Depois e duas semanas de avanços e recuos – mais recuos do que avanços –, os 197 países presentes na Escócia para a COP26 assinaram o desejado Pacto Climático de Glasgow. A necessidade de unanimidade na Conferência das Partes, no âmbito das Nações Unidas, dificultou a o acordo – e tornou-o muito mais fraco do que seria necessário, com cada rascunho a ser menos exigente do que o anterior. Estes são os pontos principais do documento final.
Combustíveis fósseis incluídos, mas…
O primeiro rascunho, documento que os representantes dos 197 países usaram como base de negociação, incluía uma frase histórica, ainda que as subtilezas lhe tirassem força: “Exorta as Partes a acelerarem a eliminação progressiva do carvão e dos subsídios aos combustíveis fósseis.” Ou seja só o carvão seria para acabar; no caso do gás e do petróleo, terminavam (gradualmente) os subsídios.
O segundo rascunho baixou a ambição. A “eliminação progressiva do carvão” foi substituída por “eliminação progressiva do crescimento incessante do carvão”. O fim dos subsídios passou a “fim dos subsídios ineficientes”, abrindo a porta a todo o tipo de interpretações por parte de países que queiram manter o statu quo. Depois disso foi ainda acrescentada uma frase a “reconhecer a necessidade de apoiar uma transição justa”.
Mesmo assim, as alterações não foram suficientes. Num dramatismo de última hora, a Índia exigiu que a “eliminação progressiva do (…) carvão” passasse a “redução progressiva do (…) carvão”. É uma derrota quase absoluta para quem lutou em Glasgow pelo princípio do fim do combustível fóssil com maior impacto no aquecimento global.
Cinco anos de atraso no financiamento
Na COP de 2009, em Copenhaga, foi definido um fundo anual de 100 mil milhões de dólares a partir de 2020 para ajudar os países menos desenvolvidos a lidarem com as alterações climáticas, sobretudo do ponto de vista da mitigação. Em Paris, seis anos mais tarde, ficou acordado que o fundo tentaria chegar a um equilíbrio entre mitigação e adaptação. O ano de 2020 passou e o dinheiro não chegou: ficou-se pelos 80 mil milhões (o fundo não é uma doação – é à base de empréstimos aos países pobres).
O Pacto Climático de Glasgow começa por notar “com profundo pesar” que o objetivo não foi atingido. Antes do arranque da cimeira, líderes dos países mais ricos prometeram os 100 mil milhões para 2023; nos últimos dias da COP26, Ursula van der Leyen disse que esse valor podia chegar já em 2022. Nem uma coisa nem outra. A conclusão de Glasgow “concorda em entregar na totalidade os 100 mil milhões de dólares em 2025”. Cinco anos depois do prometido.
Perdas e danos: outra derrota para os mais pobres
As nações menos desenvolvidas têm tentado levantar uma discussão que a União Europeia e os EUA não querem, de todo, ter: as compensações pelo impacto destrutivo no planeta das emissões de gases com efeito de estufa que os enriqueceram, desde a Revolução Industrial. Na prática, entrar neste debate é levantar o véu a possíveis indemnizações pelos danos causados pelas alterações climáticas, que afetam desproporcionalmente os países mais pobres. Os mais ricos querem evitar vir a ser responsabilizados pelo dano causado, o que lhes poderia custar biliões e biliões de euros, e em Glasgow vetaram a criação de uma “instalação” (facility) para lidar com as perdas e danos, que pudesse vir a ser interpretada como base para o temido passo seguinte.
Em vez disso, o documento final “exorta os países desenvolvidos (….) a fornecer suporte melhorado e adicional para atividades que tratam de perdas e danos associados com os efeitos adversos das mudanças climáticas”. Mais à frente, é referido que será criado um fundo para “apoio técnico”. O grupo das nações menos desenvolvidas não escondeu a frustração com este ponto. Uma representante do grupo dos pequenos Estados insulares (alguns estão literalmente a ser tragados pelo mar) disse mesmo que saía de Glasgow “de mãos a abanar”.
Novas metas já para o ano. Com exceções à vista…
Para tentar salvar a face da COP26, Alok Sharma, o presidente da conferência, e outros líderes fizeram um enorme esforço para incluir um ponto que obrigasse os Estados a apresentar novas NDC (Contribuições Determinadas Nacionalmente, os planos de mitigação que cada país apresenta) já em 2022, respeitando o Acordo de Paris, que prevê que cada proposta vá mais longe do que a anterior, em termos de redução de emissões. Alguns delegados e muitas organizações não governamentais têm pressionado para que as NDC sejam anuais e não de cinco em cinco anos, como acordado em Paris.
