Não fora a pandemia e, muito provavelmente, não estaríamos aqui a falar deste novo disco. Aos 24 anos, Ana Lua Caiano representa uma geração que foi obrigada a travar e a ficar em casa no momento em que tinha mil e um compromissos, projetos e afazeres. No seu caso, isso resultou na descoberta de todas as potencialidades musicais de um trabalho a solo, entre paredes. Vou Ficar Neste Quadrado, o seu primeiro álbum, com o selo da editora alemã Glitterbeat – que se segue a dois EP, Cheguei Tarde a Ontem, de 2022, e Se Dançar É Só Depois, de 2023 –, resulta de um trabalho muito pessoal: todas as músicas e letras são suas, toda a mistura de sons e referências tem a sua assinatura, e mesmo em palco a artista apresenta-se sozinha no meio de uma parafernália de objetos – entre variadas geringonças eletrónicas e, por exemplo, um tradicional adufe. Num impressionante currículo de cursos, formações e workshops, foram muitos os caminhos musicais que Ana Lua Caiano percorreu até aqui chegar.
Lança o primeiro álbum num momento em que já conseguiu chegar a um som próprio, uma identidade muito sua. Assina a música e a letra de todas as canções e nos concertos está sozinha em palco. Vê-se como uma artista solitária, até individualista?
Antes da pandemia, toquei com várias bandas. Com colegas meus do Hot Clube, ou mesmo de fora. Tinha, por exemplo, um grupo que era com guitarra e eu…
Como é que se chamavam?
Vertigem e Data. Mas era muito difícil marcar concertos, com a pandemia tornou-se mesmo impossível. Apercebi-me, então, de que conseguia fazer música sozinha. Podia gravar coisas no meu computador, os sons que quisesse, e trabalhar a partir daí… E nasceu a vontade de avançar assim. A criatividade em grupo, numa banda, também é uma coisa muito boa, e às vezes sinto falta dela, mas quando estou sozinha existe uma liberdade total. Numa banda, em princípio, ou estou no piano ou na voz, e é difícil libertarmo-nos disso. No computador posso pôr qualquer som, nem que seja feito a partir de uma garrafa de água.
É mais dona do resultado final.
Sim. E nesse contexto de solidão também acabei por descobrir que conseguia tocar sozinha, apresentar-me sozinha em palco se fosse preciso.
Podemos dizer que a Ana Lua Caiano que agora conhecemos não existiria se não fosse a pandemia de Covid-19?
Sem dúvida. Até acho mesmo que não teria este projeto a solo se não tivesse acontecido a pandemia. Ou, pelo menos, demoraria muito mais tempo até acontecer. Foi um período muito criativo. Na altura estava a viver em Sintra e, de repente, tinha muito mais tempo do que era habitual. Não passava horas nos transportes e em correrias malucas em Lisboa entre a faculdade e a escola de música… Ganhei um tempo que não tinha para compor e explorar.
O lado da música eletrónica, muito presente nos seus discos, já vinha de trás ou foi uma descoberta mais recente?
Já vinha um bocadinho de trás. Ainda antes da pandemia, comecei a frequentar workshops nessa área, por exemplo, num sítio chamado Lisboa Incomum, mais ligado à música experimental e concreta, sintetizadores…
Aos 24 anos, tem uma formação musical já muito eclética… Esse desejo de ser música vem desde pequena?
É verdade, mas a minha licenciatura nem é nessa área, é em Design de Comunicação. E frequentava o Hot Clube ao mesmo tempo. A música sempre me tocou muito, lembro-me de ser muito pequenina e tentar imitar os cantores. Gostava muito de cantar, mas não em público. A verdade é que em nossa casa havia sempre música. Desde pequena, fui para o ensino articulado e o meu instrumento era o piano, que aprendi desde os 6 ou 7 anos. E, na mesma escola, também me interessei pelo coro. No 9º ano decidi mudar e falaram-me do Hot Clube. Deixei o piano um bocado de lado e fui ter aulas de voz, mais nesse universo do jazz.
