Jornal de Letras
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Arroz de pato

 Estou aqui no jardim ao pé de nossa casa a passar os olhos pelas notícias e a ver os patos, depois de ter aviado um arroz de pato no restaurante do Sr. Manuel, e é-me impossível não achar uma certa piada a estas coincidências primárias. A alguns metros está um grupo de idosos a fazer um curso de pintura. Deve ser um workshop daqueles de um dia. O professor faz de modelo e eles pintam todos a lápis de cor com o bico bem afiado. Dá para ver daqui como os lápis estão bem afiados. Um dia ainda fazemos um curso destes. Lembras-te de quando eu meti na cabeça que queria ser pintor e tu posavas para mim? Ficavas muito chateada porque eu não conseguia pôr os teus mamilos tesos como eram na realidade. Hás-de voltar a posar para mim e eu hei-de fazer-lhes justiça. Conhecendo o teu apego pela verdade dirás que estão demasiado rijos, que eu continuo agarrado à tua juventude mais do que ao teu corpo. Tu no fundo sabes que é mentira. Ainda assim, eu pintarei dois quadros, vários quadros, pintarei os quadros que forem necessários para te provar o contrário. O tempo pode ainda não ter aprendido como nos manter rijos até ao fim, mas nós vamos sabendo conservar-nos um ao outro. E sem que alguém nos tenha ensinado como se faz. Nestas coisas, de facto, nada melhor do que o instinto. Enquanto te escrevia esta mensagem aconteceu uma coisa estranha. De pombos não gosto muito, tu sabes disso, mas houve um que não me largava. Dava-me bicadas nas costas. Tantas que tive que sair da pedra onde estava sentado. Fui para a relva, ele ocupou o meu lugar, fechou os olhos e morreu. Nunca tinha visto um pombo morrer mas parece que é desta forma. Continua ali caído. Isto um dia depois de me teres dito que tinhas comido arroz de pombo aí no congresso e até tinhas gostado. Que coincidências, de facto. Queres que leve o bicho - ainda está fresco -, e cozinha-se em casa para o jantar? Eu sei que estou sempre a dizer que não gosto de comer arroz duas vezes seguidas mas parece-me uma boa ideia. E, bem vistas as coisas, há meses que não jantamos só os dois. Assim, sem pensar em mais nada, como quando tu dizias que eu era um péssimo pintor mas um óptimo jardineiro de maminhas.