Estas são as três histórias vencedoras, do grupo dos 14 aos 16 anos, no passatempo Histórias sem pés mas com cabeça. O título é “Quem Canta melhor?” e as palavras obrigatórias eram “garagem”, “pauta”, “inamovível”, “elétrico”, “apaixonado” e “amarela”. Os nossos leitores aceitaram o desafio e enviaram-nos estas histórias surpreendentes. Parabéns aos três! Clica no nome dos autores para leres as histórias
Inês Dias Ferreira, 14 anos
Leonor Soares Oliveira, 16 anos
Tomás Sousa Ramos, 15 anos
Os vencedores devem escrever para VISÃO Júnior (vjunior@visao.pt) dizendo qual dos três prémios escolhem: o livro Factos Loucos, o livro de jogos ou uma assinatura digital semestral da VISÃO Júnior.
Conhece os vencedores das outras categorias deste passatempo:
Skype, o Cão Maracvilha (dos 7 aos 9 anos)
O Mistério do Prédio Abandonado (dos 10 aos 13 anos)
“Olá! O meu nome é Lara e tenho 15 anos. No ano passado envolvi-me num total pesadelo e até agora ainda não consegui recuperar do trauma. A minha psicóloga aconselhou-me a escrever sobre a minha experiência, dizendo que me iria ajudar a recuperar. A verdade é que, depois de tantas terapias e medicamentos, não tenho muitas mais escolhas. Tudo começou no início do passado ano letivo. Eu era intitulada de “menina perfeita”, pois era boa aluna, tinha um grupo enorme de amigos, a minha família sempre me apoiava em tudo e para inveja das outras raparigas, eu até tinha um namorado. Sabia que a minha vida era perfeita e nunca pensei que as coisas pudessem mudar tanto.
O primeiro dia de aulas era sempre o reencontro de muitos amigos, quando sabíamos o que cada um tinha feito nas férias, e eu adorava saber tudo sobre todos. Quando estava prestes a entrar na sala para a minha primeira aula, reparei que alguém estava a bisbilhotar no meu cacifo e fui lá verificar. Quando cheguei já não estava lá ninguém, apenas uma carta que dizia “Vem ter comigo à garagem abandonada ao fundo da rua às cinco da tarde. Vem sozinha e não te atrases”. Fiquei assustada e sem saber o que fazer. Hoje arrependo-me de ter aceite aquele convite, que viria a desgraçar a minha vida.
Depois da escola, desci a rua e entrei naquela garagem. Estava cheia de grafitis e lembro-me de ouvir um constante pingar de gotas que caíam diretamente do teto para uma poça de água que já se tinha ali formado. Liguei a lanterna do telemóvel para poder ver melhor e encontrei uma pequena divisão decorada com notas musicais. No centro estava uma pequena mesa com o que pareciam ser pautas musicais. Peguei nos papéis e como mais ninguém apareceu, apanhei um autocarro de volta para casa.
Chegada a casa fui para o meu quarto tentar descobrir que melodia aquelas pautas escondiam. Passei a noite em claro, mas, finalmente, já a aurora irrompia pelas árvores refletindo alguns raios brilhantes pela janela, descobri. Era uma melodia muito peculiar e complexa, contudo nunca a tinha ouvido. Pensei que aquilo tinha sido apenas mais uma pequena brincadeira e já tinha acabado. No entanto, estava só a começar…
No dia seguinte, recordo-me de estar a passar pelo auditório e ouvir alguém a tocar a música que eu tinha decifrado. Não hesitei e perguntei à rapariga que estava sentada no piano onde a tinha encontrado. A rapariga era alta e muito, muito magra, tão magra que os seus ossos pareciam sair da pele. Não me recordo muito bem o que ele me disse, mas foi mais ou menos assim: “Toca esta melodia ao contrário”. Fiquei pasmada a olhar para ela, não sei bem por quanto tempo, mas, entretanto, a campainha da escola tocou e nunca mais vi a rapariga.
