João Gilberto Prado Pereira de Oliveira é o ator principal do mais saboroso e compensador fracasso do meu percurso profissional de 40 anos – carreira é outra coisa, mais de transporte coletivo. Vale a pena trazê-lo de volta, dos confins de 1984, porque ajuda ao retrato do homem que, “melhor do que o silêncio” no definitivo soundbite de Caetano Veloso, nos embalou, motivou, educou e embeveceu durante tantos anos. Em maio desse ano, quando Portugal ainda corria a maratona para se juntar à CEE, com bons presságios olímpicos “na distância”, a cargo de Carlos Lopes (ouro) e de Rosa Mota (bronze), ficava montada uma operação que valia, à época, o maior dos meus desafios como jornalista: atravessar o Atlântico e, no Rio de Janeiro, entrevistar o homem que já tinha eleito – e, até hoje, não foi deposto – como cantor favorito. O pretexto era claro: a primeira vinda de João Gilberto a Portugal, para três concertos no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 7, 8 e 9 de junho. Todos sintonizados: a organização dos espetáculos, os empresários do baiano tornado carioca há duas dúzias de anos, a direção do jornal (Se7e) onde eu trabalhava. O que poderia falhar com tanta afinação e um tal encontro de vontades? Acontece que, ao contrário da canção de Dona Ivone Lara assumida por Maria Bethânia, ninguém “me avisou para pisar nesse chão devagarinho”… Eu desconhecia – mea culpa – que, em 25 anos de discos e concertos em nome próprio, João Gilberto somava apenas duas ou três entrevistas.
O resto, muito mais intenso do que a angústia do guarda-redes no momento do penálti, resume-se rapidamente. Depois de aterrar no aeroporto do Galeão – hoje justamente renomeado António Carlos Jobim, alguém que está longe de ser um mero figurante nesta história –, uma mão familiar brindou-me com o primeiro rodízio e com um Fla-Flu (Flamengo-Fluminense, para os mais afastados do futebol) no Maracanã, além de um passeio rápido pela cidade com que eu sonhava há muito tempo. No dia seguinte, à hora marcada, começava a odisseia. No Leblon, no prédio de apartamentos onde vivia o cantor, sentei-me à espera da ordem para avançar, ignorando que nunca chegaria, sequer, a pôr os pés no elevador. Começou a desfiar-se o rol de justificações que se repetiam ou intercalavam: que João estava febril, que João estava trabalhando, que descansava, de notívago que era. Foram três dias nisto, horas pesadas em que tudo foi posto em causa, até uma eventual vocação. No final dessa terceira ronda de calvário sem sangue, mas com suor e (algumas) lágrimas, respaldado por um contacto com Luís Almeida Martins, diretor do Se7e, parti para a rutura unilateral: deixei contactos, itinerários prováveis, todas as pistas para que, havendo disponibilidade do “entrevistado”, eu ali regressasse rapidamente e cumprisse o primeiro dos objetivos da excursão. Entrevistei Simone – que viria a Portugal no ano seguinte –, Djavan, eles e elas do grupo de rock Blitz (“você não soube me amar” era a frase-chave do êxito), Fábio Júnior, no setor televisão. E, no dia do regresso, nem um telefonema, nem uma cartinha ou um postalinho de João.
