O Líbano, como sempre, está envolvido em sarilhos entre as forças xiitas do «Partido de Deus» (Hezbollah) e o poder militar israelita, que não tem igual na região nem na maior parte do mundo. As gerações mais jovens de libaneses, tanto muçulmanos como cristãos, estão legitimamente cansadas de servir como santuário para grupos terroristas, de ser um entreposto para material de guerra vindo do Irão e de ser um centro de lavagem de dinheiro de atividades e origens obscuras.

O Hezbollah atirou-se a Israel para vingar o seu comandante morto em Beirute, mas foi apanhado de surpresa pelo ataque preventivo lançado por Telavive. A capacidade de recolha de informações dos israelitas continua a ser notável. Antes mesmo de a ordem de ataque do comando político e militar dos extremistas ser enviada às suas forças, os aviões, mísseis e drones israelitas já estavam em cima do Líbano.

Este ataque do Hezbollah é muito semelhante ao que Teerão lançou há alguns meses contra Israel, que acabou em fracasso. Centenas de mísseis e drones foram lançados do Irão, mas a maioria foi abatida pelas forças aéreas dos EUA, Grã-Bretanha e França, e os que passaram foram destruídos pela Cúpula de Ferro. Essa ‘guerra’ terminou aí. A ofensiva do Hezbollah teve o mesmo destino, mas desta vez partiu com ligeiro atraso. É um golpe preventivo que deixa Teerão muito inquieta.

Todos os cenários estão em aberto, mas há intensas comunicações entre Estados terceiros para acalmar o ‘Partido de Deus’ e Israel. É muito difícil porque ainda falta a vez do Irão, e eles gostam de atacar por ondas. E cresce a profunda irritação e frustração entre os inimigos jurados que desejam destruir os israelitas: não bastava terem um Estado, como agora também estão protegidos por uma Cúpula quase intransponível. Assim não vale. Assim não funciona. Assim não pode ser. Assim não há guerra.

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Ainda hoje pensa que é de baixa estatura por não lhe terem dado tempo para crescer. Da infância, passou diretamente à idade adulta. Recorda sem saudade a própria figura, imberbe, encolhida sob a chuva, lavrando terras com um arado de madeira, puxado por duas vacas. Tinha oito anos quando o pai emigrou e já era militar, com dezanove, quando este regressou. Cresceu só com a mãe, a quem diz dever muito, apesar de a recordar áspera, como todas as pessoas naqueles tempos difíceis, numa pequena aldeia do sudeste de São Miguel, nos Açores. Ali, garante Ângelo Melo, enquanto atira o olhar sobre o casario, praticamente ninguém cantava riqueza.

Quando, de carro, me aproximo da Povoação, sede do concelho com o mesmo nome, tenho a impressão de se tratar de uma localidade tombada de um penhasco, ou que deslizou dele com vontade de partir mar afora. Lá em baixo, na parte Sul, banhados pelas ondas que trouxeram o navegador Gonçalo Velho Cabral, veem-se os edifícios da Câmara Municipal, do antigo tribunal, do pavilhão multiúsos, um hotel que lembra um farol, debruçado sobre uma pequena marina, tudo em branco caiado, a contrastar somente com as pedras de basalto que abraçam portas e janelas. Começo a poucos metros dali a conversa com aquele homem de 70 anos, defronte da Biblioteca Pública, instalada em edifício contíguo à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a que chamam Igreja dos Povoadores, a primeira da ilha, erguida em 1500, e que já albergou os Paços do Concelho. Tem a porta virada para o Atlântico e para as pequenas piscinas ao ar livre, onde – apesar dos catorze graus – nadam dois casais estrangeiros. Mesmo ao lado, um restaurante que foi um antigo forno de cal acende o lume para o almoço. Passa um ou outro carro e, fora isso, alheados dos afazeres dos humanos, ouvem-se apenas os pássaros nas árvores encanteiradas. Ângelo Melo, gasolineiro reformado, logo começa a falar-me da maior de todas as paixões e razão do nosso encontro: os livros. Dias antes, devolvera uma dúzia à biblioteca que nos olha. A leitura, explica, tornou-se coisa séria na idade adulta; antes disso, o campo não dava descanso e o desejo maior do pai era vê-lo fora da escola, para ter quem o ajudasse a criar uma lavoura de gado. A mãe também não via outro remédio e disse-o ao professor Ernesto da Mota Teves, um homem de muito brio e exigência, que se limitou a declarar ser pena ficar para trás quem deveria ir para a frente. Por isso, Ângelo não teve um banco de escola longo, lamenta. Com os colegas que também foram aprovados, fez uma festa quando terminou a quarta classe. Juntaram uns ferrinhos, dinheiro dado pelos pais, e alugaram um táxi com o qual correram a aldeia – andar de automóvel não só era coisa rara, como motivo de vaidade. E não perder nenhum ano era uma vitória, assim como ter adquirido o saber elementar e posto fim ao sacrifício do estudo. Estava ainda por entender, explica, enquanto ajeita o boné preto sobre o cabelo grisalho, que os livros são os melhores amigos que podemos ter e que aprender é um caminho para uma vida melhor. Foi por isso que, mais tarde, fez questão de voltar à escola, para terminar o liceu, objetivo que a vida não lhe permitiu cumprir, pela urgência de alimentar várias bocas. Mas recorda com orgulho que fez os dois anos do ciclo preparatório num só, com boas notas, entre as quais destaca, com um sorriso contido, um 17 a Português e um 18 a História. E remata: nessa altura, já tinha percebido que a leitura nos ajuda a entender o mundo e a ver a dimensão da nossa nudez, da nossa simplicidade.

O 25 de Abril e um trator, as Bermudas e um canudo

Pouco mais de um ano antes deste encontro, um homem que eu nunca vira estendera-me a mão, num evento da livraria Bertrand de Ponta Delgada, dizendo: o doutor Onésimo Teotónio Almeida mandou-me ao seu encontro, chamo-me Ângelo Melo. Cumprimentámo-nos, conversámos um pouco a propósito do livro que então se apresentava, bem como sobre a amizade e admiração que unia ambos ao escritor, filósofo e professor que, à distância, nos juntara e de quem eu receberia um email no dia seguinte, a perguntar-me se um tal Ângelo Melo (a quem, numa crónica que me enviava em anexo, publicada na revista LER, chamava o gasolineiro de devorador de clássicos) comparecera no lançamento. Nasceu desse diálogo atlântico – Onésimo dá aulas há 52 anos na Brown University, nos Estados Unidos – a minha vontade de saber mais sobre o homem que inesperadamente se me apresentara, o tal gasolineiro adepto da melhor literatura, e de tentar perceber como é que da miséria da lavoura micaelense nascera um grande leitor.