Por sorte, o meu irmão mais velho já tinha tido aulas de piano e ajudou-me a converter a melodia. Depois do trabalho feito não deixei que ele ouvisse, pois tinha medo do que podia dali surgir. Fugi para o meu quarto o mais depressa possível e comecei a ouvir a melodia que o meu irmão gravou para mim. Começou por parecer tudo normal, até que de repente algumas palavras se desvendavam para fora da melodia deixando uma mensagem enigmática, que contava uma história sobre um concurso de canto que acabou num banho de sangue e que eu era a única pessoa que podia desvendar o mistério. Dizia também que o caso tinha sido arquivado há anos e que era necessário de juntar todas as pistas até chegar ao culpado. A pior decisão de toda a minha vida foi ter aceite aquele estúpido desafio!
Passaram-se semanas e não consegui descobrir mais nada sobre caso. Todos os dias depois das aulas ia para a garagem procurar saber mais sobre aquele concurso. À medida que o tempo passava, eu ficava cada vez mais obcecada e, a pouco e pouco, a minha vida começou a desmoronar-se. Perdi amizades, por andar mais isolada, já não passava tempo em família e por isso as discussões com os meus pais tornaram-se permanentes. Para piorar toda esta situação o meu namorado, o Gustavo, terminou comigo, porque segundo ele, eu já não era a mesma. Deveria ter desistido depois de tantas semanas sem quaisquer avanços na investigação, mas não, aquele caso de alguma maneira já fazia parte de mim e na altura não via nenhum mal nisso, mas agora quando penso no que me aconteceu isso assusta-me.
Decidi começar a passar as noites na garagem e, uma noite, enquanto me preparava para dormir, vi um pequeno símbolo no chão, igual a um que existia na sala de música. Pesquisei sobre ele e descobri que o símbolo afinal representava uma palavra em grego que significava “inamovível”. Achei que não teria nada a ver com o tal concurso que me pediram para investigar, mas eu estava perante a minha próxima pista. Procurei saber mais sobre a palavra para me certificar se tinha outro significado que me ajudasse na investigação. E tinha. Nos anos 90, tinha havido um grupo de cantores amadores chamado Inamovível cujo nome, segundo eles, queria dizer que eles eram inseparáveis. Continuei a pesquisa por curiosidade sem saber que o que estava a ler era a história do tal concurso que tinha acabado em sangue. De acordo com aquele artigo todas as semanas eles organizavam um pequeno concurso, o famoso “Quem canta melhor?”.
A 17 de outubro de 1983, enquanto descia a avenida principal, o grupo foi alvo de inúmeras agressões e nunca se veio a descobrir quem, como e porquê. Não consegui dormir naquela noite com a vontade de saber mais sobre os Inamovível e continuei a pesquisar. Todos os sites e jornais diziam a mesma coisa, e quando eu estava prestes a perder a esperança encontrei, debaixo de um móvel que havia lá na garagem, uma espécie de diário secreto. O diário falava da história de um dos membros do grupo e contava tudo sobre uma noite preta e vermelha. Aquelas páginas revelavam que aquela garagem, onde eu estava, tinha sido o local onde eles organizavam o seu concurso semanal. Falava sobre como todos se divertiam e era sempre uma noite inesquecível. E uma delas foi inesquecível, mas por outros motivos. Naquela noite, o grupo tinha tido uma horrível discussão por causa de um dos membros que não respeitou os outros e desceu a avenida principal de elétrico, contudo, como era a noite do concurso não quiseram cancelá-lo. Não percebi o porquê de ficarem zangados de alguém ter descido a avenida de elétrico, mas agora que penso nisso deve ter sido porque passou na mesma avenida em que foram vítimas de tão bárbaro ataque.
