Bactérias resistentes a antibióticos podem ser transmitidas de porcos para humanos, de acordo com uma nova pesquisa desenvolvida por uma equipa de investigadores dinamarquesa. Os antibióticos são administrados a vários animais de quinta, nomeadamente porcos, de modo a combater as doenças que facilmente se espalham nas condições precárias onde estes são frequentemente mantidos. O seu uso excessivo leva a que as bactérias vão desenvolvendo técnicas de combate aos antibióticos que se provam depois incapazes de as combater quando estas são transmitidas a humanos.
A relação entre os antibióticos administrados nas quintas e o aumento na resistência das bactérias foi estabelecida por Semeh Bejaoui e Dorte Frees, da Universidade de Copenhaga, e Soren Persson do Statens Serum Institute da Dinamarca. A pesquisa foca a bactéria Clostridioides difficile (C difficile), considerada uma das maiores ameaças no que toca à resistência a antibióticos. O estudo focou não apenas a bactéria, mas a sua presença em animais de quinta, neste caso, porcos. Estes animais foram testados e comparados com um grupo de pacientes hospitalares dinamarqueses, na tentativa de perceber se existiria, ou não, alguma correspondência. O estudo identificou a presença da bactéria em ambos os grupos e ainda a existência de genes semelhantes de resistência a toxinas e antibióticos no mesmo período.
“A nossa descoberta indica que o C difficile é um reservatório de genes de resistência antimicrobiana que podem ser trocados entre animais e humanos”, explicou Bejaoui, de acordo o The Guardian. “Esta descoberta alarmante sugere que a resistência aos antibióticos se pode espalhar mais amplamente do que o pensado anteriormente e confirma os elos na cadeia de resistência que vais dos animais de quinta até aos humanos”.
A bactéria C difficile é conhecida por infetar o intestino humano e ser resistente a todos os antibióticos, à exceção de apenas três. Em alguns casos a bactéria pode ser responsável por desencadear inflamação intestinal e diarreia, apresentando, inclusive o risco de morte em idosos e pacientes hospitalares. De acordo com o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, a agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, “uma em cada onze pessoas com mais de 65 anos diagnosticada com problemas de saúdo ligados à C diff. (ou C difficile) morre dentro de um mês”. A bactéria é, por isso, considerada uma das maiores ameaças de resistência a antibióticos em países desenvolvidos, sendo, em 2017, responsável por mais 200 mil infeções e 12 mil mortes nos EUA, resultando num custo de mais de mil milhões de dólares (mais de 935 mil milhões de euros), de acordo com dados citados pelo The Guardian.
Resistência a antibióticos é das principais causas de morte em todo o mundo
Além da preocupação da transmissão da bactéria, o estudo de Bejaoui reforça o receio de que o uso intensivo de antibióticos nas quintas esteja a contribuir para a disseminação de bactérias resistentes aos mesmos entre humanos. Ainda em janeiro deste ano, uma análise publicada na revista Lancet apontou a resistência a antibióticos como uma das principais causas de morte em todo o mundo com mais de 3 mil pessoas a morrerem diariamente devido a esta resistência. “A resistência antimicrobiana (RAM) representa uma grande ameaça à saúde humana em todo o mundo”, explica a análise. De acordo com os modelos estatísticos utilizados na investigação, “houve uma estimativa de 4,95 milhões de mortes associadas à RAM bacteriana em 2019, incluindo 1,27 milhões de mortes atribuíveis a infeções bacterianas AMR”, matando mais pessoas do que a sida ou malária.
“Estes novos dados revelam a verdadeira escala da resistência antimicrobiana em todo o mundo e são um sinal claro de que devemos agir agora para combater a ameaça”, disse, segundo o The Guardian, o coautor do relatório, Chris Murray, do Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde da Universidade de Washington.