Sob o sol gentil da primavera seguinte, aproximamo-nos do posto de combustível, ouvindo o correr das águas do ribeiro. Ali, Ângelo Melo trabalhou um quarto de século; antes, distribuíra pão nas Furnas, depois de ter voltado à terra natal, após vários anos emigrado nas Bermudas. Mas já iremos a essas outras ilhas do mesmo oceano. De momento, fiquemo-nos por estas, a fim de preenchermos o espaço que subsiste em branco entre a juventude e a emigração. Tinha 20 anos quando se deu o 25 de Abril. Como é que viveu a revolução?, começo por perguntar. O 25 de Abril não nos disse nada, porque isto era um santuário de Salazar e do regime. Havia três ou quatro pessoas que dominavam isto e não se podia dizer nada. Lembro-me de que, nesse dia, às duas da tarde, apareceu um senhor nas pastagens que me disse: ai, que desgraça que vai em Lisboa, está a acontecer uma guerra, prenderam o Marcelo Caetano! De seguida volta a compor o boné e acrescenta: o homem não imaginava que aquele era o dia mais glorioso da nossa história, era a Liberdade. Tanto assim era, que, uns dias depois, percebendo já o que estava a nascer, Ângelo Melo e uns amigos picharam a placa de uma rua que ostentava o nome de um visconde local. Queriam substituí-lo por 25 de Abril, para que na pedra se lesse rua 25 de Abril. Não se lembra como, nessa noite, terminou a missão revolucionária, mas sabe que, no dia seguinte, toda a gente adivinhava quem havia cometido o delito e os descendentes do visconde queriam linchá-los. Felizmente, diz, não deu em nada.

Leitor orgulhoso As estantes, feitas por medida, recebem os visitantes da casa de Ângelo, com os livros bem organizados Foto: Nuno França

Aquando do 25 de Novembro, o País parecia-lhe um barco sem leme. Veio nessa altura a tropa, na Trafaria, concelho de Almada. Foi a primeira ida de Ângelo Melo ao continente, logo para 22 meses de serviço militar, quase todos passados no Batalhão de Reconhecimento de Transmissões, mas também, mais tarde, no Quartel-General de Ponta Delgada. Ainda sabe de cor o número mecanográfico: 015920/75. Desse tempo, recorda com nitidez o momento em que viu o capitão Salgueiro Maia, numa parada, com o livro do general Spínola, Portugal e o Futuro, debaixo do braço. Ainda tentou ir a sargento, mas viu-se impedido: era preciso ter uma altura mínima de 1,60 m e o jovem Ângelo não fora além de 1,57 m. Ainda assim, aqueles foram meses que valeram pela experiência de vida e pela carta de condução. Foi como militar que se fez motorista de pesados e, com a prática adquirida, não hesitou muito, em 1977, findo esse serviço, em endividar-se em 750 contos para regressar ao trabalho no campo como deveria ser: montado num trator. Manobrou-o nas terras férteis da Povoação durante três anos e pouco, até que casou e, ansiando por uma vida melhor, assinou um contrato-promessa para trabalhar nas Bermudas e vendeu o trator. Mas a coisa demorou a dar-se e, entretanto, sem trator, teve de se empregar numa empresa de construção de estradas, como manobrador de máquinas, primeiro, e como empregado de escritório, depois. Ainda esteve uns meses num armazém de bens alimentares e só depois conseguiu concretizar o desejo: a 27 de abril de 1981, já com uma filha de dez meses, partiu enfim para as Bermudas, com um nó na garganta e outro no coração – é que emigrar não é apenas ir atrás de uma vida melhor; os dias longe de quem se ama, explica, são lanças que nos cortam sem vermos as feridas. À chegada, sentiu tanto calor que quis arrancar a roupa ali mesmo. Sentiu-se mal, mas foi confortado pelo padrinho de crisma: toma calma, que ainda estamos em abril e muito pior está para vir, isto aqui é para homens. Dito isto, Ângelo Melo retirou o olhar do horizonte, conduziu-o até mim e acrescentou: faz lembrar aquela frase de Alves Redol, em Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos – um homem nunca chora, mesmo que veja as tripas doutro na mão.

Naquele arquipélago, porém, encontraria ânimo suficiente para aplacar a dor: a promessa de uma vida melhor, comprovada por incontáveis casos entre uma comunidade de cerca de dez mil portugueses, grande parte açorianos, que a todo o momento com ele partilhavam testemunhos de prosperidade, que iam da exibição dos carros que ali conduziam à descrição das casas que erguiam em Portugal. Também para Ângelo Melo, desse por onde desse, aquelas ilhas ricas representariam o garante do sonho maior: o de fazer uma casa para a família na sua ilha pobre. E, com a miragem do dinheiro diante dos olhos, ali viveu quase dez anos. Começou por trabalhar numa guest house e, mais tarde, no hotel Flamingo Beach, onde se sentiu tratado como um filho. Aprendeu inglês, primeiro escutando cassetes e lendo um pequeno livro, depois tirando um curso no Bermuda College, com a simpática e dedicada professora Anderson. Mas o que recorda com maior orgulho é o curso de eletricista. Lembra-se bem da receção de que foi alvo por boa parte dos vinte e cinco colegas: what wants portuguese here? Nas Bermudas, explica, os portugueses só tinham direito a trabalhar nas cozinhas e nos jardins. Alguns, poucos, empregavam-se na construção civil, como trolhas ou serventes. Nunca como eletricistas. Então, o jovem Ângelo mordeu a língua e jurou a ele mesmo dar o máximo; poderia ficar pelo caminho, mas, se tal acontecesse, muitos deles iriam ficar também. Ao professor, o engenheiro John Leonard Malloy, não passaram despercebidos o esforço e o potencial do aluno. Foi um dos dez que terminaram o curso, que lhe valeu emprego numa empresa de canalizadores e eletricistas. Ainda tenho o diploma, diz, fitando de novo o Oceano, com um sorriso no rosto moreno e sulcado.

