Depois de Niassa (em 2009, prémio PEN Clube para primeira obra) e A Última Canção da Noite (2013), o editor e ex-jornalista Francisco Camacho, 54 anos, regressa à ficção com O Monte do Silêncio, um thriller que nos faz saltar páginas à procura de respostas, percorrendo, guiados pelo anti-herói Diogo, um enredo intrincado, que é também o de Portugal nos últimos 50 anos.
Ao terceiro livro de ficção já se assume como um escritor a construir a sua carreira literária? É assim que olha para si?
Gosto muito de escrever, mas ainda tenho alguma dificuldade em ver-me como escritor. Essa ainda é, para mim, uma palavra um bocado solene. Vejo-me mais como um narrador, porque gosto imenso de contar histórias e não sinto uma grande necessidade de afirmar um estilo muito próprio ou uma grande mensagem. Não posso dizer que tenho uma necessidade existencial de escrever… O que me move é mesmo contar histórias bem contadas. Em conversa, num lançamento deste livro, usei a expressão “repórter de ficção”. É um pouco assim que me vejo.
Usando a escrita jornalística, mas em enredos ficcionados…
Exatamente. E até há episódios neste livro que não são fruto da imaginação. Aquela cena em que se matam pássaros com raquetes de ténis vem de uma história real que o meu pai me contava, sobre alguém que fazia isso. Tomo muitas notas, acumulam-se ao longo de anos, e depois arranjo maneira de arrumar essas informações em enredos de ficção.
É o que fazem os escritores.
Admito que sim [risos]… Mas a pergunta era como eu me vejo.
Em que família literária se inclui? Perguntando de outra maneira: quais são as suas grandes influências?
Na literatura portuguesa, identifico-me com alguns novos autores – não muitos, confesso. Estou a pensar no João Tordo e no João Pinto Coelho, por exemplo. Bons contadores de histórias. E isso faz falta. Em Portugal, temos uma certa tendência para os extremos: ou uma literatura densa, complexa e hiperintelectualizada ou algo que está no extremo oposto, a que se costumava chamar light. Acho que há muitos leitores que querem algo que está entre uma coisa e outra: uma boa história contada com uma escrita irrepreensível, que não seja displicente. Há um longo caminho a percorrer de aproximação ao grande público. Ao contrário, por exemplo, do que acontece em Espanha, onde há muitos escritores que vendem muito, nós temos muitos escritores que vendem pouco.
Falou de autores recentes. E mais antigos?
Mais Eça do que Camilo; mais Cardoso Pires do que Saramago. E todo o universo anglo-saxónico. Admito que isso vem de família, até porque somos madeirenses e lá há uma grande influência inglesa. E em minha casa havia muitos livros. Devo muito à Enid Blyton e à Agatha Christie a paixão pela leitura e pela escrita – foram muito marcantes. Há uma certa sobriedade, contenção, economia de palavras, até frieza, que me atrai muito nos anglo-saxónicos. Quando descobri o Paul Auster, fiquei fascinado… Mas se tivesse, hoje, de nomear um só nome, diria o Julian Barnes, um escritor extraordinário.
Quando lemos um romance em que o narrador é da geração do autor, e das mesmas geografias, há sempre a tentação de os identificarmos. Deu muito de si ao Diogo?
Sinto que emprestei um bocadinho da minha identidade ao Diogo quando falo dos anos 80. Há ali um lado meio sombrio no qual me revejo, quando era adolescente, mas hoje sou uma pessoa completamente diferente. Acho que sou uma pessoa com quem é mais agradável estar e, sobretudo, mais tranquila…
No meio de um enredo muito intrincado, parece que há temas que quis mesmo abordar: o massacre das drogas duras nos anos 80, as teias de corrupção entre poderosos, tão atual…
Quando escrevi, nunca pensei que fosse ficar tão, tão atual [risos]… A epidemia das drogas nos anos 80 e 90 parece ser ainda uma espécie de trauma nacional. Não só afetou muita gente nova, e alguns acabaram mesmo por morrer, como afetou as famílias dessas pessoas, de várias classes; lá nisso a droga é muito democrática. Conheço pessoas que foram viver para o Casal Ventoso, que roubavam os pais… Talvez seja ainda uma ferida demasiado recente para se falar muito nisso. Com a Guerra Colonial, passou-se o mesmo: foi preciso passar muito tempo até a sociedade começar a falar mais abertamente. A questão da corrupção também me preocupa. Um miúdo que tenha agora 20 e poucos anos, tinha 11 ou 12 quando rebentou a Operação Marquês; passou a adolescência toda à sombra deste tipo de suspeições em relação aos órgãos de soberania. Quando estava a escrever O Monte do Silêncio, admito que podia ter em mente o caso BPN, BES, a Operação Marquês, mas… não sou bruxo, não estava a prever esta atualidade toda.
Antes de um romance como este, faz algum trabalho de campo, de investigação? Por exemplo, em relação aos imigrantes que trabalham nas estufas no litoral alentejano, que também estão aqui presentes…
Não, são coisas de que já tinha alguma noção. E acabam por ser só um pano de fundo. Quis montar uma intriga que surpreendesse o leitor e criar subenredos, desenhar um labirinto em que eu sabia sempre a saída, mas por onde vou guiando o leitor, muitas vezes induzindo-o em erros. Isso deu-me muito gozo e muito trabalho.
O livro é muito cinematográfico, estamos sempre a visualizar tudo. Gostava de ver uma adaptação ao cinema ou à televisão?
Gostaria muito. E é verdade que sinto que escrevo como se tivesse uma câmara na cabeça. Estou a ver aquilo tudo… Gosto muito de traduzir imagens em palavras. E acho que a própria descrição tem, em si, um sentido crítico, opinião. Lembro-me que isso me foi dito pelo Vasco Pulido Valente, com quem trabalhei [n’O Independente] e com quem aprendi alguma coisa: ele insistia muito que, nas reportagens, tinha de dizer como as pessoas estavam vestidas, em que sítios estavam, como era tudo à volta.
Trabalha como editor, no grupo Leya. Como explica que se editem tantos livros num país em que, segundo os inquéritos de hábitos culturais, se lê tão pouco?
A edição é uma indústria. A questão de se editar muito tem que ver, sobretudo, com as dinâmicas do mercado. Se os concorrentes editam muito, nós temos de acompanhar… Quando se publica um livro, tem-se sempre esperança de que ele venda, e ninguém tem uma bola de cristal para saber se, de facto, vai vender ou não. O papel das editoras é acreditar e arriscar. A verdade é que o mercado livreiro não está em queda. Em Portugal, até aumentou já depois da pandemia.