O Líbano, como sempre, está envolvido em sarilhos entre as forças xiitas do «Partido de Deus» (Hezbollah) e o poder militar israelita, que não tem igual na região nem na maior parte do mundo. As gerações mais jovens de libaneses, tanto muçulmanos como cristãos, estão legitimamente cansadas de servir como santuário para grupos terroristas, de ser um entreposto para material de guerra vindo do Irão e de ser um centro de lavagem de dinheiro de atividades e origens obscuras.

O Hezbollah atirou-se a Israel para vingar o seu comandante morto em Beirute, mas foi apanhado de surpresa pelo ataque preventivo lançado por Telavive. A capacidade de recolha de informações dos israelitas continua a ser notável. Antes mesmo de a ordem de ataque do comando político e militar dos extremistas ser enviada às suas forças, os aviões, mísseis e drones israelitas já estavam em cima do Líbano.

Este ataque do Hezbollah é muito semelhante ao que Teerão lançou há alguns meses contra Israel, que acabou em fracasso. Centenas de mísseis e drones foram lançados do Irão, mas a maioria foi abatida pelas forças aéreas dos EUA, Grã-Bretanha e França, e os que passaram foram destruídos pela Cúpula de Ferro. Essa ‘guerra’ terminou aí. A ofensiva do Hezbollah teve o mesmo destino, mas desta vez partiu com ligeiro atraso. É um golpe preventivo que deixa Teerão muito inquieta.

Todos os cenários estão em aberto, mas há intensas comunicações entre Estados terceiros para acalmar o ‘Partido de Deus’ e Israel. É muito difícil porque ainda falta a vez do Irão, e eles gostam de atacar por ondas. E cresce a profunda irritação e frustração entre os inimigos jurados que desejam destruir os israelitas: não bastava terem um Estado, como agora também estão protegidos por uma Cúpula quase intransponível. Assim não vale. Assim não funciona. Assim não pode ser. Assim não há guerra.

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Ainda hoje pensa que é de baixa estatura por não lhe terem dado tempo para crescer. Da infância, passou diretamente à idade adulta. Recorda sem saudade a própria figura, imberbe, encolhida sob a chuva, lavrando terras com um arado de madeira, puxado por duas vacas. Tinha oito anos quando o pai emigrou e já era militar, com dezanove, quando este regressou. Cresceu só com a mãe, a quem diz dever muito, apesar de a recordar áspera, como todas as pessoas naqueles tempos difíceis, numa pequena aldeia do sudeste de São Miguel, nos Açores. Ali, garante Ângelo Melo, enquanto atira o olhar sobre o casario, praticamente ninguém cantava riqueza.

Quando, de carro, me aproximo da Povoação, sede do concelho com o mesmo nome, tenho a impressão de se tratar de uma localidade tombada de um penhasco, ou que deslizou dele com vontade de partir mar afora. Lá em baixo, na parte Sul, banhados pelas ondas que trouxeram o navegador Gonçalo Velho Cabral, veem-se os edifícios da Câmara Municipal, do antigo tribunal, do pavilhão multiúsos, um hotel que lembra um farol, debruçado sobre uma pequena marina, tudo em branco caiado, a contrastar somente com as pedras de basalto que abraçam portas e janelas. Começo a poucos metros dali a conversa com aquele homem de 70 anos, defronte da Biblioteca Pública, instalada em edifício contíguo à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a que chamam Igreja dos Povoadores, a primeira da ilha, erguida em 1500, e que já albergou os Paços do Concelho. Tem a porta virada para o Atlântico e para as pequenas piscinas ao ar livre, onde – apesar dos catorze graus – nadam dois casais estrangeiros. Mesmo ao lado, um restaurante que foi um antigo forno de cal acende o lume para o almoço. Passa um ou outro carro e, fora isso, alheados dos afazeres dos humanos, ouvem-se apenas os pássaros nas árvores encanteiradas. Ângelo Melo, gasolineiro reformado, logo começa a falar-me da maior de todas as paixões e razão do nosso encontro: os livros. Dias antes, devolvera uma dúzia à biblioteca que nos olha. A leitura, explica, tornou-se coisa séria na idade adulta; antes disso, o campo não dava descanso e o desejo maior do pai era vê-lo fora da escola, para ter quem o ajudasse a criar uma lavoura de gado. A mãe também não via outro remédio e disse-o ao professor Ernesto da Mota Teves, um homem de muito brio e exigência, que se limitou a declarar ser pena ficar para trás quem deveria ir para a frente. Por isso, Ângelo não teve um banco de escola longo, lamenta. Com os colegas que também foram aprovados, fez uma festa quando terminou a quarta classe. Juntaram uns ferrinhos, dinheiro dado pelos pais, e alugaram um táxi com o qual correram a aldeia – andar de automóvel não só era coisa rara, como motivo de vaidade. E não perder nenhum ano era uma vitória, assim como ter adquirido o saber elementar e posto fim ao sacrifício do estudo. Estava ainda por entender, explica, enquanto ajeita o boné preto sobre o cabelo grisalho, que os livros são os melhores amigos que podemos ter e que aprender é um caminho para uma vida melhor. Foi por isso que, mais tarde, fez questão de voltar à escola, para terminar o liceu, objetivo que a vida não lhe permitiu cumprir, pela urgência de alimentar várias bocas. Mas recorda com orgulho que fez os dois anos do ciclo preparatório num só, com boas notas, entre as quais destaca, com um sorriso contido, um 17 a Português e um 18 a História. E remata: nessa altura, já tinha percebido que a leitura nos ajuda a entender o mundo e a ver a dimensão da nossa nudez, da nossa simplicidade.