A explosão da leitura

Alimenta aquele mar a ribeira do Além, que junta as águas de várias outras, como a dos Bispos, a da Lomba Grande, a da Madeira Nova, a da Madeira Velha, a dos Silvados, entre mais algumas de menor caudal. Já não transborda como no passado, altura em que chegou a destruir por completo a bomba de gasolina em que Ângelo Melo trabalhava. Depois de reconstruída, o que demorou mais de um ano, não havia clientes e o homem com o qual converso sentia-se mal por passar os dias à espera de ninguém, sem nada para fazer. Decidiu então emigrar de novo, dessa feita para o Canadá, para de novo trabalhar na construção civil, fazendo passeios. Mas não aguentou mais de quatro meses e decidiu regressar aos Açores. Ainda tomou conta de gado durante trinta e três dias, para subsistir, até que retomou o lugar no posto de combustível, de olhos postos da ribeira que o margina, como um guarda-rios. Foi nessa altura que se deu a explosão da leitura na vida de Ângelo Melo. Sempre gostei de ler e sempre tive respeito pelos livros, mas nas Bermudas não tinha tempo nem ânimo, confessa. Quando cheguei, foi diferente. Lia todos os dias e ao fim de semana. Para ele, o livro tem sempre mais do que um sentido, mas o que o motiva mais é sempre ir atrás de uma boa história. É claro, ressalva, que o livro também nos desperta e nos faz ver o meio envolvente, como tão bem consegue Zola, que desenterra muita coisa e nos dá tudo a entender. Para Ângelo Melo, e antes de dizer isto ensaia um ar solene, os livros devem dizer-nos o que precisamos de ouvir e nunca aquilo que gostaríamos de ouvir. De seguida, dá exemplos de autores que, no seu entender, o fazem melhor do que ninguém: José Saramago, Günter Grass, John Steinbeck, Sinclair Lewis. Reparo que referiu apenas escritores distinguidos com o Prémio Nobel e pergunto-lhe porquê. Há uns anos, lancei a mim próprio o desafio de ler todos os vencedores do Nobel, por achar que ali estava a melhor literatura. Explica-me que nunca teve quem lhe dissesse o que deveria ou não ler e que por isso encontrou no maior dos prémios o mais fiável dos conselheiros. Há uns de se lhe tirar o chapéu, mas outros, talvez por ignorância minha, e ao dizer isto baixa o tom de voz, não achei tão interessantes. Até posso confessar que li autores que não venceram o Nobel e que achei melhores do que muitos dos distinguidos. Pergunto-lhe quais e fala-me de imediato de Jorge Luis Borges, exemplo comum quando o assunto é este, para logo depois voltar a realçar alguns dos premiados que mais lhe agradaram: Pablo Neruda, Naguib Mahfouz, Nadine Gordimer, ou Miguel Ángel Asturias, preferência na qual coincidimos e em cujo debate nos demoramos um pouco mais. A dada altura, refere, triunfante: já li os quatro cantos do mundo.

Sem prestarmos atenção aos clientes que, ali ao lado, vão abastecendo os depósitos dos respetivos automóveis, e enquanto o vento tapa e destapa o sol com as nuvens, conta-me que, entre os portugueses, Eça é o favorito. Considera-o o verdadeiro escultor – ou ourives, precisa – da nossa língua. E possuidor de um excelente humor. Além dos romances, acha que todos portugueses deveriam ler As Farpas, projeto que partilhou com Ramalho Ortigão. Também gosta de Ferreira de Castro e de Alves Redol, refere, antes de cruzarmos a fronteira e nos pormos a falar de outro Nobel que nos une: o espanhol Camilo José Cela. Entre os italianos, gostou muito de Grazia Deledda, a segunda mulher a receber o galardão da Academia Sueca, em 1926, depois de Selma Lagerlöf. E entre os franceses? Apesar de gostar de Zola, Victor Hugo é o meu ídolo francês. Tive a felicidade de ler bons livros, sabe? A palavra é mesmo essa: felicidade. Hoje, leio menos, porque vejo pior, e tenho pena. Mas já li muita coisa. E dividi sempre o tempo entre prosa e poesia. Os meus poetas favoritos são Antero de Quental, adoro Antero, mas também Eugénio de Andrade, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Natália Correia… também gosto de José Régio, António Nobre, José Fanha, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena… Depois, faz um momento de silêncio, até que, de repente, pergunta: E já lhe disse que gosto muito de Antero?

Santo Antero e os bustos do OLX

Gosto mesmo muito de Antero, reitera, antes de endireitar as costas e começar a dizer um poema de autoria do grande escritor e poeta micaelense: À Virgem Santíssima. Quando termina, revela que sabe muita poesia de cor e que gosta de a dizer em voz alta. Tanto quanto aprecia ir à internet assistir a vídeos protagonizados pelos especialistas que mais admira: Aurelino Costa, Mário Viegas e Pedro Lamares – refere-os por esta ordem. Desafio-o a dizer mais alguns poemas e peço-lhe autorização para filmar. Enquanto escrevo estas linhas, ouço Bocage na voz do antigo gasolineiro povoacense. Mas o meu favorito, diz, é mesmo Antero… está a ver aquela casa ali? E aponta para uma casa baixa, branca e modesta, em frente ao posto de combustível. Indica-me depois uma portinhola de vidro, a meio da parede, ao lado da porta da habitação, explicando que é o lugar destinado ao contador da eletricidade, mas que os serviços competentes nunca o instalaram lá. Ficou, portanto, vazio. Vai daí, há uns anos, Ângelo Melo abordou a proprietária da casa, uma velhinha, e perguntou-lhe se o autorizava a colocar lá um santinho. Pensando, talvez, na proteção que lhe daria, a senhora disse gostar da ideia e entregou a chave da portinhola a Ângelo Melo. Mas, quando a abriu, o então gasolineiro não colocou no nicho nenhum santo canónico, mas sim um busto de Antero de Quental. Ainda lá ficou alguns três anos, disse, rindo-se como se riem as crianças quando fazem travessuras.

Visita regular A biblioteca pública continua a ser um lugar de veraneio para este açoriano amante da literatura Foto: Nuno França

Tenho muitos bustos de escritores, conta-me de seguida, antes de me convidar a ir a casa dele vê-los. Metemo-nos no carro e subimos a ladeira. Mora com a mulher numa casa boa, construída à custa de quase uma década de trabalho nas Bermudas, com jardim na frente, garagem num dos lados e um terreno amplo nas traseiras, de cuja varanda se encara uma vista formidável sobre um vale verdejante, com o mar ao fundo. Mal se entra em casa, dá-se com o orgulho maior de Ângelo Melo: os livros que, ao longo da vida, foi adquirindo, bem organizados nas estantes cujo desenho copiou de uma revista e encomendou a um parente marceneiro. Mas nelas exibe também os já referidos bustos: dois de Antero, um de Eça, outro de Pessoa, um de Júlio Dinis, outro de Guerra Junqueiro, para além de várias medalhas, uma das quais de bronze, do seu querido Victor Hugo. Também tem bustos de Mozart e de Chopin. Quase todos aqueles objetos, explica-me então, foram adquiridos online. A internet, que mora numa pequena secretária instalada na cozinha, é, desde 2005, outra das melhores amigas do grande leitor da Povoação. Gosto de procurar estes objetos no OLX, explica, referindo-se a um site de compras e vendas, e tomando os bustos e as medalhas nas mãos, para mos mostrar. Gosto de descobrir coisas, dá-me prazer. E gosto de viajar na internet, porque não tenho outros meios. Conta-me depois que esteve no continente pela última vez há 30 anos, porque a mulher teve de ser tratada nos hospitais da Universidade de Coimbra. Aproveitou para ir conhecer a Universidade, esteve no Paço das Escolas e, arregalando os olhos, diz-me: achei aquilo um esplendor. Aliás, qualquer casa de ensino é para mim um santuário. E os professores?, pergunto, por ter percebido que fala sempre deles com admiração. Um professor é uma figura que, quando os nossos pais lhe nos entregam, entra na nossa família, porque faz o que os pais não sabem nem podem fazer. É pena os professores já não serem valorizados, porque são pessoas que nos marcam e estudar é um privilégio. Eu sou amante da Geografia e da História e aprendo na internet. Há uns tempos, descobri o rio Dueça, em Miranda do Corvo, e gostei de o conhecer. Só anda oito quilómetros e encontra-se com o Ceira. Ângelo Melo começa, então, a partilhar estes e outros conhecimentos recentes, relativos às mais variadas regiões do País, de Trás-os-Montes às Beiras, passando pelo Alentejo. De repente, vejo-me sabedor das coisas mais improváveis, como a razão de ser dos nomes das antigas freguesias de Santa Vitória do Ameixial e São Bento do Ameixial, em Estremoz.