O diário continuava, e eu estava cada vez mais envolvida naquelas palavras. Relatava todos os pormenores da noite; acabei por descobrir que a fúria de um dos membros o levou a beber pela noite fora fazendo com que já não dissesse coisa com coisa, tornando-se muito violento. Quanto mais o acalmavam, mais ele se enervava e, quando o tentaram expulsar da garagem, ele pegou numa arma que tinha atrás de um dos tijolos soltos na parede e começou a disparar até acabarem as balas. Os únicos sobreviventes foram a pessoa que escreveu o diário e mais dois rapazes que, felizmente, estavam na casa de banho. Fiquei feliz por ter desvendado o mistério, mas agora só penso o quanto fui ingénua por não desconfiar de que tinha sido demasiado fácil desvendar um caso de homicídio que, até ao momento, ninguém, nem mesmo as autoridades policiais, tinha descoberto.
Quando desliguei daquela fantasia e me voltei a juntar à realidade notei o que tinha feito à minha vida. Eu estraguei a minha vida “perfeita” e agora vivia apagada naquela luz que me perseguia. Não aguentei ficar esquecida pelos corredores da escola e ter a minha família sempre a criticar-me. Acabei por entrar numa depressão que ninguém notaria, porque já não havia ninguém para ficar ao meu lado, sendo que a única responsável era eu. Sem me aperceber, em pouco tempo tinha afastado toda a gente da minha vida. Passaram-se meses, estava a piorar cada vez mais e só me lembro de um dia acordar numa cama de hospital rodeada de várias pessoas, entre elas médicos e enfermeiras. Segundo eles, eu tinha-me tentado suicidar e o meu sistema nervoso tinha colapsado. A minha única hipótese de recuperar era ir para uma casa onde tratavam, tal como os médicos afirmaram, “pessoas como eu”. Assim teve que ser.
Quando lá entrei, a minha primeira sensação foi muito negativa. As paredes escuras, os quartos apertados, toda a gente vestida de igual… Aquilo realmente assustou-me. Mas tudo melhorou quando descobri o jardim e a biblioteca. Fiquei completamente apaixonada pelos livros e eles despertaram um novo eu. Estava a melhorar cada vez mais depressa, já pronta para ir para casa quando escolhi um último livro para ler que, por coincidência, tinha como título “Quem canta melhor”. Não me importei, achei que eram coisas completamente distintas e até achei alguma piada à coincidência, mas não eram. O livro contava exatamente a mesma história que o diário que eu havia encontrado na garagem, mas ainda com mais pormenores, o que tornava toda aquela situação bem mais assustadora. No final do livro havia uma carta que me mandava ir até à cozinha e fazer a receita que lá estava. Olhei muito fixamente para a carta, durante longos minutos, sem saber o que iria fazer: por um lado, sabia que aquilo me tinha trazido a este lugar, mas, por outro, tinha uma enorme curiosidade de saber o que aquela receita significaria.
A receita referia ingredientes muito estranhos e que nunca ninguém pensaria em misturar como, por exemplo, cimento picado e cebola às rodelas. No final dizia para meter tudo no liquidificador e servir. Obviamente que eu não tinha intenção de beber aquilo, mas mais uma vez algo estranho aconteceu. Eu, estranhamente, bebi a solução e só acordei, mais uma vez, no hospital. Fiquei confusa porque eu não me lembrava de nada do que tinha acontecido no dia anterior, a não ser ter lido o livro e a receita. Segundo os médicos, eu tinha ingerido um veneno e o meu cérebro iria ficar atrofiado para sempre.
Agora sou considerada uma “tolinha”, pelo menos foi o que me disseram que corre na escola. Claro que a minha mãe foi fazer queixa à Polícia sobre o que se tinha passado. Estranhamente, o tal homicídio de que falava a música, o diário e o livro eram pura invenção. Na Polícia não havia quaisquer registos de um caso semelhante naquela data, e o livro que eu tinha lido não pertencia a nenhum autor e não estava registado em nenhuma editora, foi considerado um livro-fantasma, que aliás deu o nome à investigação que estão a fazer sobre o meu caso: “Operação Fantasma”.