O 25 de Abril e um trator, as Bermudas e um canudo

Pouco mais de um ano antes deste encontro, um homem que eu nunca vira estendera-me a mão, num evento da livraria Bertrand de Ponta Delgada, dizendo: o doutor Onésimo Teotónio Almeida mandou-me ao seu encontro, chamo-me Ângelo Melo. Cumprimentámo-nos, conversámos um pouco a propósito do livro que então se apresentava, bem como sobre a amizade e admiração que unia ambos ao escritor, filósofo e professor que, à distância, nos juntara e de quem eu receberia um email no dia seguinte, a perguntar-me se um tal Ângelo Melo (a quem, numa crónica que me enviava em anexo, publicada na revista LER, chamava o gasolineiro de devorador de clássicos) comparecera no lançamento. Nasceu desse diálogo atlântico – Onésimo dá aulas há 52 anos na Brown University, nos Estados Unidos – a minha vontade de saber mais sobre o homem que inesperadamente se me apresentara, o tal gasolineiro adepto da melhor literatura, e de tentar perceber como é que da miséria da lavoura micaelense nascera um grande leitor.

Sob o sol gentil da primavera seguinte, aproximamo-nos do posto de combustível, ouvindo o correr das águas do ribeiro. Ali, Ângelo Melo trabalhou um quarto de século; antes, distribuíra pão nas Furnas, depois de ter voltado à terra natal, após vários anos emigrado nas Bermudas. Mas já iremos a essas outras ilhas do mesmo oceano. De momento, fiquemo-nos por estas, a fim de preenchermos o espaço que subsiste em branco entre a juventude e a emigração. Tinha 20 anos quando se deu o 25 de Abril. Como é que viveu a revolução?, começo por perguntar. O 25 de Abril não nos disse nada, porque isto era um santuário de Salazar e do regime. Havia três ou quatro pessoas que dominavam isto e não se podia dizer nada. Lembro-me de que, nesse dia, às duas da tarde, apareceu um senhor nas pastagens que me disse: ai, que desgraça que vai em Lisboa, está a acontecer uma guerra, prenderam o Marcelo Caetano! De seguida volta a compor o boné e acrescenta: o homem não imaginava que aquele era o dia mais glorioso da nossa história, era a Liberdade. Tanto assim era, que, uns dias depois, percebendo já o que estava a nascer, Ângelo Melo e uns amigos picharam a placa de uma rua que ostentava o nome de um visconde local. Queriam substituí-lo por 25 de Abril, para que na pedra se lesse rua 25 de Abril. Não se lembra como, nessa noite, terminou a missão revolucionária, mas sabe que, no dia seguinte, toda a gente adivinhava quem havia cometido o delito e os descendentes do visconde queriam linchá-los. Felizmente, diz, não deu em nada.