Procuro, então, devolver às estantes a atenção do meu anfitrião. Destaco, à medida que os meus olhos os identificam: Mario Vargas Llosa, Elfriede Jelinek, Amin Maalouf, Orhan Pamuk, António Lobo Antunes, Svetlana Alexievich, Abdulrazak Gurnah, William Faulkner, Ivo Andric, Imre Kertész, J. M. Coetzee, Yasunari Kawabata, Italo Calvino, Rabindranath Tagore, Boris Pasternak, Lev Tolstoi, Jonathan Franzen, João Guimarães Rosa, um Dom Quixote em edição recente, e também coisas menos prováveis, como uma História da Literatura Alemã, entre enciclopédias várias, publicadas pelo Círculo de Leitores, mas não só. Ângelo Melo entusiasma-se e, de tempos a tempos, enquanto conversamos, pega num volume, mostra-mo e diz: este livro é lindo! Minutos depois, confessa sentir-se contente porque a filha mais moça, quando vem de Ponta Delgada cá acima, também gosta de visitar as estantes. Sabe que cuidará bem delas e dos livros a que dão abrigo, quando ele já não estiver cá. Ficarão bem entregues, conclui, sorrindo ao de leve. O próprio Ângelo Melo gosta de as visitar todos os dias, mesmo que não leia nada. Concordamos, sorrindo, que os livros alimentam só de os vermos. Estou quase de saída quando me diz: ler é um gosto incomum, que devia ser mais comum, sobretudo entre os jovens… se eles soubessem que nos livros está o futuro deles, amá-los-iam com toda a força.

A coordenadora especial da ONU para o Líbano e as forças de manutenção da paz destacadas no país apelaram ao Hezbollah libanês e a Israel para “se absterem de qualquer nova escalada” e “cessarem fogo”. O apelo surge depois do Exército israelita ter lançamento de uma ofensiva no Líbano, este domingo de manhã, após ter detetado preparativos do Hezbollah para lançar “ataques em grande escala” contra Israel.

“Estamos a observar os preparativos do Hezbollah para ataques em grande escala contra o território israelita”, escreveu o Exército israelita numa mensagem em árabe dirigida à população do sul do Líbano. “Qualquer pessoa que se encontre nas imediações das zonas onde o Hezbollah está a operar deve abandonar imediatamente as suas casas para se proteger a si e às suas famílias”, acrescentou.

Recorde-se que o Hezbollah juntou-se ao Hamas na guerra contra Israel em outubro passado. Desde então, a violência na fronteira israelo-libanesa registou a pior escalada desde 2006. O grupo é aliado do Irão e prometeu um ataque em grande escala contra Israel, na sequência da morte de um comandante num bombardeamento israelita nos arredores de Beirute, em 30 de julho.

O Hezbollah integra o chamado “Eixo da Resistência”, uma coligação liderada pelo Irão de que fazem parte também, entre outros, o grupo extremista palestiniano Hamas e os rebeldes huthis do Iémen.

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O mês de agosto está a ser crítico para quem se convenceu de que a Food and Drug Administration (FDA) aprovaria o uso terapêutico da midomafetamina, ou MDMA. Os ensaios clínicos com a substância psicadélica, informalmente designada por ecstasy, têm vindo a demonstrar a sua eficácia na redução de sintomas da perturbação de stresse pós-traumático (PSPT), reforçando as pretensões da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS): ter um tratamento inovador destinado a pacientes que não apresentam resultados satisfatórios com os fármacos convencionais.

A droga psicoativa induz a libertação de monoaminas (serotonina, norepinefrina e dopamina) e hormonas (ocitocina e cortisol), contribuindo para baixar a atividade da amígdala e da ínsula, regiões do cérebro implicadas no medo e na ansiedade, facilitando ainda o reprocessamento de memórias traumáticas e a adesão dos pacientes à terapia. Com os resultados da terapia assistida por MDMA a irem mais longe do que os obtidos com os antidepressivos prescritos para a PSPT (paroxetina e sertralina), a FDA considerou o modelo promissor e aprovou os ensaios da fase 3.

O entusiasmo era, por isso, grande. Nas previsões de David Nutt, cientista do Imperial College London e autor do livro Psicadélicos – Um Guia Completo Sobre as Substâncias Revolucionárias que Podem Mudar a Sua Vida, este seria o ano da aprovação da terapia assistida por MDMA. Afinal, está a ser o das surpresas.

Os primeiros sinais de que nem tudo estava bem surgiram em junho, na audição do Comité Consultivo da FDA. A Lykos Therapeutics, farmacêutica da MAPS responsável pelos ensaios clínicos e a comercialização do fármaco, foi confrontada com falhas no protocolo. A insuficiência dos dados que comprovam a durabilidade dos efeitos e a garantia de eficácia e segurança é uma delas. Outra é o fator expectativa, pois quase 30% dos participantes da fase 2 tinham usado previamente a substância. E, por fim, as dúvidas quanto ao contributo das sessões de psicoterapia.

As recomendações terão sido acolhidas, mas não evitaram o chumbo. O pedido de um ensaio clínico adicional de fase 3 representa um recuo, já que serão precisos alguns anos até que a terapia assistida por MDMA veja a luz do dia.

Ondas de choque 

“Dececionante” foi o termo usado por Amy Emerson, CEO da Lykos, que pediu uma reavaliação da decisão. Entretanto, a revista Psychopharmacology retirou três artigos sobre a terapia assistida por MDMA. Na sua base terá estado a conduta não ética de Richard Yensen, um psicólogo canadiano acusado de abuso sexual por uma participante, após o ensaio clínico, que terá ocorrido em 2015 (os relacionamentos sexuais entre terapeutas e pacientes são proibidos pelas associações profissionais canadiana e americana, pelo menos até dois anos após a última sessão).

A meio de agosto, o presidente da farmacêutica, Jeff George, anunciou a redução da força de trabalho em 75% e Rick Doblin, fundador e presidente da MAPS, deixou o cargo no conselho da Lykos. O que se segue?

