“É toda uma nova era para a Medicina”, exulta Daniel Anderson, engenheiro biomédico no prestigiado MIT (Massachusetts Institute of Technology), em declarações à revista Nature. O primeiro ensaio clínico em humanos com a terapêutica CRISPR–Cas9, que promete revolucionar o tratamento de doenças genéticas, mostrou uma redução de 87% da proteína responsável pela paramiloidose, mais conhecida em Portugal como a “doença dos pezinhos”. A nova técnica, que no passado mês de outubro valeu o prémio Nobel da Química à francesa Emmanuelle Charpentier e à norte-americana Jennifer A. Doudna, consiste em editar o genoma (ADN) de organismos vivos ou, por outras palavras, interferir na raiz do problema em causa.
No caso da paramiloidose, a chave está em bloquear o gene responsável pela produção de uma proteína chamada transtirretina, que o organismo destes doentes não consegue sintetizar, por causa da mutação genética rara que está na origem da doença. Mas o alcance destes primeiros resultados promissores é imensamente maior, uma vez que confirma o potencial do CRISPR–Cas9 para tratar as mais de sete mil doenças ligadas a erros genéticos, na sua maioria raras e fatais.
Se estiveram relacionadas com um único gene “defeituoso”, como é o caso da paramiloidose, o processo terapêutico tenderá a ser mais simples, perspetivou à estação televisiva norte-americana CNBC John Leonard, diretor da biotecnológica Intellia, que realizou o ensaio clínico em parceria com a farmacêutica Regeneron, ambas sediadas nos EUA. “O que é particularmente excitante é que conseguimos inativar completamente aquele gene”, destacou, sobre a primeira experiência deste tipo. “O desafio é chegar ao gene que causa doença, por isso começámos no fígado, um órgão no qual há muitos problemas com genes causadores de doenças. Ficou demonstrado que conseguimos alcançar isso com muito, muito sucesso.”
O fígado é o principal produtor de transtirretina no corpo humano e, até 2012, o transplante deste órgão era o único tratamento para contrariar a evolução da paramiloidose, doença hereditária e neurodegenerativa que tem em Portugal um dos maiores focos, com cerca de 1500 casos entre os 50 mil estimados no mundo, segundo a Nature. A tese dominante é mesmo a de que a amiloidose transtirretina (ou ATTR), como é designada lá fora, terá tido origem no Norte do País, na zona da Póvoa de Varzim.
A partir de 2012, o transplante hepático foi sendo substituído pelo primeiro fármaco a chegar ao mercado, concebido para tratar apenas doentes com poucos sintomas (ainda sem a marcha comprometida); e, mais recentemente, surgiram mais duas terapêuticas que abrangem um leque maior de pacientes.
No ensaio clínico realizado com recurso à tecnologia CRISPR–Cas9, seis doentes receberam uma única injeção intravenosa, três com uma dosagem mais fraca e os outros três com uma dosagem mais forte. Nestes, a presença da já referida proteína diminuiu em média 87% (de 80% a 96%), com “poucos efeitos adversos” e todos “leves”, segundo o artigo publicado no jornal científico The New England Journal of Medicine. Resultados tão auspiciosos que, de acordo com a CNBC, as ações da Intellia Therapeutics dispararam 90% após o anúncio público.
Antes, o método CRISPR–Cas9 já tinha sido testado em laboratório, em células removidas e depois reintroduzidas no corpo humano, mas este ensaio clínico é um marco que faz acreditar que, dentro de alguns anos, muitos males genéticos poderão vir a ser corrigidos através desta “arma”. Segundo John Leonard, a Intellia está também a trabalhar em doenças mais comuns, como as cardíacas e a diabetes, mas “especialmente” ao nível da medula óssea, associada a “uma longa lista” de doenças relacionadas com o sangue.