Leitor orgulhoso As estantes, feitas por medida, recebem os visitantes da casa de Ângelo, com os livros bem organizados Foto: Nuno França

Aquando do 25 de Novembro, o País parecia-lhe um barco sem leme. Veio nessa altura a tropa, na Trafaria, concelho de Almada. Foi a primeira ida de Ângelo Melo ao continente, logo para 22 meses de serviço militar, quase todos passados no Batalhão de Reconhecimento de Transmissões, mas também, mais tarde, no Quartel-General de Ponta Delgada. Ainda sabe de cor o número mecanográfico: 015920/75. Desse tempo, recorda com nitidez o momento em que viu o capitão Salgueiro Maia, numa parada, com o livro do general Spínola, Portugal e o Futuro, debaixo do braço. Ainda tentou ir a sargento, mas viu-se impedido: era preciso ter uma altura mínima de 1,60 m e o jovem Ângelo não fora além de 1,57 m. Ainda assim, aqueles foram meses que valeram pela experiência de vida e pela carta de condução. Foi como militar que se fez motorista de pesados e, com a prática adquirida, não hesitou muito, em 1977, findo esse serviço, em endividar-se em 750 contos para regressar ao trabalho no campo como deveria ser: montado num trator. Manobrou-o nas terras férteis da Povoação durante três anos e pouco, até que casou e, ansiando por uma vida melhor, assinou um contrato-promessa para trabalhar nas Bermudas e vendeu o trator. Mas a coisa demorou a dar-se e, entretanto, sem trator, teve de se empregar numa empresa de construção de estradas, como manobrador de máquinas, primeiro, e como empregado de escritório, depois. Ainda esteve uns meses num armazém de bens alimentares e só depois conseguiu concretizar o desejo: a 27 de abril de 1981, já com uma filha de dez meses, partiu enfim para as Bermudas, com um nó na garganta e outro no coração – é que emigrar não é apenas ir atrás de uma vida melhor; os dias longe de quem se ama, explica, são lanças que nos cortam sem vermos as feridas. À chegada, sentiu tanto calor que quis arrancar a roupa ali mesmo. Sentiu-se mal, mas foi confortado pelo padrinho de crisma: toma calma, que ainda estamos em abril e muito pior está para vir, isto aqui é para homens. Dito isto, Ângelo Melo retirou o olhar do horizonte, conduziu-o até mim e acrescentou: faz lembrar aquela frase de Alves Redol, em Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos – um homem nunca chora, mesmo que veja as tripas doutro na mão.

Naquele arquipélago, porém, encontraria ânimo suficiente para aplacar a dor: a promessa de uma vida melhor, comprovada por incontáveis casos entre uma comunidade de cerca de dez mil portugueses, grande parte açorianos, que a todo o momento com ele partilhavam testemunhos de prosperidade, que iam da exibição dos carros que ali conduziam à descrição das casas que erguiam em Portugal. Também para Ângelo Melo, desse por onde desse, aquelas ilhas ricas representariam o garante do sonho maior: o de fazer uma casa para a família na sua ilha pobre. E, com a miragem do dinheiro diante dos olhos, ali viveu quase dez anos. Começou por trabalhar numa guest house e, mais tarde, no hotel Flamingo Beach, onde se sentiu tratado como um filho. Aprendeu inglês, primeiro escutando cassetes e lendo um pequeno livro, depois tirando um curso no Bermuda College, com a simpática e dedicada professora Anderson. Mas o que recorda com maior orgulho é o curso de eletricista. Lembra-se bem da receção de que foi alvo por boa parte dos vinte e cinco colegas: what wants portuguese here? Nas Bermudas, explica, os portugueses só tinham direito a trabalhar nas cozinhas e nos jardins. Alguns, poucos, empregavam-se na construção civil, como trolhas ou serventes. Nunca como eletricistas. Então, o jovem Ângelo mordeu a língua e jurou a ele mesmo dar o máximo; poderia ficar pelo caminho, mas, se tal acontecesse, muitos deles iriam ficar também. Ao professor, o engenheiro John Leonard Malloy, não passaram despercebidos o esforço e o potencial do aluno. Foi um dos dez que terminaram o curso, que lhe valeu emprego numa empresa de canalizadores e eletricistas. Ainda tenho o diploma, diz, fitando de novo o Oceano, com um sorriso no rosto moreno e sulcado.