O ecstasy contribui para baixar a atividade da amígdala e da ínsula, regiões do cérebro implicadas no medo e na ansiedade

Albino Oliveira-Maia, diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud, está ciente do imbróglio que se prende com “a falta de neutralidade das equipas envolvidas nos ensaios e a impossibilidade de ocultação dos efeitos da substância, sobretudo se já se teve contacto prévio com ela”.

Sobre a conduta não ética de um dos terapeutas, o psiquiatra reconhece: “A Lykos e a MAPS não terão sido suficientemente diligentes para abordar a questão, continuando a publicar informação do centro onde o problema ocorreu.” Lembrando que a FDA aprova fármacos, mas não avalia o impacto de psicoterapias, o especialista só vê uma de duas saídas: “Ou há uma estratégia psicoterapêutica mais concreta e reprodutível, que não suscite dúvidas ao regulador, ou se retiram as sessões da investigação, havendo quem esteja a adotar a segunda opção.”

Desde os anos 1970 e 1980, o potencial do psicadélico como catalisador da introspeção e da reflexão tornou-se evidente na comunidade científica, mas o uso clínico ficou sem pernas para andar quando a Drug and Enforcement Administration, do Departamento de Justiça americano, colocou a MDMA nas drogas de Classe I (elevado risco de abuso e sem uso medicinal reconhecido), em 1985.

Os tempos mudaram. Há quase quatro décadas que a MAPS realiza estudos tendo em mente o acesso legal às terapias assistidas por psicadélicos. Sem reavaliação da decisão do regulador, terá mesmo de ser feito um terceiro estudo (a submissão do pedido de aprovação requer dois ensaios de fase 3).

“O revés era esperado; tem a ver com a pressa em obter resultados, a falta de cautela e as pressões sobre os participantes para não reportarem efeitos adversos durante os estudos”, avança Carolina Seybert, psicóloga clínica e investigadora da Fundação Champalimaud, destacando um problema identificado nestes estudos: “Findo o ensaio, há participantes que querem continuar a psicoterapia, mas não podem, sentindo-se abandonados.” Sobre as implicações da decisão da FDA, admite: “Pode dificultar a aprovação de outros ensaios, como os que estamos a conduzir com a psilocibina (em doentes de Parkinson).”

Próximos capítulos

Pedro Mota, presidente da SPACE, associação científica para o estudo e a divulgação das propriedades e do potencial uso clínico de psicadélicos, é o autor principal de uma revisão de estudos sobre a psicoterapia por MDMA no stresse pós-traumático, publicada em 2022, na Revista Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. Aí se referem estudos que validam a combinação de psicadélico e apoio psicológico, com ganhos na qualidade de vida de quem sofre de PSPT. 

O Observatório Trauma, em Coimbra, não tem números oficiais, mas o especialista observa: “Esta doença psiquiátrica, geralmente crónica, foi esquecida durante décadas e está subdiagnosticada.” Veteranos de guerra, migrantes e outras pessoas que lidam com a condição têm dificuldade em manter-se em tratamento, em virtude dos sintomas físicos que levam à desmotivação. Depois, “o sofrimento destes pacientes tende a passar de geração em geração”.

No atual cenário da investigação, “em que a burocracia é enorme”, o psiquiatra e investigador sublinha “o valor da evidência acumulada no mundo real, fora do contexto dos ensaios clínicos”, o que explica, por exemplo, que a Austrália tenha autorizado a terapia com MDMA para o stresse pós-traumático, há pouco mais de um ano. Pedro Mota adianta: “O governo holandês também vai insistir nos estudos naturalistas com a meta de validar estas terapias.” É esperar para ver.

Curar o stresse pós-traumático

Uma em cada três pessoas no mundo tem sintomas debilitantes se exposta a acontecimentos críticos (abuso, agressões, acidentes, catástrofes, morte súbita de ente querido, guerra)

Sintomas
Pesadelos e flashbacks
Pensamentos intrusivos
› Condutas evitantes
Alterações cognitivas e do humor
› Estado de alerta
› Ansiedade, depressão
› Abuso de substâncias
› Ideação suicida

Tratamentos atuais
› Psicofármacos
Psicoterapia (cognitivo-comportamental – CBT)
Dessensibilização e reprocessamento com estimulação bilateral (EMDR)
Terapia de exposição narrativa

Terapia assistida com MDMA (não aprovada)
Em cápsulas ou comprimidos (50 a 150 miligramas), reduz o medo, a ansiedade e atitudes defensivas, e promove sensações de bem-estar e confiança interpessoal
Psicoterapia pode contribuir para reduzir os sintomas

Fontes: Manual MSD,A Manual for MDMA-Assisted Psychotherapy in the Treatment of Posttraumatic Stress Disorder Michael, C. Mithoefer

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Messias Baptista sagrou-se, este domingo, campeão do mundo em K1 200 metros, arrecadando a segunda medalha de ouro para Portugal nos Mundiais de canoagem, que este ano decorrem em Samarcanda, no Uzbequistão. O canoísta português conseguiu concluir a prova em 34,876 segundos, deixando o polaco Jakub Stepun em segundo lugar (34,945) e o espanhol Carlos Garrote em terceiro (35,308).

Fernando Pimenta conquistou duas medalhas de prata, no K1 500m e K1 5000m. Esta foi a oitava prata do canoísta em Mundiais, a melhor classificação na distância.

Teresa Portela e Francisca Laia reinaram no K2 200m, obtendo também a medalha de prata. A dupla portuguesa terminou com 37,420 segundos, mais 0,094 do que a dupla Dolgova e Chernigovskaya.

Já com algum desgaste, Messias Baptista, Fernando Pimenta, Teresa Portela e Francisca Laia entraram em água e conseguiram alcançar o terceiro lugar na prova de K4 500m misto.

A medalha de ouro de Messias Baptista é a segunda de Portugal este ano, tendo o próprio vencido a primeira, no sábado, juntamente com Teresa Portela, em K2 500 misto.

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Alto, esguio, de camisa, calções e um par de meias com bonecos (uma perdição que todos gostam de dar e de receber no Natal). Hugo Sousa Tavares, que todos conhecem e tratam por Hugo van der Ding, chegou dez minutos mais cedo ao nosso encontro, para o caso de ser difícil encontrar lugar para estacionar o carro – uma companhia recente na sua vida agitada, ideal para o levar à descoberta do mundo aqui mais próximo, de Espanha e de Marrocos.

Frequentou dois cursos superiores: Direito, na Universidade Católica, porque sonhava com a vida diplomática, e História, na Universidade Nova de Lisboa. Recentemente, voltou a estudar algumas cadeiras do curso de História, para aprender mais sobre a presença portuguesa na Ásia, sobre os primeiros europeus que foram ao Japão, à China e à Índia.

Foi tradutor, sobretudo de obras em inglês, e anda há uma década a escrever o primeiro livro – um romance. São muitos os projetos pelo meio que o desviam da escrita compenetrada e isolada, principalmente a rádio, de segunda a sexta de manhã, um ou outro trabalho em televisão e as peças de teatro com digressão e tudo.