Os médicos aconselharam-me a ficar mais alguns meses no centro de reabilitação, para poder ser vigiada e acompanhada vinte e quatro horas por dia. Habituei-me muito bem ao Centro, fiz novos amigos e até criei um clube com ajuda da minha psicóloga chamado “Os Amarelos”, um clube onde cada um pode falar abertamente sobre os seus problemas ajudando assim à sua recuperação. Dei este nome ao clube pela cor amarela ser uma cor que nos traz harmonia e serenidade, uma cor que mostra que as cores claras conseguem sobressair na maior escuridão.
Até hoje ainda ninguém descobriu quem me fez isto, mas ainda tenho esperança. Sabe-se que o meu caso não é isolado, existem outros adolescestes a sofrer tal como eu. A mesma técnica foi utilizada, ainda que com outras histórias e outros protagonistas. Espero que em breve me possa livrar da medicação e voltar para casa.”
Inês Dias Ferreira, 14 anos
“Se eu vos perguntasse se gostam de fazer arrumações, aposto que conseguiria adivinhar qual seria a vossa resposta: não! Todas as crianças têm coisas mais interessantes para fazer! Uma festa de chá com os nossos peluches ou uma corrida com carros é sempre muito mais divertido do que estar a arrumar caixas e caixinhas… Pois bem, na semana passada não tive escolha: os meus pais decidiram arrumar a nossa garagem e lá fui eu ajudá-los! Mal eu sabia o que viria descobrir…
Já agora, sou a Ana! Quase me esquecia de me apresentar! Tenho nove anos e vivo numa linda casa no coração da cidade Invicta! Sempre morei aqui, com os meus pais e o meu fiel companheiro: o meu cãozinho Max! Gosto de brincar com os meus peluches e com as minhas bonecas e de fazer jogos com os meus pais! Também gosto muito de fazer doces com a minha mãe e de brincar com o meu cãozinho! Mas agora que já me conhecem um pouco melhor, voltemos às arrumações…. Estávamos nós a ver que afinal tudo o que tínhamos guardado na nossa garagem não passava de roupa minha (de quando eu era bebé) e de muita tralha, quando me deparei com algo diferente… Uma das caixas encostadas a um canto não se estava a desfazer, pelo contrário, estava muito bem preservada e tinha escrito: “Recordações da Avó Joana”. Fiquei intrigada e deixei o que estava a fazer para ver do que se tratava!
A minha mãe já me tinha falado da avó Joana, a minha bisavó, mas, até hoje, sabia muito pouco sobre ela…. Sabia que tinha vivido em Lisboa e que tinha tido sete filhos, mas para além disso não sabia praticamente nada acerca da sua vida… Esta era a oportunidade perfeita para descobrir mais sobre a história da família, mais sobre a minha história! A primeira coisa que retirei da caixa foi uma pauta… Mas não era apenas uma pauta de música, era um papel todo rabiscado, cheio de anotações e cujo título não consegui perceber…. Só depois reparei que, onde estava aquela folha de papel, havia muitas mais! Na caixa havia uma pilha de outras pautas, todas elas riscadas e envelhecidas pelo tempo… Enquanto eu admirava aquele papel antigo, sentada no chão da garagem, os meus pais tinham conseguido arrastar uma estante que eu pensava estar colada à parede! Não me lembrava de ela alguma vez ter saído dali e era tão grande que parecia inamovível! E claro, mais caixas para arrumar…
No meio daquela confusão de caixas, estantes, pó e muita tralha, os meus pais tinham descoberto outra caixa com o mesmo autocolante: “Recordações da Avó Joana”. Contudo, nesta caixa estavam muito bem arrumadinhos um xaile preto com um padrão colorido e uma saia, típicos daquelas cantoras de fado que nós vemos na televisão e ainda, no fundo, um pequeno elétrico…. Parecia muito frágil, mas era em tudo semelhante àqueles elétricos que agora passeiam centenas de turistas diariamente pelas ruas movimentadas de Lisboa… Foi então que começámos a juntar as pistas e a viajar na história da minha bisavó! De facto, nas fotografias que estavam espalhadas pela casa, a minha bisavó aparecia sempre vestida com roupas daquele género e não faltava a chamada guitarra portuguesa! Agora tudo fazia sentido! A minha bisavó Joana tinha sido uma fadista em Lisboa!