Havia sempre a ideia de vir a ser música profissional?
Acho que nunca pensei que queria mesmo ser música, talvez até por medo, parece assim um sonho muito idealista… Como estudei na [Escola] António Arroio e na Faculdade de Belas Artes, também pensava no universo das artes, da ilustração, e achava que o curso de Design de Comunicação teria mais saídas. Agora estou a terminar um mestrado em Som e Imagem, nas Caldas da Rainha. Só quando passei a ter concertos marcados é que comecei a pensar que, se calhar, era mesmo possível apostar mais a sério na música. E a primeira atuação foi só em março de 2022, num sítio muito pequeno, o Café Dias, em Alcântara, que tem uns concertos de jazz.
Sentiu-se confortável sozinha em palco?
Estranhamente, senti-me muito confortável. Quando atuava com bandas, eu só cantava e não sabia bem o que fazer com as mãos, com os braços, se tinha de dançar, onde é que podia esconder-me [Risos]. Sozinha, tenho de fazer tantas coisas que estou sempre entretida, e o resto, o à-vontade em palco, vem mais naturalmente.
Ter uma família muito artística foi uma grande influência? Tem um pai e um tio escritores [Gonçalo M. Tavares e José Gardeazabal], a sua mãe [Rachel Caiano] é ilustradora…
Por estar numa família mais virada para as artes, desde muito cedo ouvi muita música, de vários estilos, comecei a ler… Tive contacto com muitas coisas diferentes, algumas que os meus pais me mostravam, e que tanto podiam deixar-me fascinada como confusa [Risos].
Começou a ler textos do seu pai desde pequena? São uma influência?
Acho que comecei cedo a ter curiosidade sobre literatura em geral. O meu pai sempre me recomendou muitos livros, havia uma biblioteca grande lá em casa. Claro que isso influenciou a forma como escrevo… Quando era pequena, o meu pai também escrevia uma crónica sobre nós [Ana tem uma irmã e um irmão] na revista Pais & Filhos. Fui sempre lendo algumas coisas do meu pai, claro.
Quando se fala de influências da sua música, citam-se vários nomes, alguns que parecem muito distantes uns dos outros, de Björk a Fausto… Sente que há alguém que é mesmo um alicerce, uma grande referência?
É difícil dizer um nome… Porque sempre ouvi mesmo muitas coisas diferentes. Mas acho que o que mais me marcou e influenciou desde cedo foi a música portuguesa: Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto… Em termos de palavra, o Chico Buarque também foi uma grande influência. E a Cesária Évora.
Como nascem as suas canções? Compõe ao piano, o seu primeiro instrumento?
O que faço com o piano é mais no contexto de música clássica, ler partituras… A maior parte das minhas canções começa com a voz, a trautear.
Essa base na música portuguesa levou-a também a interessar-se por recolhas do património musical tradicional?
Já tinha estado em contacto com as recolhas do Giacometti e interessa-me muito o que tem sido feito n’A Música Portuguesa a Gostar dela Própria [projeto de recolha de Tiago Pereira]. Essa curiosidade fez-me ir estudar adufe com o Sebastião Antunes, dos Gaiteiros de Lisboa, e isso fez-me contactar com mais repertório tradicional de várias regiões.
Neste disco há vários momentos em que se ouvem sons gravados na rua ou na rádio, do quotidiano, com pessoas a falar. São só apontamentos estéticos e musicais ou há um sentido nisso?
Aquele workshop de música concreta abriu a porta a essas coisas. E, sim, também é a tentativa de trazer o quotidiano para a canção, a musicalidade do quotidiano. A última música do disco, Bom, Vai Ficar Assim Por Hoje, também tem som de máquinas e de vento… Uso vários sons como instrumentos.