Não gosta de ser considerado humorista, mas faz rir – e muito – uma legião de fãs, que, diariamente, partilha as suas tiras humorísticas, com personagens hilariantes, como a psicanalista Juliana Saavedra, as egípcias e as astronautas, Celeste, a velha moderna, e a dona Custódia e “isto foram os drogados”, Esteves e a Marina e as suas mocas de erva, entre muitas outras – todas mulheres. Não quer ser famoso, mas já é um notável criador e comunicador. “Hugo, grande fã!”, solta alto e bom som uma corredora matinal, no jogging à beira-rio, enquanto decorria esta entrevista. Hugo ri-se e agradece. 

“Hugo, grande fã!” Durante a entrevista, à beira-Tejo, passou uma admiradora, que interrompe a corrida para elogiar Van der Ding

Como quer ser tratado, que pronome usa?
Ele. Esta história dos pronomes é algo a que estou muito habituado no teatro. Sei de uma peça em que há, pelo menos, duas das atrizes a usar pronomes que, para a maior parte das pessoas, não seriam os mais óbvios. São pequenas coisas tão importantes para as pessoas e que, para nós, é só uma palavra. O Teatro Nacional D. Maria II faz questão de perguntar, no início dos projetos, para as folhas de sala e até para o tratamento entre colegas. Acho incrível uma instituição pública ter já esse cuidado.

São atenções como esta, cuidados que passámos a ter com as palavras, que resultaram da cultura woke?
O mundo está este sítio estranho, em que as pessoas saíram das tabernas para as redes sociais. Estão altamente violentas, e o que devia ser um discurso para facilitar a comunicação entre todos transformou-se numa maneira de a dificultar cada vez mais. Desisti de dar grande conversa a essa luta e gosto de fazê-la de outra maneira. No Vamos Todos Morrer [rubrica nas manhãs da rádio Antena 3, sobre personalidades que já morreram], ao contar histórias, a mensagem entra de outra maneira; mostrando como a nossa sociedade provocou tanto sofrimento a tantas pessoas; como foram incríveis, ultrapassando todas as barreiras que a sociedade lhes punha, e não é preciso ir a grupos particularmente marginalizados. Durante o século XIX, são tantas as histórias de mulheres, por exemplo, que não puderam ir estudar para a faculdade, que os maridos ou os pais não as deixavam viajar. Quando fiz um programa sobre o Louis Braille, inventor da escrita em braille, recebi mensagens de cegos que diziam ouvir, todos os dias, o programa, e senti-me parte da História. Isto é o que se chama inclusão através da História, através da conversa. Esta é a minha forma de ativismo. Contar histórias é a maneira mais antiga que nós temos de passar mensagens.

Hoje a página humorística do Facebook “Cavaca para Presidenta”, visando a ex-primeira-dama Maria Cavaco Silva, seria de imediato cancelada?
Já foi há dez anos. Era o que mais gostava de fazer. Acordava todos os dias de manhã, abria as fotografias do site da Presidência da República e esperava que “ela” me dissesse aquelas coisas. Se calhar, é mesmo verdade que era um tempo mais inocente nas redes sociais. Tenho um caderno em que aponto todas as ideias e, às vezes, basta passar três anos e penso “isto é impossível de se dizer hoje”.

Considera que foi uma criança diferente. Tratado como especial ou de forma especial?
As duas coisas. Temos noção de que há qualquer coisa em nós que é diferente dos outros, quando estamos constantemente em embates com a autoridade. A vida é facilitada, há muitas coisas que são desculpadas e outras que eram tentativas de ser formatado, para não dizer certas coisas, para não ter certos comportamentos, e não falávamos de indisciplina. O meu pai dizia-me muito: “Temos de aprender a jogar este jogo das regras, antes de podermos subvertê-lo totalmente.” Na escola, lembro-me de estar a analisar os poemas de Camões, a contar as sílabas, e achava aquilo tudo absurdo e dizia: “Estamos a matar a poesia. Vocês não percebem nada disso.” Era esse tipo de comportamento que era constantemente cortado.

Gosta de ser filho único?
Não adoro, tenho um bocadinho de pena. O casamento dos meus pais foi muito breve, mas tenho um irmão do lado do pai e dois irmãos do lado do meu padrasto. Cresci mais chegado à minha mãe. Ninguém mais tem uma visão da minha mãe como mãe, a não ser eu. Quando és filho único, toda a atenção está centrada em ti, e isso pode ser muito opressor.

Desde que idade pensou ser ator?
Consigo localizar a minha conversa interior aos 9 anos e o momento específico durante umas férias em agosto. Pensava: falta-me viver a minha vida toda – porque tinha 9 anos – para ter 18 e com essa idade poder decidir. Sei que essa conversa não foi interrompida até hoje, que ainda sou essa criança que assiste à construção da sua identidade. Lembro-me de pensar “quando for ator, quando for escritor”. Dá-se uma coincidência de a minha vida me fazer completamente sentido, desde aquela conversa aos 9 anos. Não procurei nada, ligaram-me da rádio. Tudo acontece por convite, como no teatro com o meu amigo Pedro Penim [ator, encenador e diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II desde 2021].

Também fez parte do grupo Onda Choc. Como foi a experiência musical?
Não me lembro exatamente do ano, mas foi da segunda formação. A Joana Seixas, atriz, era minha amiga, andámos juntos na escola, e estava a entrar no grupo, então convenceu-me a ir. Devo ter estado um ou dois meses e fui-me embora pelo próprio pé. Era péssimo, não sei cantar nem dançar.

Política “A esquerda tem feito tudo aquilo que considero ser uma sociedade mais moderna, respeitadora e livre, e a direita, o contrário”

Entretanto, já representou e também escreveu para teatro?
O teatro é fascinante. A parte de trabalhar como ator não me diz muito. Tenho feito sempre peças do Pedro Penim que são awesome [incríveis]. O processo com ele é muito divertido, trabalhar com gente incrível e talentosa, são dois meses ou três muito intensos, de manhã à noite. Escrever faz toda a diferença, é divertidíssimo. Com o Martim [maestro Martim Sousa Tavares e seu primo], escrevemos O Misantropo, a partir de Molière, que vai voltar ao palco do Teatro Tivoli, em Lisboa, em novembro. Tínhamos tido a ideia, fomos convidados também pelo Pedro Penim; fechámo-nos três ou quatro dias num palacete a cair aos bocados em Tomar e escrevemos a peça. Adaptar Molière já é um luxo, depois poder dizer coisas inacreditáveis e ter atores a representar essas barbaridades – essa parte é a que me interessa mais.

O que se passou na adolescência para pensar que poderia ser bipolar?
Era assustador, porque não se sabia o caminho que a bipolaridade podia levar. É difícil explicar, porque, antes de estar medicado e de fazer terapia, o processo não era fácil. Havia situações que ultrapassavam o razoável da maneira de falar com os outros. Quer nas fases maníacas, quer nas fases depressivas, era tudo demasiado intenso, tudo demasiado histérico. Em casa, não era muito bem aceite. Sempre tive muitas ideias, muitos projetos, mas havia fases em que era cansativo falar, chegava ao fim do dia absolutamente exausto.

