É impossível esquecer as criaturas melancólicas, de asas recolhidas sob sobretudos, velando sobre a Berlim dividida, a imensa biblioteca, e o anjo caído Damiel que desejou as paixões terrenas, que Wim Wenders filmou em As Asas do Desejo (1987). Arranje-se lugar igualmente cimeiro no panteão angelical para a A Revolta dos Anjos, uma obra surpreendente, vivaz, divertida e subversiva, que faz voo rasante às conservadoras instituições francesas e ao catolicismo na dobra de 1900.
A subversão começa, aqui, numa outra biblioteca formidável: as salas monumentais da mansão dos Esparvieu onde se refugiam 360 mil tesouros, textos sagrados, tratados talmúdicos, testemunhos valiosíssimos. São guardados por Sariette, arquivista e devoto obsessivo – um anjo bibliófilo imaculado, que sofrerá terrores infernais quando, sem explicação nem impedimento de fechaduras, os livros desatam a desaparecer das prateleiras, migrando ou copulando numa confusão de teses. Nada disto é obra da família, encostada por tradição aos valores cristãos, temerosos da fúria republicana e vigiados por abades como Patouille (“Os melhores artistas transviam–se quando não recebem de um eclesiástico autorizado as necessárias noções de iconografia cristã”, lança este perante um Delacroix a ser restaurado). Tão-pouco de assaltantes a soldo dos alemães, como se lerá no cómico trecho policial.
Será Maurice d’Esparvieu, herdeiro da família que “só muito modernamente aspirava ao martírio”, a conhecer primeiro o anarquista livreiro, quando estava entretido a satisfazer carnalmente a sua amante, Gilberta Aubel. A aparição? Arcádio, o seu anjo da guarda, que, mercê das leituras vorazes, questiona agora a ordem celestial e a bondade propagandeada de Deus, a quem chama de Ialdabaoth. Arcádio abandona-o para empreender uma revolução nos céus e nas ruas de Paris, e conhecer os puzzles humanos. O Diabo ocupará o trono divino? Anatole France faz do apocalipse um elogio à tentação da inteligência.
A Revolta dos Anjos (Cavalo de Ferro, 240 págs., €15,98) é o último livro de ficção de Anatole France, autor que ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1921