O aumento da procura por procedimentos estéticos para volumizar os lábios, aumentar as maçãs do rosto, melhorar a pele ou resolver o problema do duplo queixo, tem levado também ao aumento da oferta. No entanto, esta nem sempre vem do local mais indicado. Gabinetes de estética onde não trabalham médicos e cabeleireiros têm ganho terreno numa área ainda pouco controlada. Em entrevista à VISÃO, Fernando Guerra, dermatologista, sócio da Sociedade Portuguesa de Dermatologia, fundador do Grupo Português de Dermatologia Cosmética e Estética, Presidente do Conselho Científico da Sociedade Portuguesa de Medicina Estética e autor de vários livros, explica os principais perigos da prática descontrolada da medicina estética no nosso país.
Sente que cada vez mais pessoas procuram procedimentos estéticos para corrigir imperfeições?
É uma procura que tem vindo sempre num crescendo e cada vez mais o crescendo sente-se nos atos não invasivos, em relação aos invasivos. A maior parte das pessoas que me aparece e quer deixar de ter as pálpebras descaídas ou os papos dos olhos, procura algo não cirúrgico, quando eu acho que a única solução para isso, sobretudo em quem tem mais de 60 anos, é fazer a blefaroplastia com um cirurgião plástico.
Desses procedimentos não cirúrgicos, quais foram os mais procurados nos últimos anos?
Preenchimentos com ácido hialurónico, não só nos sulcos nasogenianos, mas para volumização da face e do dorso das mãos, injeção toxina botulínica e lasers no pescoço.
Hoje em dia, a Ordem dos Médicos recebe cada vez mais queixas de casos em que esse tipo de procedimentos estéticos estão a ser feitos por não médicos. Qual o perigo que esta realidade representa?
Fazem de tudo, é possível ir à net e encontrar uma série de pessoas que vão comprando aparelhos e fazendo uma série de coisas, sem saber o que estão a fazer. Não sabem o que é uma drenagem linfática ou uma lipoaspiração e fazem. Eu apanho pessoas no meu consultório a dizer que fizeram toxina botulínica no cabeleireiro. Diz-se que não é um procedimento invasivo, mas é, porque implica injeções para colocar uma substância biológica na pele.
Como é que a toxina botulínica chega a um cabeleireiro ou às mãos de uma esteticista, sendo um medicamento sujeito a receita médica?
É porque alguém a vendeu sem receita médica. Há farmácias que vendem toxina botulínica e uma pessoa vai lá buscá-la sem precisar de papel médico nenhum para isso. Ou então compram diretamente aos fornecedores, ou através de Espanha. Há muitas maneiras…
Quanto ao ácido hialurónico, usado nos preenchimentos, apesar de não ser preciso receita médica para o adquirir, também só devia ser injetado por médicos?
É a mesma coisa, é uma substância injetável que um não médico não pode aplicar. Injetar um produto nos lábios, onde passam vasos sanguíneos, sem saber minimamente anatomia, é muito perigoso. Nós próprios corremos riscos de fazer hematomas e granulomas, mas, se isso me acontecer, tenho uma enzima, chamada hialuronidase, que posso injetar a seguir para tirar os nódulos.
Além disso, não são raros os casos em que pessoas que não são médicas, e que fazem estes procedimentos, injetam substâncias que não têm só ácido hialurónico, mas também compostos plásticos com uma maior duração. O que acontece é que acaba por se ir embora o ácido hialurónico, porque é compatível com a pele e absorvível ao fim de oito a dez meses, e as pessoas depois ficam lá com as bolinhas dos plásticos que aquilo tem associado.
Qual a prática mais perigosa mais difundida no mundo dos procedimentos estéticos ilegais?
Há coisas muito más, as pessoas não sabem os limites. É muito comum aparecerem doentes que tinham olheiras e pálpebras cavadas e foram injetadas com ácido hialurónico, ficando com uns papos onde está o ácido ou, caso a injeção tenha ido demasiado fundo e atinja o nervo ótico, começam a ver duas imagens.