50 anos depois do 25 de Abril, que deve sempre ser celebrado, há coisas pelas quais temos de continuar a lutar, e sinto que as minhas canções também passam por aí
Ana lua caiano
A sua música não é diretamente de intervenção política, num sentido restrito. Mas fala dos nossos tempos. Em altura de eleições, num momento em que se fala sempre muito dos “jovens”, como olha para a sua geração? Alheada e permeável aos populismos ou comprometida com causas concretas? Há algo de partilhado por quem nasceu no virar do século ou há, sobretudo, diversidade?
Estas eleições deixam-nos muito preocupados, pelo menos a bolha em que estou mais inserida, com o crescimento de um partido que parece ser antidemocrático. Isso causa muita inquietação. 50 anos depois do 25 de Abril, que deve sempre ser celebrado, há coisas pelas quais temos de continuar a lutar, e sinto que as minhas canções também passam por aí. Uma tendência em comum na minha geração é o desejo dos jovens de sair de Portugal. Muitos amigos meus, de áreas diferentes, tanto da música como de ciências e humanidades, pensam todos os dias na possibilidade de sair. Como um objetivo ou até como uma inevitabilidade. Mesmo tendo empregos, a ideia de que só se consegue sair de casa dos pais e ter independência económica daqui a muitos anos leva a esse comportamento. Tenho vários amigos que se estão num emprego e acham que trabalham demasiado ou não estão satisfeitos, saem e vão procurar outro… Ou seja, acho que até há bastantes coisas para fazer, mas não vão ao encontro das necessidades das pessoas. Essa parece-me uma inquietação geral desta geração.
Apesar de ser um bocado tímida, no meu percurso musical nunca tive timidez nenhuma e sempre gostei de me candidatar a muitas coisas…
Ana Lua CaianO
Por falar nesse desejo de sair para o estrangeiro… A editora deste seu primeiro disco é alemã e na sua breve carreira já se vê uma grande aposta no mercado internacional. Porquê?
Apesar de ser um bocado tímida, no meu percurso musical nunca tive timidez nenhuma e sempre gostei de me candidatar a muitas coisas… Quando me candidatei à Womex [grande feira da indústria musical, mais ligada à world music, que em 2021 aconteceu no Porto e em 2022 em Lisboa], não estava ligada a nenhuma agência nem editora, estava sozinha. Fui selecionada e correu bem… Mas esse era um assunto em que não pensava muito, nem sequer tinha ainda concertos em Portugal, quanto mais no estrangeiro. De repente, a partir dessa participação na Womex, fui dar um concerto à Coreia do Sul… Começaram a acontecer assim umas coisas engraçadas, e fiquei mais desperta para essa possibilidade de tocar no exterior. Há muitos festivais de música do mundo. Cruzei-me com a minha atual editora [a alemã Glitterbeat] num desses concertos lá fora.
O disco
Quem já (ou)viu Ana Lua Caiano em palco sabe o que esperar da sua sonoridade em disco. O muito aguardado álbum de estreia (disponível a partir desta sexta, 15) serve de perfeito retrato dos caminhos escolhidos pela jovem artista: os alicerces da tradição musical portuguesa, reconhecível em instrumentos como o adufe, o bombo ou o brinquinho madeirense, servem de base a construções bem ritmadas com recurso a todo o potencial sonoro da eletrónica (com destaque para batidas graves e possantes). As letras apostam muitas vezes na primeira pessoa (Os Meus Sapatos Não Tocam nos Teus, Mais Alto que o Meu Juízo, Ando em Círculos, Vou Ficar Neste Quadrado), ora misteriosas, ora muito concretas, com um gosto particular pela espacialidade (linhas retas, verticais, quadrados, círculos, diagonais…) e o movimento.
Os concertos de apresentação de Vou Ficar Neste Quadrado estão marcados para o Plano B (Porto), a 5 de abril, e o B.Leza (Lisboa), a 11. O seu nome também já está no cartaz dos festivais de verão Primavera Sound e Kalorama.