Dava agora por mim a imaginar concertos à noite nos cafés da cidade das sete colinas, cheios de respeitáveis senhores e senhoras que entravam só para ver quem cantava tão bem! Provavelmente, terá sido numa daquelas noites de fado em que a minha bisavó era o centro das atenções que o meu bisavô percebeu que ela era a tal! Decerto ficou apaixonado por ela logo que lhe pôs os olhos em cima! Ou, talvez, o seu amor tenha surgido porque nunca tinha ouvido uma voz tão bela como a que ela tinha…
Agora que penso nisso, aquele pequeno elétrico amarelo pode ter sido um presente do meu bisavô para a minha bisavó! Como é que terá sido? Será que foi mesmo num daqueles serões que eles se conheceram? Imagino a minha avó, uma rapariga nova e bonita, vestida com aqueles trajes, nervosa por entrar no palco para deleitar os ouvintes na plateia… E as pessoas, apressadas pelas ruas da cidade, a correrem de um lado para o outro, para poderem arranjar um lugar para se sentarem e poderem desfrutar do seu café, enquanto assistiam a um bom espetáculo de fado, uma das tradições mais importantes que Portugal poderia ter! Claro está que a cantora só poderia ser a minha bisavó! A melhor cantora de fado de Lisboa e arredores!
Infelizmente, nunca vou saber se as minhas conjecturas estão certas, visto que ambos faleceram quando eu tinha apenas três anos… Mas posso continuar a imaginar! No fim do dia, após ter visto e revisto todas aquelas memórias da família, percebi que aquela que parecia ser uma simples tarde de limpezas foi, na verdade, uma bela aventura, na qual pude partir à descoberta! Senti-me uma verdadeira exploradora, a juntar todas as peças do puzzle e a tentar imaginar como terá sido a vida dos meus bisavós algumas décadas atrás…. Afinal de contas, é sempre bom conhecer as nossas raízes, de onde vimos! Apesar de não ter conseguido obter quaisquer respostas, sinto que uma parte de mim ficou preenchida por ter tido o prazer e a possibilidade de conhecer algo que até agora não passava de puro mistério!
Quando me preparava para ir para o meu quarto, os meus pais apareceram na garagem, onde eu ainda estava, com uma cassete e um outro papel na mão! Por sorte, o meu pai ainda tinha um leitor de cassetes, que, apesar de muito antigo, funcionava na perfeição! Sei o que estão a pensar e, sim, também estava numa daquelas caixas que arrumámos… Mas não é isso que importa! Vimos a cassete e não podia ter ficado mais fascinada! Era um pequeno vídeo de um concerto da minha bisavó Joana, e a voz dela era simplesmente magnífica! Cantava com o coração! Quanto ao papel, era um diploma, que certificava que a minha bisavó tinha sido a vencedora de um concurso de fado realizado em Lisboa! Poder vê-la foi uma agradável surpresa e algo que me permitiu aceitar as minhas teorias, ainda que ninguém as tivesse confirmado…. Pelo menos, pude ter a certeza de uma coisa: ela era, sem sombra de dúvida, a que cantava melhor!”
Leonor Soares Oliveira, 16 anos
Num dia de verão, numa pequena cidade, estávamos eu e os meus amigos a jogar à bola, quando passou por nós um tipo que andava a distribuir panfletos que faziam publicidade a um concerto de rock na garagem do nosso colega David Alberto. E, como era habitual, alinhámos todos em ir. Essa noite foi inesquecível para mim, digamos que foi a melhor da minha vida.
