‘Chorei muito. Muito. Demais. Agora, já não consigo chorar. E ainda bem. Sou um homem. Não preciso de chorar.” Apesar da cara de menino e da timidez aparente, há qualquer coisa em Farid que confirma as suas palavras. Uma determinação indefinida no olhar, a autoconfiança desafiante no tom de voz, o sorriso sereno a maturidade forçada de quem nunca teve infância. Sentado numa sala do Centro de Acolhimento para Crianças Refugiadas, em Lisboa, Farid Walizadeh, 16 anos, conta a sua história com desassombro e sem o mais leve sinal de autocomiseração.
Quando tinha oito anos, conta, foi posto fora de casa pelo tio, que cuidara dele desde o dia em que os pais o abandonaram, na cidade de Puli Khumri, no Nordeste do Afeganistão.
Entregue aos serviços de um “agente”, seguiu com um grupo de desconhecidos, fugitivos da guerra e da fome, atravessando as gélidas montanhas em direção ao Paquistão, a centenas de quilómetros de distância.
Alguns iam de cavalo ou de burro. O frágil Farid seguia a pé. “O meu tio não pagou o suficiente para eu ter direito a um burro”, diz, num português ainda incipiente.
O verdadeiro perigo só começou do lado de lá da fronteira, na odisseia para atravessar o Paquistão e o Irão, com a Turquia no horizonte. “Sabíamos que se os polícias nos apanhassem batiam-nos, prendiam-nos e depois mandavam-nos de volta para o Afeganistão.” O agente escondia os migrantes em casas devolutas ou em abrigos de animais, onde ficavam horas ou dias, alimentados a pão e, com sorte, tomate. Durante a viagem, uns desapareciam, outros apareciam. Ao entrar na Turquia, após mais uma caminhada desumana pelas montanhas do Noroeste do Irão, a criança já não tinha por perto um único dos seus companheiros originais. Finalmente, ao fim de nove meses, Farid renasceu em Istambul. Ali se encontrava a Europa, do outro lado do Bósforo.
Pátria temporária
O menino de Puli Khumri estava escondido em mais um abrigo temporário, com duas dezenas de pessoas, quando a polícia local irrompeu pela casa. Todos foram algemados e encaminhados para a rua, de onde seguiriam para a esquadra. Só Farid ficava para trás ainda não tinha pulsos para algemas.
“Fui ter com um polícia e pedi-lhe, por favor, que me levasse também. Não queria ficar sozinho.” O Estado turco tratou bem dele. Viveu num orfanato e passou depois para um centro de refugiados; entrou para a escola; mergulhou pela primeira vez no Mediterrâneo e descobriu, da pior forma, que a água do mar não é boa para beber, ao contrário da do rio da sua terra; e percebeu a Seis anos mais tarde, chegou a resposta: Portugal dar-lhe-ia um telhado, no âmbito do protocolo que atribui uma quota anual de 30 crianças refugiadas ao País. A notícia deixou o adolescente desalentado.
De Portugal, só conhecia o nome de Cristiano Ronaldo. E julgava ter encontrado já a sua casa. Mas as burocracias são sempre cruéis na sua indiferença opaca.
Em dezembro de 2012, Farid, então com 15 anos, aterrou em Lisboa e foi encaminhado para o Centro de Acolhimento para Crianças Refugiadas, no parque da Bela Vista. “A adaptação não foi fácil”, recorda a coordenadora da instituição, Dora Estoura.
“É sociável, mas também reservado, com problemas de afetividade.” Durante os primeiros encontros, os assistentes sociais descobriram que o jovem ganhara alguns combates de taekwondo. Foi assim que Orlando Jesus, treinador de boxe do Clube Desportivo de Arroios, recebeu um telefonema. “Vi que o rapaz tinha imensas qualidades importantes no boxe”, recorda Orlando Jesus, que o treina pro bono. “É humilde e dedicado, gosta da modalidade, bate com força, esquiva-se bem dos golpes. Um brilhante por limar. Logo comecei a prepará-lo para atacar o título nacional.” O estatuto de refugiado dava-lhe equivalência à nacionalidade portuguesa, e, cinco meses e quatro combates vitoriosos depois, Farid Walizadeh sagrava-se campeão de cadetes, na categoria de -57 quilos.
Há um mês, porém, deixou de praticar e ficou sem clube, depois de o treinador ter sido eleito presidente da Associação de Boxe de Lisboa. “Eu posso e quero treiná-lo na mesma, mas o novo cargo não me permite subir ao ringue com ele, e um treinador faz muita diferença aí, junto às cordas, durante os combates.” O sucesso no campeonato nacional, atingido numa situação particularmente difícil, levou o júri do Prémio Direitos Humanos, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, a atribuir-lhe uma medalha de ouro, numa cerimónia marcada para o próximo dia 10, no Palácio de São Bento.
Farid não parece deslumbrado. Um outro episódio recente da sua vida ajuda-o a relativizar tudo o resto acredita ter encontrado a mãe. “Um primo pôs-me a falar com ela”, relata, com inédito entusiasmo. “Sei que é a minha mãe: tenho um sinal aqui atrás [aponta para a base da nuca] de que só ela pode saber. E tenho três irmãos e duas irmãs!” A família reunir-se-á com Farid em Portugal, depois de enviar provas de parentesco são frequentes os casos de fraude, buscando alcançar o estatuto de refugiado na Europa.
Agora, mais do que nunca, Farid diz ter um incentivo para fazer algo de bom com a sua vida. Promete dedicar-se com mais afinco aos estudos (frequenta o 9.º ano na Escola 2+3 das Olaias) e fazer os possíveis para chegar a arquiteto, para sustentar a família.
Mas isso só para o caso de a sua primeira e maior paixão falhar. “Quero ser pugilista. Não tenho medo de ninguém. Não tenho medo na cabeça. Não tenho medo da dor. A vida tem muita dor. Dor é bom.” Mas há uma dor que lhe é insuportável: ter uma mala cheia de medalhas e ninguém a quem as mostrar.