Se eu vos perguntasse se gostam de fazer arrumações, aposto que conseguiria adivinhar qual seria a vossa resposta: não! Todas as crianças têm coisas mais interessantes para fazer! Uma festa de chá com os nossos peluches ou uma corrida com carros é sempre muito mais divertido do que estar a arrumar caixas e caixinhas… Pois bem, na semana passada não tive escolha: os meus pais decidiram arrumar a nossa garagem e lá fui eu ajudá-los! Mal eu sabia o que viria descobrir…
Já agora, sou a Ana! Quase me esquecia de me apresentar! Tenho nove anos e vivo numa linda casa no coração da cidade Invicta! Sempre morei aqui, com os meus pais e o meu fiel companheiro: o meu cãozinho Max! Gosto de brincar com os meus peluches e com as minhas bonecas e de fazer jogos com os meus pais! Também gosto muito de fazer doces com a minha mãe e de brincar com o meu cãozinho! Mas agora que já me conhecem um pouco melhor, voltemos às arrumações…. Estávamos nós a ver que afinal tudo o que tínhamos guardado na nossa garagem não passava de roupa minha (de quando eu era bebé) e de muita tralha, quando me deparei com algo diferente… Uma das caixas encostadas a um canto não se estava a desfazer, pelo contrário, estava muito bem preservada e tinha escrito: “Recordações da Avó Joana”. Fiquei intrigada e deixei o que estava a fazer para ver do que se tratava!
A minha mãe já me tinha falado da avó Joana, a minha bisavó, mas, até hoje, sabia muito pouco sobre ela…. Sabia que tinha vivido em Lisboa e que tinha tido sete filhos, mas para além disso não sabia praticamente nada acerca da sua vida… Esta era a oportunidade perfeita para descobrir mais sobre a história da família, mais sobre a minha história! A primeira coisa que retirei da caixa foi uma pauta… Mas não era apenas uma pauta de música, era um papel todo rabiscado, cheio de anotações e cujo título não consegui perceber…. Só depois reparei que, onde estava aquela folha de papel, havia muitas mais! Na caixa havia uma pilha de outras pautas, todas elas riscadas e envelhecidas pelo tempo… Enquanto eu admirava aquele papel antigo, sentada no chão da garagem, os meus pais tinham conseguido arrastar uma estante que eu pensava estar colada à parede! Não me lembrava de ela alguma vez ter saído dali e era tão grande que parecia inamovível! E claro, mais caixas para arrumar…
No meio daquela confusão de caixas, estantes, pó e muita tralha, os meus pais tinham descoberto outra caixa com o mesmo autocolante: “Recordações da Avó Joana”. Contudo, nesta caixa estavam muito bem arrumadinhos um xaile preto com um padrão colorido e uma saia, típicos daquelas cantoras de fado que nós vemos na televisão e ainda, no fundo, um pequeno elétrico…. Parecia muito frágil, mas era em tudo semelhante àqueles elétricos que agora passeiam centenas de turistas diariamente pelas ruas movimentadas de Lisboa… Foi então que começámos a juntar as pistas e a viajar na história da minha bisavó! De facto, nas fotografias que estavam espalhadas pela casa, a minha bisavó aparecia sempre vestida com roupas daquele género e não faltava a chamada guitarra portuguesa! Agora tudo fazia sentido! A minha bisavó Joana tinha sido uma fadista em Lisboa!
Dava agora por mim a imaginar concertos à noite nos cafés da cidade das sete colinas, cheios de respeitáveis senhores e senhoras que entravam só para ver quem cantava tão bem! Provavelmente, terá sido numa daquelas noites de fado em que a minha bisavó era o centro das atenções que o meu bisavô percebeu que ela era a tal! Decerto ficou apaixonado por ela logo que lhe pôs os olhos em cima! Ou, talvez, o seu amor tenha surgido porque nunca tinha ouvido uma voz tão bela como a que ela tinha…
Agora que penso nisso, aquele pequeno elétrico amarelo pode ter sido um presente do meu bisavô para a minha bisavó! Como é que terá sido? Será que foi mesmo num daqueles serões que eles se conheceram? Imagino a minha avó, uma rapariga nova e bonita, vestida com aqueles trajes, nervosa por entrar no palco para deleitar os ouvintes na plateia… E as pessoas, apressadas pelas ruas da cidade, a correrem de um lado para o outro, para poderem arranjar um lugar para se sentarem e poderem desfrutar do seu café, enquanto assistiam a um bom espetáculo de fado, uma das tradições mais importantes que Portugal poderia ter! Claro está que a cantora só poderia ser a minha bisavó! A melhor cantora de fado de Lisboa e arredores!
Infelizmente, nunca vou saber se as minhas conjecturas estão certas, visto que ambos faleceram quando eu tinha apenas três anos… Mas posso continuar a imaginar! No fim do dia, após ter visto e revisto todas aquelas memórias da família, percebi que aquela que parecia ser uma simples tarde de limpezas foi, na verdade, uma bela aventura, na qual pude partir à descoberta! Senti-me uma verdadeira exploradora, a juntar todas as peças do puzzle e a tentar imaginar como terá sido a vida dos meus bisavós algumas décadas atrás…. Afinal de contas, é sempre bom conhecer as nossas raízes, de onde vimos! Apesar de não ter conseguido obter quaisquer respostas, sinto que uma parte de mim ficou preenchida por ter tido o prazer e a possibilidade de conhecer algo que até agora não passava de puro mistério!
Quando me preparava para ir para o meu quarto, os meus pais apareceram na garagem, onde eu ainda estava, com uma cassete e um outro papel na mão! Por sorte, o meu pai ainda tinha um leitor de cassetes, que, apesar de muito antigo, funcionava na perfeição! Sei o que estão a pensar e, sim, também estava numa daquelas caixas que arrumámos… Mas não é isso que importa!
Vimos a cassete e não podia ter ficado mais fascinada! Era um pequeno vídeo de um concerto da minha bisavó Joana, e a voz dela era simplesmente magnífica! Cantava com o coração! Quanto ao papel, era um diploma, que certificava que a minha bisavó tinha sido a vencedora de um concurso de fado realizado em Lisboa! Poder vê-la foi uma agradável surpresa e algo que me permitiu aceitar as minhas teorias, ainda que ninguém as tivesse confirmado…. Pelo menos, pude ter a certeza de uma coisa: ela era, sem sombra de dúvida, a que cantava melhor!”
Leonor Soares Oliveira, 16 anos