Conheço um Escritor’ é uma iniciativa conjunta da VISÃO Júnior, do Plano Nacional de Leitura e da Rede Nacional de Bibliotecas Escolares.
As nossas quatro “repórteres” selecionadas conheciam de cor os livros e as músicas do Sérgio Godinho, e provaram que não tinham “o acesso bloqueado”, como diz a canção do último disco. Quem são? A Ângela Colaço Vaz, 11 anos, veio de Pias; a Ana Maria Fonseca Dias, 11 anos, é de Coimbra; a Joana Costa e a Beatriz Cunha, ambas com 10 anos, são de Oeiras. Aqui, podes ler a segunda parte da entrevista – a primeira está na versão impressa.
Tu podes ser o próximo entrevistador da VISÃO Júnior! De todas as perguntas que recebermos, vamos escolher os autores das melhores para irem falar com os escritores convidados. Envia as tuas questões para o escritor Valter Hugo Mãe até 7 de Abril para escritoresjunior@visao.impresa.pt
O que é mais difícil: escrever ou cantar?
São desafios diferentes. Ao compor uma canção, tenho que criar a música e ver se esta encaixa na letra que vai aparecendo. Cantar é outro trabalho. Aliás, quando estou a compor, também estou a cantar: estou a imaginar como vai sair em canção. O cantar é algo natural, mas é uma tarefa difícil pelo trabalho que envolve com outras pessoas. No palco, cantar é também comunicar com o público. O escrever, seja uma letra, um poema ou uma música, é uma atividade mais solitária.
Quando escreve canções, escreve primeiro a letra ou compõe a música?
Muita gente pensa que começo por fazer a letra. De facto, começo geralmente pela música. E quando aparece a letra, já há dinâmicas musicais. Até mesmo em canções que fiz com os outros: por exemplo, uma música que fiz com os Clã, e que se chama O sopro do coração, escolhi primeiro a música feita pelo Helder [Gonçalves] e depois inventei a letra.
Tem fontes de inspiração?
Tenho, mas são difíceis de identificar. Podem ser pessoas, que te inspiram a falar de amizade, de amor, ou até de algo negativo. Às vezes, a inspiração encontra-se noutras canções, num filme ou num romance, num poema ou numa frase. E também há alturas em que estamos mais ou menos inspirados. Eu vivi nove anos fora de Portugal, e as inspirações também são diferentes consoante os lugares onde estamos, as pessoas que estão à nossa volta, a língua em que se fala.
Teve sempre êxito?
Tive muitos êxitos. Mas depende do que se entende por isso. Por exemplo, este meu último disco, Mútuo consentimento, esteve no primeiro lugar do top: foi o disco mais vendido. Claro que ficamos contentes porque é o reconhecimento do nosso trabalho. É um trabalho coletivo porque há músicos que trabalham comigo de perto e que são parte importante do que faço. Tenho muitos prémios e troféus, e reconhecimento é bom, mas isso não é mais importante que o prazer e o gozo no trabalho.
As crianças gostam muito da canção O acesso bloqueado. Isso surpreendeu-o?
Houve um disco infantojuvenil que fizemos, Os amigos do Gaspar, que tem canções como o É tão bom, de que as pessoas mais velhas também gostavam. Mas tanto crianças como adolescentes gostam muito de muitas das minhas canções, porque há qualquer coisa musical que os atrai. Acesso bloqueado tem dinâmicas rápidas. Percebo que as crianças possam gostar e fico contente.
Tem algum blogue?
Não tenho. E também não estou no Facebook, porque tinha que estar a responder a muitas pessoas e a alguns chatos. É mais uma questão prática, a de não ter tempo.
Qual foi a sua primeira obra, e a que teve mais êxito?
Se falamos de discos, foi Os sobreviventes. No ano passado, fez 40 anos que foi editado. Houve discos meus que tiveram mais sucesso, outros menos. Foram aparecendo canções: o Brilhozinho nos olhos, O primeiro dia. Mas tive muitas outras: Cuidado com as imitações, Espalhem a notícia, É terça-feira, A noite passada…As canções ficam mais conhecidas por alguma razão. Mas para mim não valem mais do que as outras. Adoro algumas das minhas canções que não ficaram conhecidas. Não posso é dizer quais!
Porque é que se dedicou mais à escrita de letras para músicas do que à escrita de livros?
Porque comecei a perceber que tinha jeitinho, e sempre gostei muito de música. Comprei a minha primeira viola aos 15 anos, com um trabalho que fiz no verão. E tocava, aprendia os acordes das canções dos outros, o que é muito importante. Depois, comecei a perceber que as canções que eu fazia agradavam a mim e aos outros. Isso teve um efeito multiplicador. Começa a ser uma coisa que apetece praticar mais e mais. Quando comecei a fazer o meu segundo disco, aconteceu-me aquela coisa: “Será que eu vou ser capaz de fazer outro conjunto de canções”? Quando se acaba um disco, ficamos sempre um bocadinho vazios e dizemos que não nos apetece começar logo a compor canções.
Qual foi a obra que gostou mais de escrever? E a que lhe custou mais a escrever?
Eu demoro tempo a escrever, porque não fico logo contente com o que faço. Há partes que saem rapidamente. Mas até haver um todo que esteja bem, que seja coerente, demora mais. Tudo custa, mas isso não quer dizer que ande ali a sofrer. Há dias em que quando estou a compor, é bom ter prazos porque puxa por mim. Mas há alturas em que estou a trabalhar, à noite, e parece que não sai nada. Mas, na manhã seguinte, aparece uma ideia.
Escreve à mão ou ao computador?
As duas coisas. Sou de um tempo em que não havia computadores, mas também não escrevia à máquina. Curiosamente, só há uns dez anos é que comecei a escrever em teclados. Agora, há muita coisa que escrevo diretamente no computador. Mas quando estou noutros sítios, tenho cadernos em que faço anotações. A escrita à mão é muito pessoal
Qual poema ou canção é que dedicava às crianças do país?
Não sei. Se calhar, a do Primeiro gomo de Tangerina, que é sobre experiências na vida, e de como vamos crescendo através delas.
Lembra-se de todos os poemas e canções que já escreveu?
Não, não. Mas não uso ponto nem papéis escritos. Nos espetáculos.
Tem boas recordações do tempo em que morou noutros países?
Sim. Também tenho algumas más recordações. É importante viver-se noutro local, noutro país, durante um tempo. Olha-se para a realidade de um modo diferente. Aprende-se sobre os outros e sobre nós. Porque os comportamentos são diferentes, os costumes são diferentes, os idiomas também. Faz-nos crescer na cabeça, e isso é bom. O que não é bom é as pessoas terem que emigrar por necessidade económica, o que está a acontecer muito. Saí de Portugal em 1965, quando tinha 20 anos, para estudar psicologia na Suíça. Foram anos muito intensos e felizes.
Quem é Sergio Godinho:
O Sérgio Godinho é um homem dos sete ofícios: já foi ator de teatro e realizador de filmes, e é cantor, compositor, poeta, escritor de livros para crianças… Nasceu no Porto, a 31 de agosto de 1945, mas mora em Lisboa. Aos 18 anos, foi estudar Psicologia para a Suíça. Mas também viveu em França, no Canadá e no Brasil. Aos 26 anos, lançou o seu disco de estreia, Os sobreviventes. Hoje, tem mais de trinta discos editados, a solo e com outros artistas portugueses e estrangeiros. Escreveu obras literárias como O Pequeno Livro dos Medos e canções poemas como O Primeiro gomo da Tangerina. Ele diz que tudo surgiu da “vontade de criar”.