Sem alucinações ou surtos psicóticos?
Nunca tive. A parte mais marcada era claramente a depressão. Devo ter tido quatro momentos prolongados de meses muito, muito, muito graves, muito fechado em mim próprio, e ninguém se apercebia disso. O que não significava que não fosse altamente social, funcional médio, mas que saísse à noite muitas vezes e continuasse a ser divertido e a dizer os meus disparates. Sinto que “perdi” dez anos, porque, de todas as ideias que tinha, nenhuma se concretizava… a confusão mental era tanta. A partir do momento em que sou diagnosticado [aos 30 anos], começo a ser medicado e a fazer terapia, as ideias se calhar ficaram um bocadinho menos intensas.

Será uma herança genética?
Fazer diagnósticos retroativos é sempre complexo. Mas, de facto, tenho muitas figuras na família a que nós chamaríamos excêntricas, que em certos traços me levam a pensar que é possível que seja uma herança genética. Só que são pessoas que conseguiram, talvez por uma questão social, não ter esses embates, não ser as loucas na aldeia, só eram excêntricas.

Incomoda-o ter de tomar medicação para o resto da vida?
Não, nada. Sabem aquelas pessoas que lhes dói a cabeça e não tomam um comprimido? A grande conquista da medicina é o controlo da dor, mais vale morrer cinco anos antes e tomar o que for preciso.

O mundo está este sítio estranho, em que as pessoas saíram das tabernas para as redes sociais. Estão altamente violentas

Porque não usa o apelido de família, Sousa Tavares, e criou um nome artístico?
Foi para um texto que escrevi com o Pedro Penim, O Nome da Rosa, em 2014. Cada vez mais sou o Hugo van der Ding, até no banco. A parte mais pública do que faço começou de uma maneira anónima, com as tiras d’ A Criada Malcriada, depois queria incorporar a parte holandesa, tão importante na minha vida, e assim fica guardada para sempre neste apelido. Isso também me permite brincar com a minha biografia. Tenho 50 espalhadas pela internet, todas diferentes.

Autor de textos e de desenhos, escritor, ator, radialista, apresentador ou comunicador. Qual destas profissões prefere?
Gosto de autor. É suficientemente abrangente e satisfaz a curiosidade e a necessidade das pessoas que precisam de encaixar os outros em profissões. Só que vivemos num tempo, sobretudo e cada vez mais as gerações a seguir à minha, em que tal vai deixar de fazer sentido. Conseguimos experimentar coisas muito diferentes na vida. A maioria das pessoas hoje com 40 anos já teve três profissões em áreas muito distintas. Imagina que um médico no seu tempo livre gosta de criar catos. Se calhar não se identifica só com o ser médico, porque, para a sua identidade, isso é redutor.

Como começaram as tiras humorísticas no Instagram?
Como é que há pessoas que, durante 12 anos, continuam a achar graça a páginas nas redes sociais, que é o lodo do mundo, hoje em dia? Não me canso de dizer que ninguém vai ali insultar, as pessoas não se pegam umas com as outras, não ofendem. Deve ser uma espécie de safe space. Sei que os psicólogos têm grupos onde partilham as tiras da Juliana Saavedra, os médicos partilham as da doutora Messalina.

De onde vem tanta criatividade?
Olho para as coisas e não consigo parar de ter estas ideias. Não sei se se chama criatividade, mas é não conseguir ver o mundo tal como ele é. Estou sempre a desmontar tudo, vejo o lado ridículo de tudo. Ouço uma expressão e só vejo o segundo sentido. É como se visse o mundo sempre desfocado, o que às vezes é cansativo.

São só personagens femininas.
Na minha infância, as figuras mais marcantes foram a minha mãe e a minha avó. É um universo que, se calhar, eu domino melhor e depois acho que as mulheres têm mais matizes. A personalidade delas é mais variada, mais subtil, mais mordaz; elas tiveram de exercer soft power durante séculos. Se a psicanalista Juliana Saavedra fosse um homem, aquilo era de uma violência… a ironia transformava-se em brutalidade.

Viagens “Sempre que viajo, fico com imensa vontade de ficar a morar nos sítios, de fazer a vida igual à dos locais, de conhecer as pessoas e tentar perceber o que nos liga como humanos”

Portugal e os portugueses são uma boa matéria-prima?
Sempre fui um bocadinho essa esponja de estar a prestar atenção a tudo, a ouvir e a ver tudo o que está a acontecer à minha volta. E os portugueses são pessoas divertidas, têm esse espírito da calhandrice que toda a gente tem, no qual eu também me incluo. Quando tinha 16 anos, eu e a minha melhor amiga Nelly sentávamo-nos nas escadas de um prédio e ficávamos a ver pessoas a passar, só a inventar os seus nomes, com apelido.

Qual a importância de não se levar a sério?
As pessoas devem ser sérias e levar a sério o trabalho e o que fazem. É a missão de deixarmos alguma marca na vida dos outros. Agora, levar a sério os nossos defeitos, as nossas idiossincrasias e as dos outros, levar muito a sério todos os dramas da vida, isso não me faz sentido nenhum. Deve haver uma certa ligeireza e pensar que isto tudo começou numa caverna.

O humor consegue exercer bullying?
Sim. Não me considero humorista, e há uma diferença entre o seu trabalho e aquilo que faço. Para um humorista, o humor é o seu diamante, é o que está no centro da sua arte e que ele vai lapidar. A realidade é a matéria-prima com que se faz humor. Para mim, o humor é um veículo para outras coisas, seja contar uma história seja passar uma ideia, não é a minha matéria-prima. No Vamos Todos Morrer, a matéria-prima são vidas de pessoas que me fascinam, são histórias de países, de lugares, de acontecimentos, e uso o humor porque é uma forma muito mais fácil de passar a mensagem. É divertida a ideia de ridicularizar aquilo que é poderoso e que se leva a sério, de ridicularizar estereótipos, até porque ajuda a desmontá-los.

Em que situações fica circunspecto?
A bipolaridade faz com que isso seja natural. Como acordei de manhã pode determinar como levo o resto do dia. Mas o sofrimento dos outros toca-me muito, e o contraponto também, gente que sai do seu caminho para acudir ao sofrimento dos outros. São gestos de bondade.

O que o levou a viajar sozinho e a morar em Londres e, depois, em Amesterdão?
Uma vontade enorme de correr o mundo. Estar fechado e fazer sempre a mesma coisa deixa-me muito angustiado. Tinha 23 anos quando fui para Londres, era o destino mais óbvio na altura. A minha ideia era viver seis meses em cada país do mundo e voltar para casa! Depois acabei por ficar na Holanda por cinco anos. Não concretizei o plano de percorrer o mundo, mas, sempre que viajo, fico com imensa vontade de ficar a morar nos sítios, de fazer a vida igual à dos locais, de conhecer as pessoas e tentar perceber o que nos liga como humanos. Sobretudo para quem vive na Europa – com uma visão tão egocêntrica do mundo e de que nós é que somos o zénite –, ir ao Japão ou à Índia ou ao mundo árabe, a Marrocos a 1h20 de avião, e ver outras possibilidades de ser uma pessoa é fascinante.