A explosão da leitura

Alimenta aquele mar a ribeira do Além, que junta as águas de várias outras, como a dos Bispos, a da Lomba Grande, a da Madeira Nova, a da Madeira Velha, a dos Silvados, entre mais algumas de menor caudal. Já não transborda como no passado, altura em que chegou a destruir por completo a bomba de gasolina em que Ângelo Melo trabalhava. Depois de reconstruída, o que demorou mais de um ano, não havia clientes e o homem com o qual converso sentia-se mal por passar os dias à espera de ninguém, sem nada para fazer. Decidiu então emigrar de novo, dessa feita para o Canadá, para de novo trabalhar na construção civil, fazendo passeios. Mas não aguentou mais de quatro meses e decidiu regressar aos Açores. Ainda tomou conta de gado durante trinta e três dias, para subsistir, até que retomou o lugar no posto de combustível, de olhos postos da ribeira que o margina, como um guarda-rios. Foi nessa altura que se deu a explosão da leitura na vida de Ângelo Melo. Sempre gostei de ler e sempre tive respeito pelos livros, mas nas Bermudas não tinha tempo nem ânimo, confessa. Quando cheguei, foi diferente. Lia todos os dias e ao fim de semana. Para ele, o livro tem sempre mais do que um sentido, mas o que o motiva mais é sempre ir atrás de uma boa história. É claro, ressalva, que o livro também nos desperta e nos faz ver o meio envolvente, como tão bem consegue Zola, que desenterra muita coisa e nos dá tudo a entender. Para Ângelo Melo, e antes de dizer isto ensaia um ar solene, os livros devem dizer-nos o que precisamos de ouvir e nunca aquilo que gostaríamos de ouvir. De seguida, dá exemplos de autores que, no seu entender, o fazem melhor do que ninguém: José Saramago, Günter Grass, John Steinbeck, Sinclair Lewis. Reparo que referiu apenas escritores distinguidos com o Prémio Nobel e pergunto-lhe porquê. Há uns anos, lancei a mim próprio o desafio de ler todos os vencedores do Nobel, por achar que ali estava a melhor literatura. Explica-me que nunca teve quem lhe dissesse o que deveria ou não ler e que por isso encontrou no maior dos prémios o mais fiável dos conselheiros. Há uns de se lhe tirar o chapéu, mas outros, talvez por ignorância minha, e ao dizer isto baixa o tom de voz, não achei tão interessantes. Até posso confessar que li autores que não venceram o Nobel e que achei melhores do que muitos dos distinguidos. Pergunto-lhe quais e fala-me de imediato de Jorge Luis Borges, exemplo comum quando o assunto é este, para logo depois voltar a realçar alguns dos premiados que mais lhe agradaram: Pablo Neruda, Naguib Mahfouz, Nadine Gordimer, ou Miguel Ángel Asturias, preferência na qual coincidimos e em cujo debate nos demoramos um pouco mais. A dada altura, refere, triunfante: já li os quatro cantos do mundo.

Sem prestarmos atenção aos clientes que, ali ao lado, vão abastecendo os depósitos dos respetivos automóveis, e enquanto o vento tapa e destapa o sol com as nuvens, conta-me que, entre os portugueses, Eça é o favorito. Considera-o o verdadeiro escultor – ou ourives, precisa – da nossa língua. E possuidor de um excelente humor. Além dos romances, acha que todos portugueses deveriam ler As Farpas, projeto que partilhou com Ramalho Ortigão. Também gosta de Ferreira de Castro e de Alves Redol, refere, antes de cruzarmos a fronteira e nos pormos a falar de outro Nobel que nos une: o espanhol Camilo José Cela. Entre os italianos, gostou muito de Grazia Deledda, a segunda mulher a receber o galardão da Academia Sueca, em 1926, depois de Selma Lagerlöf. E entre os franceses? Apesar de gostar de Zola, Victor Hugo é o meu ídolo francês. Tive a felicidade de ler bons livros, sabe? A palavra é mesmo essa: felicidade. Hoje, leio menos, porque vejo pior, e tenho pena. Mas já li muita coisa. E dividi sempre o tempo entre prosa e poesia. Os meus poetas favoritos são Antero de Quental, adoro Antero, mas também Eugénio de Andrade, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Natália Correia… também gosto de José Régio, António Nobre, José Fanha, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena… Depois, faz um momento de silêncio, até que, de repente, pergunta: E já lhe disse que gosto muito de Antero?

