perto fica a Voz do Operário, onde se matriculou para fazer, em horário noturno, o curso comercial. Oito anos depois, quando vai a Santa Apolónia buscar o irmão Luís, um menino loiro e atordoado pela viagem, já trabalha num escritório, na Almirante Reis. O corredor que levava à casa de banho era uma excelente câmara de eco. Fora do horário de trabalho, António fica por ali a cantar, enquanto o irmão morre de tédio…
Assim, de marçano passara a empregado de escritório e, em breve, será cabeleireiro. Cantava com bandas de garagem, e atuava, eventualmente, nos bares do Príncipe Real, cujos espetáculos de travestis eram a nova coqueluche. Cumpre serviço militar em Angola, e regressa em janeiro de 1970, que é quando conhece Fernando Ataíde, algarvio radicado em Lisboa, cabeleireiro no Ayer, um sofisticado salão de beleza. A relação dos dois, amigos e amantes, sobreviverá a todas as mudanças e separações. Mesmo ao casamento de Fernando Ataíde com Rosa Maria, esteticista que também trabalhava no Ayer.
Começa então a fase do “só estou bem onde não estou”. Vai até Londres, onde estão um irmão e uma irmã, e trabalha num “colégio de computadores”. A cidade não o fascina. Em 72 está de novo em Lisboa, a viver na Infante Santo, com Fernando Ataíde. Em 1974, a poucos dias da Revolução, vai para Amesterdão, e ali fica um ano, a trabalhar como cabeleireiro, e a desenvolver a técnica que todos lhe reconhecem. A cidade deslumbrou-o; foi “uma prisão aberta para mim”. Vem de lá mais seguro, mais consciente do sonho que persegue, a assumir toda a diferença, e integra a equipa do primeiro salão unissexo que abriu em Portugal (1976) pela mão de Isabel Queiroz do Vale, que se recorda de ver, de dia e de noite, “filas de pessoas para verem o António com os brincos, a boina, sapatos esquisitos, pantufas ou botas cardadas, de lancheira de província, daquelas que os homens levavam para o campo com o farnel, onde guardava os seus instrumentos de trabalho”. Dali, saiu para o Baeta. E, em meados de 1979, abre a sua própria barbearia, É Pró Menino e Prá Menina, na Rua de São José.
Em 1978, tinha assinado contrato com a editora discográfica Valentim de Carvalho e fizera um pequeno papel num filme, O Bobo, de José Álvaro de Morais, que demorou dez anos a concluir. Mas a demora no lançamento do disco desespera-o. É tudo tão lento…
António Ribeiro, profissão barbeiro
“Parecia um catraio, loiro, de barba loira, com o brinco, roupa feita e desenhada por ele.” Nuno Rodrigues, em 1978, era A&R [Artists and Repertoire] da Valentim de Carvalho, que ficava na Rua Nova do Almada. À sua frente, António Ribeiro, 30 e tal anos, barbeiro de profissão, um single já gravado. Nuno Rodrigues lidava com artistas e ele próprio era um. Mas aquele ser ultrapassava tudo. Parava o trânsito, a descer a Avenida da Liberdade, vestido de branco, chapéu colonial e um papagaio de madeira no ombro. Na inauguração da loja da estilista Manuela Gonçalves foi de chapéu de tules e plumas, e unhas pintadas. À festa do Pós-Modernismo, na Sociedade Nacional de Belas Artes, acompanhado da amiga, manager e fotógrafa Teresa Couto Pinto, foi vestido de rede de galinheiro, com aloquetes pendurados por todo o lado. À televisão, chegou a ir de pijama de flanela estampada com ursinhos. E tudo batia certo: “A editora não tinha de contratar um estilista para lhe construir a imagem. O António estava sempre perfeito.” Mas a gravação do disco, música e letra dele, arranjos do Jorge Machado, fazia-lhe “uma certa confusão” e Nuno Rodrigues decidiu ir à procura do som exato, da harmonia perfeita, do arranjo adequado à partitura que o António, que não sabia tocar nenhum instrumento, nem ler ou escrever música, trazia na sua cabeça. O primeiro maxi single, Povo que Lavas no Rio, é um êxito estrondoso. António Variações torna-se um ícone dos anos 80, simultaneamente aceite pela elite de Lisboa e pelas gentes dos bairros populares. Em 1983, lança o primeiro LP, Anjo da Guarda, igualmente dedicado a Amália, “que sempre me deu e fez sentir a importância duma verdadeira identidade”. Participam dois elementos dos GNR, Vítor Rua (sob o pseudónimo de Vick Vaporub) e Tóli César Machado. O disco é um êxito imediato.
