Para Jorge Silva, 47 anos, o botox mudou-lhe o dia a dia. “Desde que comecei o tratamento de injeções de botox na cabeça que passei a ter menos enxaquecas e uma melhor qualidade de vida”, conta o motorista de pesados, que agora tem a doença mais controlada. “Era um martírio viver com estas dores terríveis, que me impediam de ter uma vida normal”, desabafa, explicando que perdeu a conta às vezes que teve de parar o camião, durante as viagens que faz entre Portugal e Bélgica, para se fechar num local escuro e sem o mínimo barulho. Ainda hoje esta estratégia também é usada pela diretora de marketing Sónia Moreira, 47 anos, por causa da forte sensibilidade à luz e ao ruído que as dores provocam, além de fazer algumas terapias que a têm ajudado a aliviar os sintomas.
A primeira vez que Andreia Costa, neurologista da consulta de cefaleias do Hospital de São João, aconselhou Jorge Silva a fazer o tratamento com injeções de botox, o motorista de pesados recusou. Estranhou e até se assustou um pouco com a possibilidade de ser picado em vários pontos da cabeça. Mas a neurologista sossegou-o, explicando que esta injeção da toxina botulínica é administrada trimestralmente pelo médico em, pelo menos, 31 locais definidos na cabeça, aliviando a dor e prevenindo novas crises. E que é um tipo de tratamento preventivo para doentes com enxaqueca crónica, como a que Jorge Silva tem e “que se caracteriza por ser uma dor de cabeça que dura mais de 15 dias por mês, sendo que, pelo menos, oito deles têm de ser enxaqueca, mas não necessariamente dias seguidos”, explica a médica. “Esta injeção vai modular as vias responsáveis pela dor da enxaqueca e, por consequência, aliviar esse mesmo sintoma”, resume a também docente na Faculdade de Medicina do Porto.
“Já não aguentava mais”
Jorge Silva ainda demorou algum tempo a decidir-se pelo tratamento de botox, até ao dia em que as crises se tornaram cada vez mais insuportáveis. “Tinha enxaquecas durante 72 horas. Um dia, entrei consultório dentro e disse à doutora: ‘Já não aguento mais este sofrimento.’” A primeira vez que foi fazer o tratamento estava um pouco apreensivo. Mas correu bem. “Primeiro, administraram-me injeções na testa, na zona das sobrancelhas. Depois, deitei-me de lado, na maca, e comecei a sentir picadelas atrás das orelhas, na nuca e nos ombros”, lembra, acrescentando: “Não senti qualquer tipo de dor, apenas uma sensação de piquinhos.” Meia hora depois já estava a sair do hospital, sem precisar de recobro. Apenas tinha de ter o cuidado de não lavar a cabeça naquele dia e de descansar.
A médica Andreia Costa avisa que estas sensações são normais e que, depois, os doentes acabam por relatar grandes melhorias com este tipo de tratamento. Como acontece com Jorge Silva, que ainda agora não entende o motivo destas dores. “Não fumo. Talvez seja do stresse e de ter deixado de dar aulas de artes marciais.” A neurologista aconselha, por isso, a ter um estilo de vida saudável com uma boa higiene de sono, exercício físico regular e uma alimentação cuidada, para ajudar a prevenir o aparecimento das crises. Como faz Sónia Moreira, que pratica exercício físico, como caminhadas, e tenta evitar determinados alimentos, como queijo e citrinos, que podem acentuar as cefaleias. A neurologista realça que “alguns alimentos têm uma relação mais direta com a enxaqueca” e acrescenta à lista o vinho tinto.
“Consigo controlar as crises”
Agora, a diretora de marketing anda melhor. “Não consegui vencer a enxaqueca, mas consigo controlá-la com medicação, descanso, isolamento e, por vezes, com algumas terapias como hipnose ou reiki”, conta. Lembra-se bem das “crises mais graves que ocorreram durante períodos de intenso trabalho e muito cansaço acumulado”. É terrível quando fica com sensibilidade à luz e ao ruído e, por vezes, até aos cheiros. A neurologista diz que é normal isso acontecer. “Muitos doentes sentem incapacidade de tolerar a luz [fotofobia] e os barulhos, o que designamos por fonofobia.” Sónia Moreira tem de se deitar logo na cama, tal é a intensidade das dores. Aconteceu o mesmo a Jorge Silva, há algumas semanas, quando seguia ao volante do camião, a poucos quilómetros de Paris, e teve de encostar na berma. “As dores eram tão insuportáveis que tive de interromper a viagem em direção a Portugal e só retomei a jornada no dia seguinte”, conta. Teve de se isolar num espaço com tudo escuro e sem qualquer tipo de ruído.