Santo Antero e os bustos do OLX

Gosto mesmo muito de Antero, reitera, antes de endireitar as costas e começar a dizer um poema de autoria do grande escritor e poeta micaelense: À Virgem Santíssima. Quando termina, revela que sabe muita poesia de cor e que gosta de a dizer em voz alta. Tanto quanto aprecia ir à internet assistir a vídeos protagonizados pelos especialistas que mais admira: Aurelino Costa, Mário Viegas e Pedro Lamares – refere-os por esta ordem. Desafio-o a dizer mais alguns poemas e peço-lhe autorização para filmar. Enquanto escrevo estas linhas, ouço Bocage na voz do antigo gasolineiro povoacense. Mas o meu favorito, diz, é mesmo Antero… está a ver aquela casa ali? E aponta para uma casa baixa, branca e modesta, em frente ao posto de combustível. Indica-me depois uma portinhola de vidro, a meio da parede, ao lado da porta da habitação, explicando que é o lugar destinado ao contador da eletricidade, mas que os serviços competentes nunca o instalaram lá. Ficou, portanto, vazio. Vai daí, há uns anos, Ângelo Melo abordou a proprietária da casa, uma velhinha, e perguntou-lhe se o autorizava a colocar lá um santinho. Pensando, talvez, na proteção que lhe daria, a senhora disse gostar da ideia e entregou a chave da portinhola a Ângelo Melo. Mas, quando a abriu, o então gasolineiro não colocou no nicho nenhum santo canónico, mas sim um busto de Antero de Quental. Ainda lá ficou alguns três anos, disse, rindo-se como se riem as crianças quando fazem travessuras.

Visita regular A biblioteca pública continua a ser um lugar de veraneio para este açoriano amante da literatura Foto: Nuno França

Tenho muitos bustos de escritores, conta-me de seguida, antes de me convidar a ir a casa dele vê-los. Metemo-nos no carro e subimos a ladeira. Mora com a mulher numa casa boa, construída à custa de quase uma década de trabalho nas Bermudas, com jardim na frente, garagem num dos lados e um terreno amplo nas traseiras, de cuja varanda se encara uma vista formidável sobre um vale verdejante, com o mar ao fundo. Mal se entra em casa, dá-se com o orgulho maior de Ângelo Melo: os livros que, ao longo da vida, foi adquirindo, bem organizados nas estantes cujo desenho copiou de uma revista e encomendou a um parente marceneiro. Mas nelas exibe também os já referidos bustos: dois de Antero, um de Eça, outro de Pessoa, um de Júlio Dinis, outro de Guerra Junqueiro, para além de várias medalhas, uma das quais de bronze, do seu querido Victor Hugo. Também tem bustos de Mozart e de Chopin. Quase todos aqueles objetos, explica-me então, foram adquiridos online. A internet, que mora numa pequena secretária instalada na cozinha, é, desde 2005, outra das melhores amigas do grande leitor da Povoação. Gosto de procurar estes objetos no OLX, explica, referindo-se a um site de compras e vendas, e tomando os bustos e as medalhas nas mãos, para mos mostrar. Gosto de descobrir coisas, dá-me prazer. E gosto de viajar na internet, porque não tenho outros meios. Conta-me depois que esteve no continente pela última vez há 30 anos, porque a mulher teve de ser tratada nos hospitais da Universidade de Coimbra. Aproveitou para ir conhecer a Universidade, esteve no Paço das Escolas e, arregalando os olhos, diz-me: achei aquilo um esplendor. Aliás, qualquer casa de ensino é para mim um santuário. E os professores?, pergunto, por ter percebido que fala sempre deles com admiração. Um professor é uma figura que, quando os nossos pais lhe nos entregam, entra na nossa família, porque faz o que os pais não sabem nem podem fazer. É pena os professores já não serem valorizados, porque são pessoas que nos marcam e estudar é um privilégio. Eu sou amante da Geografia e da História e aprendo na internet. Há uns tempos, descobri o rio Dueça, em Miranda do Corvo, e gostei de o conhecer. Só anda oito quilómetros e encontra-se com o Ceira. Ângelo Melo começa, então, a partilhar estes e outros conhecimentos recentes, relativos às mais variadas regiões do País, de Trás-os-Montes às Beiras, passando pelo Alentejo. De repente, vejo-me sabedor das coisas mais improváveis, como a razão de ser dos nomes das antigas freguesias de Santa Vitória do Ameixial e São Bento do Ameixial, em Estremoz.