A problemática pode agora estar a ser intensificada pelo uso generalizado de antibióticos nas quintas não só em porcos, o alvo do estudo em causa, mas também em aves e até em gado, levando a que antibióticos outrora eficazes sejam agora menos capazes de combater infeções comuns, aumentando também, com isso, a mortalidade e obrigando a que sejam aplicados “tratamentos de substituição” que são “mais caros, mais tóxicos, precisam de tempos de tratamento muito mais longos e podem exigir tratamento em unidades de terapia intensiva”, como explica, de acordo com o The Guardian, Margaret Chan, ex-diretora geral da Organização Mundial da Saúde.
Segundo a União para o Controlo Internacional de Cancro (UCIC), “a resistência antimicrobiana (RAM) ou resistência a medicamentos, incluindo resistência a antibióticos, é um problema de saúde pública crescente e precisa de atenção urgente dos países ao redor do mundo. Estima-se que 750.000 pessoas morrem anualmente de infeções resistentes a medicamentos e até 2050 esse número pode chegar a dez milhões e custar mais de 100 biliões de dólares (mais de 935 mil milhões de euros) sem ação coletiva”.
“A resistência antimicrobiana também causa uma pressão sobre os sistemas de saúde. Muitos estudos demonstraram as consequências financeiras da RAM, incluindo custos de saúde extremamente altos devido a um aumento nos internamentos hospitalares, internamentos mais longos, mais unidades de terapia intensiva e leitos de isolamento e terapia intensiva caros. Os profissionais de saúde também são forçados a usar antibióticos menos convencionais ou uma combinação de diferentes antibióticos para tratar essas infeções, que geralmente são mais caros e que também podem ter efeitos colaterais graves”, explica ainda a UCIC.
A ReAct, “uma das primeiras redes internacionais independentes a articular a natureza complexa da resistência aos antibióticos e os seus fatores”, como explica o próprio site, destacou ainda, num artigo, que “a resistência aos antibióticos não é apenas uma ameaça futura; está a acontecer aqui e agora”. “Com 106 milhões de novos casos/ano, as consequências da resistência total seriam devastadoras”, alerta.
Em Portugal, as consequências mais graves da resistência a antibióticos, inclusive o risco de morte, faz-se sentir, na sua grande maioria, nos pacientes com idade superior a 65 anos, como destaca um relatório desenvolvido pela Ordem dos Médicos portugueses. Ainda assim, a ReAct destaca que cerca de “214.000 recém-nascidos morre a cada ano por infeções do sangue (sepse) causadas por bactérias resistentes – representando pelo menos 30% de todas as mortes por sepse em recém-nascidos”.
Os médicos têm sido, por isso, pressionados a reduzir as suas prescrições de antibióticos de modo a retardar a resistência antimicrobiana. No entanto, e segundo o The Guardian, as autoridades médicas já vieram sublinhar que cerca de dois terços da totalidade dos antibióticos são utilizados não em humanos, mas em animais de criação. A Organização das Nações Unidos também já criticou publicamente esta prática, acusando-a de ser a origem de uma “pandemia silenciosa”. “Reduzir o uso de medicamentos antimicrobianos nos sistemas de alimento é chave para conservar a sua eficácia”, acrescenta ainda.
Segundo o comunicado da ONU, este tipo de drogas “são administradas aos animais não apenas para fins veterinários (para tratar e prevenir doenças), mas também para promover o crescimento em animais saudáveis”. Esta prática pode levar “a um aumento preocupante da resistência aos medicamentos, tornando as infeções mais difíceis de tratar”.
Este tipo de antibióticos é administrado a maioria das vezes em animais que vivem em condições precárias, desenvolvendo, por isso, vários tipos de doenças, uma realidade bastante comum. Segundo um relatório do Serviço Nacional de Informações sobre Doenças Animais do Reino Unido, 80% de todos os suínos criados no Reino Unido desenvolveram pneumonia, ainda que em níveis variáveis.
Bejaoui apresentou o seu estudo no Congresso Europeu de Microbiologia Clínica e Doenças Infeciosas, em Lisboa, o domingo passado. Apesar da sua investigação ter ainda de provar que “as linhagens foram passadas de porcos para humanos”, o estudo deixa já claro que “as quintas que usam antibióticos estão a criar condições que permitem que as linhagens resistentes floresçam, sendo que acabarão por infetar os humanos”, reforça.