Ambos se queixam do grande impacto que as enxaquecas têm na sua vida –a o ponto de influenciar a rotina diária. “É uma doença incapacitante e desesperante e, mesmo tomando a medicação, não passa”, lamenta a diretora de marketing. Quando começa a sentir a chegada de um episódio, Sónia Moreira toma logo, em SOS, um comprimido zomig para não entrar numa espiral de sintomas. Sabe que medicamentos analgésicos como ben-u-ron ou brufen não aliviam as dores. “Por vezes, tomo nimesulida.” Os sintomas são tão perturbadores que não consegue trabalhar. “Tenho vómitos, náuseas, falta de apetite e uma sensação como se tivessem a mexer-me numa ferida aberta na cabeça, sinto-a latejar”, descreve. As crises chegam a prolongar-se durante três dias, como acontece com Jorge Silva, que diz que até parece que “sente a pulsação dentro da cabeça”. A neurologista explica que “este tipo de cefaleia se caracteriza por ser uma dor unilateral, pulsátil. Por norma, as pessoas descrevem um coração a bater na cabeça, com uma intensidade moderada a intensa, severa e acompanhada de outros sinais como vómitos ou náuseas”. Algumas pessoas relatam ficar com uma aura, como Sónia Moreira. A médica do Hospital de São João sublinha que este fenómeno neurológico acontece em um quarto dos doentes. “E que a aura se caracteriza por fenómenos visuais, como alteração da visão, que fica enevoada, seguida de fenómenos brilhantes que duram até uma hora.”
Viver um dia de cada vez
As primeiras enxaquecas começaram há quase 20 anos, ainda a diretora de marketing frequentava a universidade. Coincidiam com a altura do período menstrual. A neurologista explica que “parece haver uma relação direta da enxaqueca com a alteração dos níveis de estrogénios durante a fase menstrual”. Por isso, aconselha, “a estratégia pode passar por fazer o tratamento com medicamentos para enxaqueca ou fazer uma pílula contínua, para não ter a queda de estrogénios durante o período menstrual. Ou então tomar um suplemento de estrogénios durante aquele período”.
Ainda hoje Sónia se queixa das dores nessa altura do mês. “Só que as crises podem agravar-se se estiver sob muito stresse laboral, se de repente receber um má notícia ou se estiver num ambiente em que a temperatura muda bruscamente”, descreve. “Mas o meu neurologista já me informou de que há uma expectativa de melhorar com a menopausa.”
Por isso, é viver um dia de cada vez e aprender a lidar com o facto de não saber quando uma enxaqueca vai surgir. Jorge Silva remata, satisfeito: “A minha vida deu uma volta de 180 graus. Finalmente, chego a casa de viagem e já não me fecho no quarto com as dores. Posso brincar com o meu filho pequeno e conviver com a família.”
Tratamentos para a enxaqueca
A abordagem terapêutica da enxaqueca depende da intensidade e da frequência das crises. Há vários tipos de medicamentos, injeções de botox e até um spray para controlar e aliviar as dores e prevenir as crises. A neurologista Andreia Costa, da consulta de cefaleias do Hospital de São João, explica à Visão Saúde os tratamentos que existem
Tratar a dor imediata
Quando a enxaqueca está instalada, são várias as opções para aliviar a dor. A neurologista chama-lhe “tratamento agudo”, porque é feito no imediato.
- Analgésicos: O paracetamol
Usado para aliviar a dor, é considerado um dos tratamentos de primeira linha. “É aquele que tem mais evidência científica para o tratamento de uma doença, recomendado para ser usado em primeiro lugar”, explica a neurologista.
Anti-inflamatórios
Os anti-inflamatórios não esteroides também têm um efeito analgésico, sendo eficazes no alívio da enxaqueca, esclarece a especialista. São exemplo deste tipo de medicamentos o ácido acetilsalicílico (aspirina), o ibuprofeno (brufen), o diclofenac, que é o voltaren, e o naproxeno, que é o naprosyn ou nimesulida (nimed), entre outros. No entanto, alerta a médica, estes fármacos têm efeitos gastrointestinais, cardíacos e renais, não sendo por isso aconselhados para pessoas com doença inflamatória intestinal.
- Triptanos
Os médicos prescrevem triptanos quando o doente já não responde ao paracetamol nem aos anti-inflamatórios não esteroides, e quando tem contraindicações para a toma de um anti-inflamatório, como uma doença inflamatória intestinal, resume a neurologista. Estes medicamentos são seguros e muito eficazes, porque vão “atuar diretamente no mecanismo que causa a dor na enxaqueca, ou seja, em recetores específicos da serotonina”. Segundo a médica, a serotonina é um neurotransmissor – uma substância química que transmite impulsos nervosos ao longo do espaço entre as células nervosas, cujo fenómeno é denominado sinapse. Esta hormona está, por exemplo, relacionada com o humor e o sono, mas também está ligada à ansiedade, às dores de cabeça e à falta de apetite.
“Os triptanos não foram estudados em doentes que tiveram doença vascular cerebral ou cardíaca, pelo que devem ser ponderados os benefícios e riscos neste doentes”, alerta a neurologista. Para obter um efeito mais duradouro do tratamento, o doente pode associar os triptanos com os anti-inflamatórios. Também pode juntar medicamentos para os vómitos, ou seja, os antieméticos como a metoclopramida (primperam), que vai ajudar no controlo das náuseas e dos vómitos, além de potenciar os efeitos dos outros medicamentos que está a tomar.