Procuro, então, devolver às estantes a atenção do meu anfitrião. Destaco, à medida que os meus olhos os identificam: Mario Vargas Llosa, Elfriede Jelinek, Amin Maalouf, Orhan Pamuk, António Lobo Antunes, Svetlana Alexievich, Abdulrazak Gurnah, William Faulkner, Ivo Andric, Imre Kertész, J. M. Coetzee, Yasunari Kawabata, Italo Calvino, Rabindranath Tagore, Boris Pasternak, Lev Tolstoi, Jonathan Franzen, João Guimarães Rosa, um Dom Quixote em edição recente, e também coisas menos prováveis, como uma História da Literatura Alemã, entre enciclopédias várias, publicadas pelo Círculo de Leitores, mas não só. Ângelo Melo entusiasma-se e, de tempos a tempos, enquanto conversamos, pega num volume, mostra-mo e diz: este livro é lindo! Minutos depois, confessa sentir-se contente porque a filha mais moça, quando vem de Ponta Delgada cá acima, também gosta de visitar as estantes. Sabe que cuidará bem delas e dos livros a que dão abrigo, quando ele já não estiver cá. Ficarão bem entregues, conclui, sorrindo ao de leve. O próprio Ângelo Melo gosta de as visitar todos os dias, mesmo que não leia nada. Concordamos, sorrindo, que os livros alimentam só de os vermos. Estou quase de saída quando me diz: ler é um gosto incomum, que devia ser mais comum, sobretudo entre os jovens… se eles soubessem que nos livros está o futuro deles, amá-los-iam com toda a força.

A coordenadora especial da ONU para o Líbano e as forças de manutenção da paz destacadas no país apelaram ao Hezbollah libanês e a Israel para “se absterem de qualquer nova escalada” e “cessarem fogo”. O apelo surge depois do Exército israelita ter lançamento de uma ofensiva no Líbano, este domingo de manhã, após ter detetado preparativos do Hezbollah para lançar “ataques em grande escala” contra Israel.

“Estamos a observar os preparativos do Hezbollah para ataques em grande escala contra o território israelita”, escreveu o Exército israelita numa mensagem em árabe dirigida à população do sul do Líbano. “Qualquer pessoa que se encontre nas imediações das zonas onde o Hezbollah está a operar deve abandonar imediatamente as suas casas para se proteger a si e às suas famílias”, acrescentou.

Recorde-se que o Hezbollah juntou-se ao Hamas na guerra contra Israel em outubro passado. Desde então, a violência na fronteira israelo-libanesa registou a pior escalada desde 2006. O grupo é aliado do Irão e prometeu um ataque em grande escala contra Israel, na sequência da morte de um comandante num bombardeamento israelita nos arredores de Beirute, em 30 de julho.

O Hezbollah integra o chamado “Eixo da Resistência”, uma coligação liderada pelo Irão de que fazem parte também, entre outros, o grupo extremista palestiniano Hamas e os rebeldes huthis do Iémen.

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O mês de agosto está a ser crítico para quem se convenceu de que a Food and Drug Administration (FDA) aprovaria o uso terapêutico da midomafetamina, ou MDMA. Os ensaios clínicos com a substância psicadélica, informalmente designada por ecstasy, têm vindo a demonstrar a sua eficácia na redução de sintomas da perturbação de stresse pós-traumático (PSPT), reforçando as pretensões da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS): ter um tratamento inovador destinado a pacientes que não apresentam resultados satisfatórios com os fármacos convencionais.