O que se ganha com o contacto com outros povos?
Não há nenhum sítio no mundo que esteja hoje como estava há mil anos. Os países já foram invadidos por outros povos, isto já foi tanta coisa. Nós já cá tivemos os fenícios, os romanos, os visigodos, os árabes. Olhemos para a América há 500 anos, seja a do Sul seja a do Norte, ela está irreconhecível para um tipo de há 600 anos. A Polinésia era formada por ilhas desertas. Fascina-me como tudo é efémero. Lemos nos livros de História que a Alemanha invadiu a Polónia, em 1939. Nem pensamos duas vezes naquilo quando estamos a estudar a II Guerra Mundial, mas vemos na atualidade a Rússia a invadir a Ucrânia, e é gravíssimo e horrível o sofrimento humano, tal como foi na invasão da Polónia. Nem será preciso passar 100 anos para os nossos filhos e os nossos netos lerem sobre o tema num livro de História e perguntarem à professora se “a invasão da Ucrânia sai no teste”.

Foi tradutor durante dez anos. Há limites na interpretação das palavras, dos sentidos e significados?
Foi quando voltei de Amesterdão. Noventa por cento dos trabalhos eram em inglês, poucos em francês e um em espanhol, a autobiografia da Duquesa de Alba, que me mandou o livro autografado. Para mim, o inglês é como se fosse português. Punha o texto em bruto em português, quase palavra por palavra do inglês para português e, depois na revisão, transformava aquilo num texto bem escrito em português. O que era importante é que estivesse escrito em bom português. Agora estou a aprender árabe, para poder ler.

Levar a sério os nossos defeitos, as nossas idiossincrasias e as dos outros, levar muito a sério todos os dramas da vida, isso não faz sentido nenhum. Deve haver uma certa ligeireza e pensar que isto tudo começou numa caverna

Qual a causa que o leva a querer tocar na consciência dos outros?
A pobreza afeta a escolha, e todos os seres humanos que não tenham a hipótese de escolha ficam limitados na sua dignidade, na sua realização pessoal. A pobreza é a coisa mais terrível do mundo, que acentua ou diminui todos os outros preconceitos. Se falarmos de racismo, uma pessoa negra rica ou uma pessoa negra pobre não tem a mesma valoração; ser gay rico ou ser gay pobre não é a mesma coisa. A cura para o cancro pode estar numa menina que mora numa barraca em Deli, na Índia, que não vai aprender nem a ler nem a escrever.

Depois de informar a família de que estava apaixonado por um amigo, o tema da homossexualidade nunca mais foi assunto. Para eles ou para si?
Tinha 18 ou 19 anos e tornou-se um facto biográfico. Mais uma vez, por uma questão de feitio, também não perguntei o que achavam. Contei só e a reação foi normal. Se tiver um namorado vai lá a casa como iria o marido da minha irmã ou a mulher do meu irmão. Nem é um assunto. Mas houve alturas, em ambientes eventualmente mais tóxicos, em que já senti que as outras pessoas estão a pensar nesse tema e que me reduzem a uma categoria. É tão limitador.

Já sabe se é de esquerda ou de direita?
Acho que sou de esquerda, não é? Não, nunca fui de direita. Gosto das possibilidades que uma parte do modelo económico em que vivemos permite ser contra esse sistema económico e esse sistema político. Isso é fantástico. Percebo que, ainda assim, mais uma vez numa perspetiva histórica, foi esse modelo que permitiu que mais pessoas tivessem poder de escolha e liberdade de escolha. Agora, na política europeia e até na portuguesa, em todas as questões sociais, sou de esquerda. A esquerda tem feito tudo aquilo que considero ser uma sociedade mais moderna, respeitadora e livre; e a direita, o contrário.

Os atuais movimentos de extrema-direita sempre existiram, estavam camuflados?
As pessoas, por ignorância, por falta de companhia ou de carinho, por falta de ter melhor para fazer, são muito contestatárias. O que é preciso é aparecer uma voz que saiba canalizar tudo isso. Tínhamos a sorte de o Pinto Coelho [líder do antigo Partido Nacional Renovador] ser “atrasado mental”. Acontece que, de repente, aparece um tipo inteligente, claro, manipulador e que sabe usar muito bem tudo aquilo que desperta o pior da natureza das pessoas. Ouvimos: “Não existe um milhão de racistas em Portugal”, e eu respondo: “Pois não, existem muitas mais.” Tenho aquela teoria de que, se se perder algum tempo a ter uma conversa e a mostrar o contrário, qualquer pessoa, mesmo com ideias preconceituosas, melhora, salvo em casos psiquiátricos. Só que depois há as redes sociais que servem de amplificador. Se alguém entra com parti pris em relação ao Bangladesh, por exemplo, sai de lá com vontade de invadir o país.

Uma década de muita criatividade

TEATRO


2024 O Misantropo, a partir de Molière, texto escrito com Martim Sousa Tavares. Reposição em novembro, no Teatro Tivoli, em Lisboa

2024 A Grande Fantochada, autor do texto e manipulador de marionetas, com Vítor D’Andrade. A História de Portugal contada através de marionetas (feita pela dupla Mariana Fernandes e Marta Teixeira da Silva, da Lavandaria), ao som da música da pianista Joana Gama

2023 A Farsa de Inês Pereira, texto e encenação de Pedro Penim, a partir de Gil Vicente. Entrou como ator

2021 Pais & Filhos, texto e encenação de Pedro Penim, a partir de Ivan Turguéniev. Integrou o elenco e foi em digressão por França

2015 O Nome da Rosa, texto escrito com Pedro Penim, foi a sua estreia em palco

PODCASTS

Vamos Todos Morrer: minibiografias de personalidades que já morreram

Ponto de Desencontro: conversas com personalidades reconhecidas de várias áreas; vai voltar para uma segunda temporada

[IN]Pertinente: conversas sobre economia, sociedade, política e Ciência, um projeto da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Duas Pessoas a Conversar: conversa solta com Martim Sousa Tavares. Regressa em setembro

LIVROS

O Misantropo (2024)

O Fim do Mundo em Cuecas (2023)

Vamos Todos Morrer

Outra Vez (2023)

O Lixo na Minha Cabeça (2022)

Vamos Todos Morrer (2021)

O Inspetor Acidental (2016)

A Criada Malcriada (2013)

Com a Lavandaria, microeditora e estúdio de design e serigrafia, trabalha as exposições dos seus desenhos, que também transforma em serigrafias, no Natal

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