Estes acidentes também podem acontecer a médicos?
Podem, mas os médicos sabem o que estão a fazer, estão cobertos por seguros, têm um curso de medicina, estudam e atualizam-se anual ou mensalmente. Se um erro destes acontece a um médico, as pessoas podem confrontá-lo, seja no sentido de emendar o que está feito, seja judicialmente. Os não médicos são alheios a isso, o que está feito está feito, dá cá o dinheiro. Além de fazerem descontos, às vezes nem passam recibos.
As pessoas acabam por sacrificar a própria segurança em nome do preço?
Já tive pessoas a perguntarem-me quanto levava pela injeção de toxina botulínica e, quando lhes respondi €300, disseram que faziam por €150. Além de as três toxinas botulínicas existentes no mercado não serem baratas, há que considerar o custo da própria responsabilidade. Eu faço uma coisa pela qual tenho responsabilidade, não sacudo a água do capote. A experiência diz muito, mas não quer dizer que no melhor pano não caia a nódoa e eu sou responsável pelas coisas que correm bem e pelas coisas que não correm tão bem.
Já tive uma paciente, a quem tive de resolver queimaduras feitas pelo aparelho de luz intensa pulsada para depilar, de uma esteticista, que fez hipopigmentação por uso errado da intensidade para o tipo de pele, que me disse: “Doutor, já fiz duas sessões daquilo para melhorar as minhas pernas, mas quantas mais é que ainda vou fazer?” Eu respondi que se o problema era esse a solução era fácil, bastava pegar nos recibos que levava do meu consultório e mostrá-los à esteticista para ela pagar. Ao que a senhora responde: “Ah coitadinha ela é esteticista”. Se fosse eu, punha-me em tribunal, porque sou médico e tenho responsabilidade, mas uma esteticista não pode ser responsabilizada.
Os lasers nas mãos erradas também são um problema?
Existem lasers, como os de tipo 4, que são lasers cirúrgicos e que devem ser utilizados exclusivamente por médicos, mas as companhias que os vendem, às tantas, esgotam o mercado médico que os compra. Apesar de existir a valência de dermatologia cirúrgica, não há a de laser. E, portanto, esses lasers são vendidos a clínicas para depilação e usados por esteticistas também para outras coisas. Hoje em dia, não só a depilação, como outras coisas, são feitas, não digo em bancos de jardim, mas dentro de esconsos, cabeleireiros, manicuras.
Estas situações deveriam ser mais controladas?
Eu sou controlado e inspecionado pela Entidade Reguladora da Saúde, mas a ASAE não vai a um cabeleireiro dizer que não pode usar toxina botulínica fora de prazo ou manuseada por pessoas que não são médicos. Pura e simplesmente ignora e as pessoas vão fazendo uma série de coisas para as quais não estão preparadas.
Também existem muitos dentistas a realizar procedimentos estéticos e muita gente confia por considerar que se trata de um médico…
Mas não é. Não tirou seis anos de um curso de medicina. Estudou medicina dentária, teve disciplinas relacionadas com a cavidade oral e os dentes, mas mais nada. Eu já fui convidado por uma clínica do Norte, com viagem paga e pagamento, para ir dar um curso de injetáveis só para dentistas, mas recusei dizendo que não fazia cursos para dentistas, apenas para médicos de medicina interna, medicina estética ou médicos dermatologistas interessados em aprender coisas de medicina estética.
São essas as áreas às quais deveria estar reservada a realização de procedimentos estéticos?
Os cirurgiões plásticos fazem procedimentos que eu não faço, como liftings ou blefaroplastias. Faço laser, rejuvenescimentos, injeção de toxina botulínica e preenchimentos, não só porque são coisas relacionadas com a área da dermatologia, mas porque comecei a trabalhar com elas há muitos anos e sei o que estou a fazer. Mesmo médicos, há pessoas que usam laser, por exemplo, e não o sabem usar.