Agora é realmente um artista e, aos artistas, como aos apaixonados, desculpam-se todas as extravagâncias. E António Variações é a simplicidade em pessoa. Devolve as saudações, tem um sorriso fácil e maneiras afáveis. Por vezes, a imagem que o populariza é tão forte que o confronto com a pessoa real causa alguma estranheza, porque António não é o gigante que as fotografias apresentam. É até surpreendentemente baixo, um metro e sessenta, todo músculo e fibra. Um corpo que ele cultiva diariamente no ginásio e na piscina. Teresa Couto Pinto: “Gostava de boa comida portuguesa. Filetes com arroz, essas coisas. Não bebia álcool. Não fumava. Não metia drogas.” A única compulsão é o sexo, que vive de forma intensa, feroz, muitas vezes emocionalmente desligado. É a “aventura dos sentidos”, de que a sua Canção do Engate é paradigmática. A agenda de espetáculos é esmagadora. Portugal inteiro quere-o nas festas, em todo o lado. Rapazes e raparigas fazem-lhe propostas sexuais explícitas. O êxito desaba sobre ele como um murro no estômago: “É como se tivesse passado de soldado a general.”
Depois, é tudo estupidamente rápido. Em fevereiro de 1984, grava o seu segundo longa-duração, Dar & Receber, com os músicos dos Heróis do Mar. Em maio de 1984 dá entrada no Hospital Pulido Valente, de onde sai para o Hospital da Cruz Vermelha. E na noite de Santo António, Lisboa em festa, precisamente às seis da manhã de 13 de junho, António Variações morre em “consequência de uma broncopneumonia bilateral grave”. Em Portugal, foi a primeira vítima famosa de uma síndrome cujo nome ainda hoje custa a pronunciar. Sida.
Genuíno e inimitável, deixou um vazio inexplicável. Podemos invocar contextos, raízes, influências, para tentar perceber a originalidade do cantor que contava a própria vida nas canções, em letras de sua autoria, tão poderosas na sua simplicidade. Mas era como se o ruído avassalador de cada uma das suas extraordinárias aparições, a envolvência surpreendente da sua voz impregnada de fado até às estranhas, mas, simultaneamente, abrindo-se para sons de outros mundos, não permitisse, enquanto viveu, abarcar o todo, que nele, António Variações, na música e na vida, foi sempre muitíssimo maior do que a soma de todas as suas partes. Ou não estaríamos hoje, aqui, a falar dele assim.
Retrato de um artista antes de o ser
Um dos grandes méritos de Variações – o filme de João Maia que se estreou o mês passado – é a sua simplicidade, porque afinal a história de António Variações é uma espécie de fábula universal, de alguém que não desiste de lutar pelos seus sonhos até os conseguir realizar, também com a ajuda de muitos. Teria sido porventura mais fácil para o realizador focar-se apenas no êxito, ainda que efémero, devido à morte precoce, de António Variações. Mas a opção foi outra, a de mostrar a construção do artista através da pessoa. “Pretendia que o filme tivesse um lado mais pessoal e emocional. Sempre tive a sensação de que a história era mesmo esta, a do período anterior a tornar-se conhecido”, diz João Maia à VISÃO. Sim, é um filme sobre o artista António Variações, mas sobretudo sobre o homem, António Ribeiro, que passados todos estes anos ainda é um desconhecido para a maioria, apesar de ter sido transformado numa das figuras do imaginário pop nacional. E, sendo um filme sobre música, é também uma crónica de costumes, sobre uma época única da sociedade lisboeta, ávida de liberdade e, até, de alguma libertinagem. Acima de tudo, Variações conta a história de um amor impossível, também ele contra tudo e contra todos, como aquele que António e Fernando Ataíde viveram, até a morte os separar. M.J.