A primeira vez em Lisboa
No dia em que lhe coube cruzar os mares até Lisboa, eu estava à espera na Portela (hoje Aeroporto Humberto Delgado). Munido de uma garrafa de vinho do Porto – que, mal eu sabia, haveria de marcar presença numa conversa improvável – do ano de nascimento do meu fugidio “interlocutor” (1931) e que, por isso mesmo, me custou quase um mês de ordenado. Entreguei-lha, identifiquei-me, sintetizei a minha cruzada sem graal e, de repente, dei de caras com uma aflição e uma timidez pouco comuns numa estrela planetária. Talvez por isso tenha sido desafiado a partilhar um passeio (num Citroën GSA, se quisermos ir ao pormenor) por Lisboa, em que o ouvi cantarolar (Uma Casa Portuguesa, que já estava prontinha para figurar no alinhamento dos shows) e lançar ideias soltas. Só havia uma condição: nem gravador nem bloco de notas. Era “papo”, informal e sem agenda. Voltei a encontrá-lo, sentado no mesmo carro, a chorar copiosamente depois do primeiro dos espetáculos, que acabou mais cedo e muito pior do que o previsto. Depois do ensaio geral para o show, alguém tinha mudado a localização da orquestra (cuja qualidade, de resto, João sempre elogiou). A explicação viria depois: “Eu queria até morrer ali, como um toureiro em plena praça. Mas estragaram-me os arranjos, alteraram a disposição em palco, obrigaram a que eu me desconcentrasse. Eu fiquei até sem fala, incapaz de explicar fosse o que fosse, pensando na desventura de quem esperou todo esse tempo para agora acontecer isto…” Diria mais: “Se alguma coisa falha, a minha dor é física, fico perdido, tudo aquilo que foi trabalhado com carinho transforma-se quase em náusea. E aí eu só penso em fugir…” Do alto dos meus 23 anos, tentei fazer-lhe ver que ainda tinha duas oportunidades para inverter a tendência de desastre da estreia. E fiquei, amargurado, a ver o seu desalento afastar-se de volta ao hotel. Na noite seguinte, João Gilberto saltou do apupo para a apoteose. Ao ponto de o vermos – sim, eu estava outra vez na plateia, a apoiar a “desforra” – feliz em dois encores, mais notáveis por ser alguém que não gostava de voltar ao palco. Os delírios e as delícias repetiram-se na terceira e última noite, com todos rendidos a Desafinado, Insensatez, Wave, O Pato, Tristeza e Aquarela do Brasil, mas também a Uma Casa Portuguesa–que valeu uma explicação: “Pela imagem que eu mantenho de Portugal, essa canção quase poderia ser o vosso hino nacional; fala da singeleza, da simplicidade, da simpatia que ainda é possível encontrar em vocês, que são possivelmente o único país genuíno que resta à velha Europa.” Estávamos em 1984, convirá recordar… Outra vez João: “Eu julgo que Portugal se pode ainda descobrir nos mais pequenos pormenores. Por exemplo, uma bebida como o vinho do Porto [e já estava compensada a despesa, pensei eu], com aquela renda no sabor, só podia ser inventada por um povo capaz de acarinhar aquilo que constrói, aquilo que tira da sua terra com o seu sol. Confesso ainda que me senti impressionado com os olhos das portuguesas, profundos e sinceros, misturando uma candura que me traz à memória a imagem de uma mãe e um ardor que eu acho quase cigano…” Tímido, sim; mas sempre sedutor, também.
No Leblon, no prédio de apartamentos onde vivia o cantor, sentei-me à espera da ordem para avançar, ignorando que nunca chegaria, sequer, a pôr os pés no elevador
Presumia eu, outra vez errado, que o epílogo estava escrito. Nada disso: a 10 de junho, decidi perder a vergonha e desejar-lhe um feliz aniversário. Era o 53º Voltei a suar, mas sem lágrimas, quando fui telefonicamente convocado para o Hotel Penta porque “João queria falar…”. Em boa verdade, falou muito menos do que cantarolou e, sobretudo, tocou. O suficiente para que eu me recordasse de um dos – muitos – mitos urbanos erguidos à sua custa, o do “suicídio” de um gato de um amigo que acolhera o cantor, alegadamente porque o felino não suportou as horas esquecidas em que o perfecionista compulsivo andou às voltas com um só acorde na guitarra. Para que conste: como relata Ruy Castro, no livro A Onda Que Se Ergueu No Mar, o gato desequilibrou-se de um parapeito e caiu, sem culpas para o músico. Mas a novela estava lançada… No meu caso, se houve pulsão que nunca me aflorou foi a suicida. Já sobre o estado eufórico em que dali saí, parece-me preferível não acrescentar mais nada. A 13 de junho de 1984, dia da morte de António Variações, o Se7e publicava uma “entrevista exclusiva” que, na verdade, era mais exclusiva do que outra coisa – era o resultado da montagem (rigorosa, mas de encadeamento livre) de ideias, desabafos, repentismos e meditações exteriorizados de João Gilberto Prado Pereira de Oliveira.