Tipos de triptanos:
1. Comprimido que o doente toma na fase aguda da enxaqueca. Um destes fármacos é o zomig, que está indicado para o tratamento da enxaqueca com ou sem aura.
2. Uma caneta que o doente injeta na barriga ou nas coxas. Este medicamento atua mais rapidamente na dor, aliviando-a. Chama-se imigran.
3. Spray nasal aplicado diretamente no nariz. Controla a dor. É uma boa opção para as pessoas que têm muitos vómitos no início da dor e que, se tomarem um comprimido, vomitam-no.
- Ergotamínicos
Este grupo de medicamentos também é usado para o tratamento da crise da enxaqueca. Existe o Migrétil em forma de comprimidos, que é um medicamento combinado que inclui ergotamina, cafeína e outros compostos que, em muitos doentes, aliviam a dor de cabeça. A neurologista adverte, contudo, que “como este fármaco é combinado, pode causar efeitos secundários, como náuseas e vómitos, e ocasionar mais rapidamente cefaleia por uso excessivo de medicamentos”. Também deve ser evitado em doença arterial coronária e hipertensão não controlada, avisa a neurologista, que, por causa de todas estas contraindicações, não costuma prescrever este fármaco.
- Aparelho cerebral
Através deste dispositivo que tem um elétrodo, é feita uma neuroestimulação num nervo, chamado trigémio. Põe-se o pequeno elétrodo na parte da testa que se encontra entre as sobrancelhas. Depois, coloca-se por cima um dispositivo (Cefaly) que se encaixa sobre o pino do elétrodo. A seguir, carregar num botão e inicia-se a neuroestimulação, que pode ser de diferentes tipos para tratar a crise, para a prevenir ou para combater o stresse. “Estimula os nervos supraorbitários na zona da testa, aliviando a dor aguda, mas também pode funcionar como tratamento preventivo”, explica a médica. Está à venda em Portugal, mas não é comparticipado.
- Injeção
É um anestésico local (lidocaína) que é injetado nos nervos específicos na região occipital, ou seja, na parte de trás da cabeça, descreve a médica. “Este tratamento é eficaz no alívio agudo da dor de cabeça.” Também se pode usar como preventivo.
Ação preventiva
Para reduzir a frequência e intensidade das crises, podem ser feitos certos tratamentos, durante seis a 12 meses, indica a médica:
Anti-hipertensores
O medicamento mais usado é o Propanolol. O doente toma este comprimido de manhã e à noite. A dosagem deve ser aumentada gradualmente. Contudo, adverte a neurologista, as pessoas asmáticas não podem tomar estes fármacos.
Antidepressivos
Os antidepressivos são medicamentos que atuam ao nível do sistema nervoso central. “Não prescrevemos pelo efeito antidepressivo, mas porque este fármaco atua nas vias da enxaqueca”, explica a neurologista. A amitriptilina e a venlafaxina são exemplos deste tipo de medicamentos.
Antiepiléticos
Esta classe de fármacos já demonstrou ser eficaz ao atuar contra a dor de cabeça, ainda que seja usada no tratamento de crises epiléticas. “O mais prescrito é o topiramato, que tem ensaios clínicos que comprovam a sua eficácia clínica nestes casos”, resume.
Medicamentos biológicos
Há uma nova esperança para estes doentes com a aprovação, este ano, de três medicamentos biológicos – anticorpos monoclonais anti-CGRP – pelo Infarmed e pela Agência Europeia do Medicamento (EMA). Chamam-se erenumab, fremanesumab e galcanezumab, e vão ajudar a aliviar a enxaqueca. O doente ou um enfermeiro aplica estes medicamentos com uma caneta uma vez por mês, à exceção do segundo, que é administrado de três em três meses. No geral, estes fármacos são bem tolerados pelo doente e apresentam poucos efeitos secundários. Mas os médicos só podem prescrevê-los mediante determinadas condições. “Só podem ser prescritos a adultos que com, pelo menos, quatro dias de enxaqueca por mês e que tenham experimentado, pelo menos, três terapêuticas preventivas sem resultados positivos”, sublinha a neurologista. “O acesso a esta medicação comparticipada necessita de prescrição médica por parte de um médico de um hospital do Serviço Nacional de Saúde (SNS), e está disponível ao nível hospitalar.”
Botox
A injeção da toxina botulínica é administrada pelo médico em, pelo menos, 31 locais definidos na cabeça. Este medicamento injetável é de aplicação trimestral, por norma durante a consulta no hospital onde o doente está a ser seguido. Esta injeção resulta em melhoras ao nível da frequência, duração e intensidade das enxaquecas, porque vai modular as vias responsáveis pela dor da enxaqueca e, por consequência, aliviar a dor. Os doentes relatam ter menos crises. É para casos de enxaqueca crónica.