Estava bastante gente no concerto, mais do que seria de esperar. A música, a comida, as bebidas e o ambiente estavam brutais e, como se não bastasse, bem na última música, os meus amigos, os mesmos com quem eu jogava à bola há umas horas, elevaram-me com os braços e passaram-me por cima da plateia até chegar ao “palco”, que eram basicamente seis paletes de madeira unidas umas às outras. Lá de cima ouvia todos a gritarem o meu nome. Eram duas horas da manhã quando começaram a arrumar as cenas, eu fui ajudar e aproveitei para meter conversa com o David. Começámos a falar, eu disse que tinha gostado do concerto e ele explicou-me umas coisas mais técnicas sobre a sua banda e de como se juntaram. Antes de me ir embora, chamou-me à parte e deu-me uma lembrança daquela noite, que era nem mais nem menos que a pauta com as notas e com a letra da última música, aquela que cantavam quando fui ao palco.
Este cenário repetiu-se todas as noites de sexta-feira durante uns meses e eu estive presente em todas, em algumas delas era chamado ao palco para ser vocalista por uns breves mas bons momentos. Cantava o que estava na pauta que David me dava na véspera do concerto na escola – não é para me gabar, mas arrasei em todas. Comecei a andar mais com a malta da banda e menos com a do futebol, mas continuava a dar-me com eles. Numa das noites de concerto, desta vez no campo de basquete do descampado atrás da escola, David convidou-me para entrar na banda e eu aceitei. Nem fiquei assim tão surpreendido com o convite, praticamente já era da banda. Seja como for, passei a vocalista e o David, que era o antigo, passou a baixista.
Ainda bem que me juntei oficialmente à banda: deu-me mais popularidade, quando precisava, tinha amigos em todo o lado, e deu-me mais experiência no mundo da música. Mas nem tudo era um paraíso, às vezes tinha que disponibilizar o pátio da casa dos meus pais, o que não lhes agradava muito – e o pior de tudo era quando tinha que ajudar a levar as cenas da banda, como a caixa das guitarras, que era praticamente inamovível. Mas mesmo assim foram os melhores anos da minha vida. Dos membros da banda dava-me melhor com o David, que era baixista, e com o Arthur, que tocava órgão elétrico.
Um domingo de tarde estava com eles a beber uma cerveja no “café universitário” e lembrei-me de reunir a malta do futebol, que já não via há muito tempo. Ao reencontrar-me com eles, reparei que vinham com uma rapariga que não estava a reconhecer, mas quando o Rodrigo, o melhor jogador de futebol do grupo, a chamou lembrei-me logo. Era uma rapariga chamada Leonor, que ficava sempre num campo do descampado, e que usava aparelho, óculos e andava sempre com um chapéu à pescador. Admito que não gostava muito dela mas, naquele dia, ela já não tinha aparelho, não usava óculos e já não usava aquele chapéu à pescador. Ela tinha a pele branca como neve, cabelo loiro e olhos azuis, como nunca tinha visto antes.
Já lá iam oito anos desde a última vez que a vira, e acho que vê-la naquele dia em que reuni a malta do futebol com a da banda fez com que, pela primeira vez na minha vida, ficasse redondamente apaixonado. Depois de jogarmos futebol, fui falar com ela e, antes de ir embora, ao despedir-me, convidei-a para vir comigo ao café universitário lanchar antes do meu concerto de sexta-feira. Ela aceitou. Na nossa quinta saída, começámos a namorar. Cinco anos depois, foi o nosso casamento. Nesse dia, a banda que tocou só podia ser a nossa própria banda. Dois anos depois do casamento tivemos o nosso primeiro e único filho que, em memória do falecido líder da banda, David Alberto, se chamou David Fonseca – já que Fonseca é o meu apelido. Quando fez 5 anos, eu e Leonor demos-lhe uma guitarra amarela, e foi essa guitarra que fez com que David ingressasse no mundo da música, e viesse a ser o vocalista de uma das melhores bandas de Portugal, os vossos bem conhecidos Silence 4.”