Tocar à beira-mar
Fazer regressar este episódio, sem valor histórico ou mesmo documental, é apenas um contributo para o retrato de João Gilberto, o “monge da música” (Gilberto Gil dixit), o homem que “nos ensinou a delicadeza da vida”. Como diz a canção (Wave), “o resto é mar, é tudo o que não sei contar…”. Nem eu nem ninguém: aquele que, para muitos, é o mais importante criador do Brasil – e não só na música –, que foi o porta-voz mais inspirado e distintivo de outros dois génios, António Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, não dispõe, até agora, de uma biografia. Claro que há Ruy Castro e os episódios ordenados e sem preço da bossa nova, tanto em Chega de Saudade (1990) como em A Onda Que Se Ergueu No Mar (2001), em que João é primeira figura. Só podia. Há, ainda, um esboço de Zuza Homem de Mello, há muito esgotado, mais virado para a importância musical do que para os trilhos e percalços da vida do cantor. Há livros de partituras, suprema ironia, porque João não sabia ler uma nota, compensando esse défice com o ouvido e com a memória. E há contos, como o de Sérgio Sant’Anna (O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro) e o de Sérgio Ribeiro (A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos), inspirados no homem que ajudou a música do Brasil a saltar fronteiras, há mais de meio século, para nunca mais se confinar à sua dimensão, mesmo sendo continental.
Por estes dias, João Gilberto voltara a ser notícia… Por jantar fora de casa, no Marius, restaurante do Leme vocacionado para os frutos do mar. Curiosidade, para alguém que passou anos a fio a encomendar comida para casa, só abrindo a porta para a recolher quando o transportador tivesse partido. Surpresa, para quem levou grande parte desses anos, e por mais variantes e novidades que o cardápio lhe oferecesse, a pedir um bife com sal grosso.
Feias, mesmo, foram as batalhas judiciais travadas entre os dois filhos mais velhos, João Marcelo (n. 1960) e Bebel (n. 1966), que culminaram numa interdição do patriarca e numa verdadeira guerra fratricida. A primeira figura da bossa nova, que até dedicou uma canção à filha – Valsa (Como São Lindos Os Youguis/Bebel), em 1973 – e a ajudou a lançar-se publicamente como cantora quando a convidou para um dueto em Chega de Saudade, num especial da TV Globo, em 1980, o mesmo em que “chamou” Rita Lee e em que mandou parar a gravação para fazerem desligar o ar condicionado, não merecia ter passado por isso. Melhor, muito melhor, é recordá-lo como um dos dois polos luminosos – o outro era Tom Jobim, claro – na embaixada brasileira que, em novembro de 1962, esgotou os três mil lugares do Carnegie Hall nova-iorquino, num show em que, na plateia, marcavam presença Miles Davis, Dizzy Gillespie, Tony Bennett, Peggy Lee e Gerry Mulligan, entre muitas outras estrelas. Ou realçar que este “monge” chegou, nos idos de 1960, a ser apresentador de TV, num programa evidentemente musical. Ou partir para o insólito de o inventor da batida da bossa nova – que ensinou, com muita impaciência à mistura segundo os relatos, aos “conterrâneos” de instrumento, o violão, e ao baterista Milton Banana – ter sido despedido do grupo musical que o trouxe de Juazeiro, Bahia, para o Rio de Janeiro, em 1950. Chamava-se Garotos da Lua e só ficou na memória porque ele por lá passou…
Cancelou quase tantos concertos como aqueles que cumpriu. Mas só contam os que fez. Deitava-se já com o sol da manhã e aproveitava algumas madrugadas para passear de carro – e a conduzir – no Rio de Janeiro [soubesse eu desta mania e, em 1984, teria partido para a vigília…] e fora dele, seguindo por exemplo até à Pedra de Guaratiba, baía de Sepetiba, a quase duas horas do seu apartamento do Leblon, onde aproveitava para tocar à beira-mar. Sem dispensar as camisas Yves Saint-Laurent, os fatos por medida da Bond Street, os sapatos e as gravatas italianos. Para casa, ficavam os pijamas – usados à razão de três por dia – e os telefonemas de horas com que compensava a condição, relativa, de eremita. Salvo melhor opinião, detestaria ouvir um certo capitão na reserva – e das reservas – referir-se-lhe como uma “pessoa conhecida”. Seguramente, o sujeito do poder não seria visita de casa de João.
A 10 de junho de 1984, despedi-me dele com um “até à vista”. Hoje, repetiria a frase, de esperança e de desejo. Na verdade, nunca mais o vi. Mas nunca mais deixei – nem deixarei – de o ouvir. Afinal, no peito dos desafinados também bate um coração.