Todos os anos morrem pelo menos 11 milhões de pessoas devido à sépsis, sem contar com a Covid-19 – os dados oficiais dão conta de quase 7 millhões de mortes devido ao novo coronavírus até agora, no mundo inteiro – apesar de este número poder ser maior (porque é que falamos de Covid? Já lá vamos). “É muito difícil estimar [o número de pessoas que morrem por sépsis]. Por isso é que a comunidade científica lhe chama silent killer (assassino silencioso)”, diz à VISÃO Miguel Soares, investigador principal do Laboratório de Inflamação, no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras.
Soares, que define a sépsis como “uma doença devastadora” e um bom revelador de como “as doenças infecciosas são e serão sempre um enorme problema”, trabalha com um grupo de investigação na tentativa de encontrar tratamentos ou procedimentos que consigam reverter, de alguma forma, infeções generalizadas, nome pelo qual também é conhecida. “Quando temos uma infeção sistémica, como uma bactéria ou outro microorganismo que nos infeta sistemicamente, principalmente no sangue, há uma resposta imune que é exuberante e, devido a isso, o rim, o fígado e o coração param de funcionar. E quando isso acontece, morremos”, esclarece o investigador.
E ainda não há soluções? Não, não existem tratamentos específicos para a sépsis e a comunidade científica ainda tem muitas perguntas por responder, assegura Soares. “Como é que o sistema imunitário “apaga” o funcionamento normal dos órgãos? Isso é um grande mistério”. Para tentar resolvê-lo, existem vários grupos de investigação em Portugal que trabalham exatamente no sentido de perceberem como se pode reverter a disfunção dos vários órgãos, não tocando no patogénico que nos infeta, mas fazendo um realinhamento do metabolismo desses órgãos.
Por exemplo, um estudo realizado pelo seu grupo de investigação, e publicado na revista científica Cell, teve por base a o facto de que uma das maneiras de controlar a sépsis é através da regulação dos níveis de glucose no sangue: quando há um choque séptico, alguns indivíduos fazem hiperglicemias, ou seja, os valores da glucose no sangue aumentam muito, mas em algumas pessoas os níveis de glucose baixam muito, provocando hipoglicemias. Em relação a este último grupo, a equipa revelou que isso acontecia devido a um defeito de o fígado em produzir glucose, o que constitui um fator de altíssimo risco de mortalidade por sépsis e, por isso, a equipa propôs maneiras de contrabalançar essa situação.
O grupo de investigação de Soares foca-se, sobretudo, em infeções sistémicas induzidas por bactérias, mas também pelo plasmodium que provoca a malária nos humanos, o parasita falciparum, já que a malária também cria um choque séptico. Além disso, a equipa tem realizado investigações relacionadas com a Covid-19 em modelos experimentais, uma vez que a doença também também pode provocar choques sépticos, principalmente nos casos mais graves de infeção, esclarece o investigador. “Estamos habituados a pensar em sépsis só quando nos referimos a bactérias, mas essa não é a realidade. Os órgãos param de funcionar devido a uma resposta exuberante contra uma infeção que pode ser causada por, além de bactérias, parasitas, vírus, etc…”, reforça.
Ensaio clínico em mãos portuguesas
Luís Ferreira Moita, que lidera o grupo de Imunidade Inata e Inflamação do Instituto Gulbenkian de Ciência, tem descoberto nos últimos anos que medicamentos já utilizados em outras aplicações têm efeito nos modelos usados em laboratório, mais precisamente na proteção contra a sépsis, aumentando muito a sobrevivência nesses modelos. Como estes medicamentos já estão aprovados para uso clínico, a transposição do laboratório para a clínica pode ser facilitada.
“Um dos ensaios clínicos está neste momento a começar a recrutar doentes em sépsis para comparar a sua evolução quando são tratados normalmente com quando são tratados normalmente e com o medicamento que estamos a testar”, explica à VISÃO o investigador. Este ensaio está a decorrer na Alemanha em cinco grandes centros hospitalares e terá a duração de até dois anos. Caso os resultados sejam suficientemente promissores, será depois expandido a mais países. Já outro ensaio clínico está em fase de planeamento e deverá ter início dentro de 1 a 2 anos.
“O funcionamento comum a estes medicamentos passa pela indução do que designamos por tolerância à doença, isto é, impedem a lesão dos órgãos na sépsis e promovem a recuperação do seu funcionamento. Tudo isto sem interferir com o microrganismo que está a causar a infeção, que é tratada da forma habitual através dos antibióticos mais apropriados”, esclarece Luís Moita.
“Temos vindo a demonstrar nas nossas publicações que a sobrevivência a uma doença grave depende não só da eliminação direta do microrganismo causador da infeção, que atualmente se faz de forma razoavelmente eficaz, mas também da limitação da lesão dos órgãos causada pela própria infeção e pela resposta do sistema imunitário para a combater”, garante o investigador. “Os medicamentos que descobrimos e estamos a testar atuam neste segundo componente e que até agora não tem sido parte da intervenção terapêutica”.
Sépsis não é cada vez mais mortal, apesar de haver mais casos
Qualquer processo infeccioso, como uma pneumonia, uma gripe forte ou uma infeção urinária, caso se agrave, pode evoluir para uma sépsis. Realizar o seu diagnóstico é complicado e chega, muitas vezes, tarde demais, já que não há sinais muito específicos para a sépsis – apesar de devermos estar a atentos se sentirmos um mal-estar geral ou tivermos febre alta, que surja de forma repentina.
Mas o cenário não é tão desanimador como parece, já que, além de “não ser uma doença cada vez mais mortal (a taxa de mortalidade está estável), pode curar-se numa percentagem significativa dos casos, assegura o investigador. Ainda assim, há cada vez mais casos por ano, acrescenta, e “até 50% dos doentes que sobrevivem ficam com complicações físicas e psicológicas a longo prazo, muitas vezes gravemente incapacitantes”.
“Se nada acontecer, estes valores tendem a agravar-se rapidamente devido a vários fatores, incluindo ao envelhecimento da população, já que mais de 80% dos casos ocorrem em pessoas com mais de 60 anos, ao número crescente de casos devido a infeções difíceis de tratar, m particular por fungos e o crescimento de estirpes bacterianas multirresistentes”, avisa Luís Moita.
Um estudo de 2017, publicado na revista científica Lancet, dava conta de quase 49 milhões casos e 11 milhões de mortes provocadas pela sépsis em todo o mundo, nesse ano. Este número representa cerca de 20% de todas as mortes a nível mundial.