A droga psicoativa induz a libertação de monoaminas (serotonina, norepinefrina e dopamina) e hormonas (ocitocina e cortisol), contribuindo para baixar a atividade da amígdala e da ínsula, regiões do cérebro implicadas no medo e na ansiedade, facilitando ainda o reprocessamento de memórias traumáticas e a adesão dos pacientes à terapia. Com os resultados da terapia assistida por MDMA a irem mais longe do que os obtidos com os antidepressivos prescritos para a PSPT (paroxetina e sertralina), a FDA considerou o modelo promissor e aprovou os ensaios da fase 3.

O entusiasmo era, por isso, grande. Nas previsões de David Nutt, cientista do Imperial College London e autor do livro Psicadélicos – Um Guia Completo Sobre as Substâncias Revolucionárias que Podem Mudar a Sua Vida, este seria o ano da aprovação da terapia assistida por MDMA. Afinal, está a ser o das surpresas.

Os primeiros sinais de que nem tudo estava bem surgiram em junho, na audição do Comité Consultivo da FDA. A Lykos Therapeutics, farmacêutica da MAPS responsável pelos ensaios clínicos e a comercialização do fármaco, foi confrontada com falhas no protocolo. A insuficiência dos dados que comprovam a durabilidade dos efeitos e a garantia de eficácia e segurança é uma delas. Outra é o fator expectativa, pois quase 30% dos participantes da fase 2 tinham usado previamente a substância. E, por fim, as dúvidas quanto ao contributo das sessões de psicoterapia.

As recomendações terão sido acolhidas, mas não evitaram o chumbo. O pedido de um ensaio clínico adicional de fase 3 representa um recuo, já que serão precisos alguns anos até que a terapia assistida por MDMA veja a luz do dia.

Ondas de choque 

“Dececionante” foi o termo usado por Amy Emerson, CEO da Lykos, que pediu uma reavaliação da decisão. Entretanto, a revista Psychopharmacology retirou três artigos sobre a terapia assistida por MDMA. Na sua base terá estado a conduta não ética de Richard Yensen, um psicólogo canadiano acusado de abuso sexual por uma participante, após o ensaio clínico, que terá ocorrido em 2015 (os relacionamentos sexuais entre terapeutas e pacientes são proibidos pelas associações profissionais canadiana e americana, pelo menos até dois anos após a última sessão).

A meio de agosto, o presidente da farmacêutica, Jeff George, anunciou a redução da força de trabalho em 75% e Rick Doblin, fundador e presidente da MAPS, deixou o cargo no conselho da Lykos. O que se segue?

O ecstasy contribui para baixar a atividade da amígdala e da ínsula, regiões do cérebro implicadas no medo e na ansiedade

Albino Oliveira-Maia, diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud, está ciente do imbróglio que se prende com “a falta de neutralidade das equipas envolvidas nos ensaios e a impossibilidade de ocultação dos efeitos da substância, sobretudo se já se teve contacto prévio com ela”.

Sobre a conduta não ética de um dos terapeutas, o psiquiatra reconhece: “A Lykos e a MAPS não terão sido suficientemente diligentes para abordar a questão, continuando a publicar informação do centro onde o problema ocorreu.” Lembrando que a FDA aprova fármacos, mas não avalia o impacto de psicoterapias, o especialista só vê uma de duas saídas: “Ou há uma estratégia psicoterapêutica mais concreta e reprodutível, que não suscite dúvidas ao regulador, ou se retiram as sessões da investigação, havendo quem esteja a adotar a segunda opção.”

Desde os anos 1970 e 1980, o potencial do psicadélico como catalisador da introspeção e da reflexão tornou-se evidente na comunidade científica, mas o uso clínico ficou sem pernas para andar quando a Drug and Enforcement Administration, do Departamento de Justiça americano, colocou a MDMA nas drogas de Classe I (elevado risco de abuso e sem uso medicinal reconhecido), em 1985.

Os tempos mudaram. Há quase quatro décadas que a MAPS realiza estudos tendo em mente o acesso legal às terapias assistidas por psicadélicos. Sem reavaliação da decisão do regulador, terá mesmo de ser feito um terceiro estudo (a submissão do pedido de aprovação requer dois ensaios de fase 3).

