Conheço um Escritor’ é uma iniciativa conjunta da VISÃO Júnior, do Plano Nacional de Leitura e da Rede Nacional de Bibliotecas Escolares.
Tu podes ser o próximo entrevistador da VISÃO Júnior! De todas as perguntas que recebermos, vamos escolher os autores das melhores para irem falar com os escritores convidados. Envia as tuas questões para o escritor Valter Hugo Mãe até 7 de Abril e as perguntas para Margarida Fonseca Santos até 30 de Abril para escritoresjunior@visao.impresa.pt
Os cinco repórteres eram Ana Varela, 13 anos, Pias; Rafael Antão Pereira, 10 anos, Massamá; Bruna Lage, 12 anos, Renata Corte Real, 13 anos, e Débora Ventura, 13 anos, Lisboa. Todos escutaram a escritora com muita atenção. Lê, aqui, mais perguntas e respostas que não entraram na edição impressa.
Onde vai buscar as ideias para as histórias?
Vou buscar à vida. Mas não as aceito tal qual como recebi. Transformo as situações que me incomodam e a que quero dar solução. Procuro um sentido para os episódios que me impressionam, e que não entendo. As situações absolutamente mágicas que acontecem, guardo-as e escrevo sobre elas.
Qual a pergunta que ainda não lhe colocaram até hoje e a que gostaria de já ter respondido?
Nunca ninguém me perguntou se eu me importava de morrer. Nós não nos perguntamos isso. No entanto, é uma dúvida que nós todos temos, sobretudo a partir de uma certa idade ou quando a gente percebe que há amigos, pequeninos, que desaparecem. A mim aconteceu-me muitas vezes: quando eu era pequena, as crianças morriam muito, e eu perguntava-me: “Será que me importo de morrer?” É uma pergunta muito difícil, não é?
Que conselhos daria a quem deseje vir a ser escritor?
São dois conselhos. Primeiro: que, antes de ser escritor, fosse um grande leitor. Que lesse muito, que escolhesse bons livros que se adaptassem a si e à sua idade. Segundo conselho: que começasse a escrever, e mostrasse às pessoas à sua volta, mas que não tivesse pressa de publicar. Começar a pensar na publicação de um livro é quando a pessoa já tem a certeza de que aquilo que fez pode ter algum interesse, mas, antes, tem de se ter paciência. Por isso, o grande conselho é que seja persistente e paciente, que crie uma relação permanente, intima, com os livros e com o caderno onde vai escrevendo.
O livro O dia dos prodígios fala de coragem e de coisas menos conhecidas. Como conseguiu falar de factos reais através do misticismo?
O que eu fiz em O dia dos prodígios foi mergulhar naquilo que eu sabia em relação aos costumes daquela região. Costumes onde o real e a fantasia estavam misturados, como é próprio das zonas rurais, onde as pessoas ainda pensam que os objetos têm alma. Escrevi esse primeiro livro, depois de ter lido romances sul-americanos que tinham explorado essa dimensão mágica. Coisa que, aqui na Europa, não era hábito fazer-se. Portugal vivia então uma grande mudança. As pessoas que estavam a querer modificar o país não eram capazes de entender que outras ficavam para trás porque não tinham as mesmas ideias. Foi a essa espécie de desentendimento profundo a seguir à revolução, que era vivido num clima de alegria porque se sabia que tudo se ia modificar, que fui colher a inspiração.
Com que idade começou a escrever?
Muito cedo. Comecei a escrever quando aprendi a escrever. Aprendi a escrever na escola como toda a gente. Mas, por razões familiares, tinha uma pequena biblioteca em casa, o que era muito raro na altura, onde eu vivia. Como não tinha irmãos nem crianças junto de mim, comecei a ler livros. Mas não aceitava as histórias tal como os livros as narravam: fazia uma espécie de continuações, para alterar os finais. Tinha nove anos quando comecei a fazer isso com mais intensidade. Aos 10 anos, tinha o início de um romance. Claro que não prestava para nada, mas era um treino. Na escola, muitos dos meus colegas escreviam mas nem todos foram persistentes. A escrita continuou a ser sempre a minha companhia, e sei que teria continuado mesmo que não tivesse publicado livros. O meu pai escreveu sempre e a minha mãe, uma senhora com oitenta e tal anos, escreve todos os dias. E quando eu lhe pergunto porquê, ela diz-me que escreve para organizar a vida e para não esquecer.
Se não fosse escritora, o que gostava de ser?
Muitas coisas! Possivelmente tantas quantas as personagens que tenho inventado. Talvez o dar aulas fosse uma substituição, porque me permitia fazer aquilo que fiz durante muito tempo: falar de escritores e de livros aos alunos. Foi uma escolha que tive de fazer: conseguiria escrever apenas, ou tinha de ter uma profissão paralela? Eu fui professora. É uma profissão magnífica, que não deixa que o tempo passe por nós. A sensação de sermos o elo de uma cadeia de transmissão é um sentimento magnífico.
Viveu em Moçambique, em Angola e em Portugal. Se pudesse escolher, em que país preferia viver?
Eu escolhi, e vivo aqui. Mas gostaria muito de voltar a viver em Moçambique. Foi uma terra que me marcou muito e de que gosto imenso.
Vila Maninhos, a terra inventada do livro O Dia dos Prodígios, tem alguma coisa a haver com Boliqueime?
Vila Maninhos é uma transfiguração dos lugares de Boliqueime, de Alte e de Paderne. Uma vez, uma pessoa disse-me: “Ah, fui a Vila Maninhos e gostei muito.” Fui incapaz de o corrigir. Achei que ela não estava a mentir: era uma confusão. Eu vejo esse sítio sobre o qual escrevi. Não tem as cores claras do cinema ou da televisão, é uma coisa penumbrosa mas que brilha. É assim um pouco esfumado, tem cinzentos lá dentro, existe o vermelho das bandeiras, mas é tudo visto como num sonho. Há muita relação entre a atmosfera dos sonhos e a da ficção e da leitura. Quando lemos, não imaginamos as cenas com cores muito vivas. A nossa imaginação é outra coisa. Mas um dia vai ser possível fazer filmes assim.
Quem é Lídia Jorge?
A Lídia Jorge nasceu a 18 de junho de 1946 em Bolíqueime, no Algarve. A escritora era filha única e os livros foram a sua grande companhia durante a infância. Mas levou algum tempo até ela se decidir a publicar romances… Primeiro, foi professora do ensino secundário, atividade de que gostou muito. Uma experiência importante na sua vida foi o ter vivido alguns anos em Angola e Moçambique, durante a guerra colonial. Ela ficou tão impressionada com o que viu que escreveu o romance A Costa dos Múrmurios, que até já foi adaptado ao cinema. Os seus dez romances para adultos – que lhe valeram 14 prémios literários -, têm nomes originais como O Dia dos Prodígios ou O Vento Assobiando nas Gruas. E escreveu ainda dois livros infantis, O Grande Voo do Pardal e Romance do Grande Gatão.