O Pacto Climático de Glasgow dá um passo nesse sentido, mas com pouca convicção: “Solicita às Partes que revisitem e fortaleçam as metas de 2030 nas seus contribuições conforme necessário para as alinhar com a meta de temperatura do Acordo de Paris até ao final de 2022, levando em consideração as diferentes circunstâncias nacionais”.
Esta frase já constava do primeiro rascunho, mas sem a parte “levando em consideração as diferentes circunstâncias nacionais” – um acrescento exigido por países como a China e a Índia, e que pode dar uma justificação para que as NDC não sejam entregues, invocando uma qualquer razão conjuntural.
Além disso, o documento não se compromete com metas anuais, diz apenas que as novas NDC têm de ser entregues na próxima COP (no Egito).
Mais dinheiro para adaptação… e menos para a mitigação
Vários governantes, tanto entre os mais pobres como entre os mais ricos, têm pedido mais dinheiro para a adaptação dos países menos desenvolvidos. Esse desejo é concedido no Pacto de Glasgow: “Exorta as Partes dos países desenvolvidos a pelo menos dobrarem sua oferta coletiva de financiamento climático para adaptação às Partes dos países em desenvolvimento a partir dos níveis de 2019 até 2025, no contexto de alcançar um equilíbrio entre mitigação e adaptação na provisão de recursos financeiros.”
Isto não significa, no entanto, que os países mais pobres venham a receber o dobro do dinheiro – ou seja, não quer dizer que o fundo de 100 mil milhões de dólares passe para 200 mil milhões. Ou, no caso, dos 80 mil milhões atuais (números de 2019, último cálculo disponível e o ano referido neste ponto) para 160 mil milhões em 2025. Em 2019, cerca de 25% (20 mil milhões de dólares) foi aplicado na adaptação, com o resto a ir para a mitigação; logo, em 2025, o financiamento para adaptação terá de ser de 40 mil milhões de dólares, fatia essa que sairá do bolo total de 100 mil milhões de dólares, prometido para 2025.
Regras clarificadas
Foi, finalmente, aprovado o Livro de Regras de Paris, um dos principais objetivos da COP26. Esta será talvez a maior vitória de Glasgow. Mas não é uma vitória absoluta, do ponto de vista da redução drástica de emissões que se pretende. Ficou definido que alguns créditos de carbono antigos se mantinham, tal como havia sido definido no Protocolo de Quioto, em 1997. Esta conclusão era expectável, no entanto (apesar da oposição feroz de muitos ambientalistas, que queriam acabar com eles de vez), e este ponto é considerado um passo em frente, construindo de uma vez por todas os pilares para um mercado global de carbono.
Mas há aqui (mais uma) derrota para os países menos desenvolvidos, que queriam que parte das receitas do mercado de carbono fosse canalizado diretamente para a adaptação. Os países mais ricos acederam – desde que essa possibilidade fosse voluntária…
Como ficamos?
De uma forma muito crua, ficamos muito longe do que os cientistas dizem ser necessário. A Comissão para a Transição Energética, por exemplo, calcula que seria necessário reduzir as emissões atuais em 49% até 2030, para conter o aumento de temperatura a 1,5 ºC, e que os compromissos assinados em Glasgow só cortam 20 por cento.
António Guterres, o secretário-geral da ONU, não escondeu o seu desagrado, numa mensagem em vídeo. “É um passo importante, mas não é suficiente. Temos de acelerar a ação climática para manter vivo o objetivo de limitar o aumento da temperatura global em 1,5 ºC. Não atingimos esses objetivos nesta conferência. Mas temos alguns blocos para construir o progresso. Eu sei que estão desapontados. Mas o caminho do progresso nem sempre é uma linha reta. Às vezes, há desvios. Às vezes, existem fossos. Mas sei que podemos chegar lá. Estamos na luta das nossas vidas, e essa luta tem de ser vencida.”
A secretária-geral da Amnistia Internacional foi bem mais crítica: “A Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima não conseguiu apresentar um resultado que proteja o planeta ou as pessoas. Em vez disso, traiu os próprios alicerces sobre os quais as Nações Unidas foram construídas – uma promessa, em primeiro lugar, não aos países, nem aos Estados, mas ao povo”, disse, em comunicado, Agnès Callamard. “O fracasso dos líderes em comprometer-se em manter o aumento da temperatura global em 1,5 °C condenará mais de 500 milhões de pessoas dos países mais pobres a secas e a ondas de calor extremas.”