“O revés era esperado; tem a ver com a pressa em obter resultados, a falta de cautela e as pressões sobre os participantes para não reportarem efeitos adversos durante os estudos”, avança Carolina Seybert, psicóloga clínica e investigadora da Fundação Champalimaud, destacando um problema identificado nestes estudos: “Findo o ensaio, há participantes que querem continuar a psicoterapia, mas não podem, sentindo-se abandonados.” Sobre as implicações da decisão da FDA, admite: “Pode dificultar a aprovação de outros ensaios, como os que estamos a conduzir com a psilocibina (em doentes de Parkinson).”

Próximos capítulos

Pedro Mota, presidente da SPACE, associação científica para o estudo e a divulgação das propriedades e do potencial uso clínico de psicadélicos, é o autor principal de uma revisão de estudos sobre a psicoterapia por MDMA no stresse pós-traumático, publicada em 2022, na Revista Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. Aí se referem estudos que validam a combinação de psicadélico e apoio psicológico, com ganhos na qualidade de vida de quem sofre de PSPT. 

O Observatório Trauma, em Coimbra, não tem números oficiais, mas o especialista observa: “Esta doença psiquiátrica, geralmente crónica, foi esquecida durante décadas e está subdiagnosticada.” Veteranos de guerra, migrantes e outras pessoas que lidam com a condição têm dificuldade em manter-se em tratamento, em virtude dos sintomas físicos que levam à desmotivação. Depois, “o sofrimento destes pacientes tende a passar de geração em geração”.

No atual cenário da investigação, “em que a burocracia é enorme”, o psiquiatra e investigador sublinha “o valor da evidência acumulada no mundo real, fora do contexto dos ensaios clínicos”, o que explica, por exemplo, que a Austrália tenha autorizado a terapia com MDMA para o stresse pós-traumático, há pouco mais de um ano. Pedro Mota adianta: “O governo holandês também vai insistir nos estudos naturalistas com a meta de validar estas terapias.” É esperar para ver.

Curar o stresse pós-traumático

Uma em cada três pessoas no mundo tem sintomas debilitantes se exposta a acontecimentos críticos (abuso, agressões, acidentes, catástrofes, morte súbita de ente querido, guerra)

Sintomas
Pesadelos e flashbacks
Pensamentos intrusivos
› Condutas evitantes
Alterações cognitivas e do humor
› Estado de alerta
› Ansiedade, depressão
› Abuso de substâncias
› Ideação suicida

Tratamentos atuais
› Psicofármacos
Psicoterapia (cognitivo-comportamental – CBT)
Dessensibilização e reprocessamento com estimulação bilateral (EMDR)
Terapia de exposição narrativa

Terapia assistida com MDMA (não aprovada)
Em cápsulas ou comprimidos (50 a 150 miligramas), reduz o medo, a ansiedade e atitudes defensivas, e promove sensações de bem-estar e confiança interpessoal
Psicoterapia pode contribuir para reduzir os sintomas

Fontes: Manual MSD,A Manual for MDMA-Assisted Psychotherapy in the Treatment of Posttraumatic Stress Disorder Michael, C. Mithoefer

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Messias Baptista sagrou-se, este domingo, campeão do mundo em K1 200 metros, arrecadando a segunda medalha de ouro para Portugal nos Mundiais de canoagem, que este ano decorrem em Samarcanda, no Uzbequistão. O canoísta português conseguiu concluir a prova em 34,876 segundos, deixando o polaco Jakub Stepun em segundo lugar (34,945) e o espanhol Carlos Garrote em terceiro (35,308).

Fernando Pimenta conquistou duas medalhas de prata, no K1 500m e K1 5000m. Esta foi a oitava prata do canoísta em Mundiais, a melhor classificação na distância.

Teresa Portela e Francisca Laia reinaram no K2 200m, obtendo também a medalha de prata. A dupla portuguesa terminou com 37,420 segundos, mais 0,094 do que a dupla Dolgova e Chernigovskaya.

Já com algum desgaste, Messias Baptista, Fernando Pimenta, Teresa Portela e Francisca Laia entraram em água e conseguiram alcançar o terceiro lugar na prova de K4 500m misto.

A medalha de ouro de Messias Baptista é a segunda de Portugal este ano, tendo o próprio vencido a primeira, no sábado, juntamente com Teresa Portela, em K2 500 misto.

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