A explosão de dia 4 de agosto deixou o Líbano nos olhos do mundo, mas para o país foi só mais um duro golpe na sua já macerada pele. Toda a capital se mexe para se reerguer, sozinha mas confiante.

Espaços vazios. O silêncio entrecortado pelas chamadas para as orações que ecoam das várias mesquitas da cidade ou pelos sinos das igrejas que teimam em não deixar de tocar. Portas fechadas, janelas que se perderam, murais de cores vibrantes que pedem paz, renascimento ou que recordam as vítimas da última tragédia que se abateu sobre a cidade: a explosão de um silo no porto de Beirute que, a 4 de agosto, provocou quase duas centenas de mortos e milhares de feridos. Durante vários dias, a capital do Líbano esteve nas bocas do mundo, mas hoje é uma cidade abandonada pelos repórteres, pelas ONG que ocuparam o terreno nos dias seguintes, e até pelo Governo, que se demitiu poucos dias depois da explosão, abrindo um vazio de poder que se prolongou durante três meses. Resquícios da thawra, a revolução que foi pedida por milhares de libaneses no ano passado, e que culminou com a queda do executivo de Saad Hariri, no final de 2019. O mesmo que há cerca de três semanas voltou ao poder, numa reviravolta clara daquilo que tinha sido pedido pelo povo que, durante semanas, saiu à rua para protestar contra a corrupção dos representantes da nação.
Recorde-se que foram precisos alguns dias até que a hipótese de um ataque terrorista fosse absolutamente afastada para justificar as explosões no porto – o Líbano está confinado entre a trágica Síria e Israel, com quem as relações continuam a ser bastante tensas. Mas o país é um bastião da liberdade religiosa no Médio Oriente, tem paisagens naturais e património histórico de fazer inveja e a culinária é, claramente, um ponto de honra. Já para não falar da vida cultural e recreativa que, em alguns momentos, nos fez mesmo esquecer que não estamos numa qualquer capital ocidental.

A braços com uma gravíssima crise económica, com escassez de alimentos e de medicamentos, com a pandemia da Covid-19 que lhe roubou os turistas (o setor representa cerca de 7% do produto interno bruto daquele país), a explosão “foi só mais uma coisa que aconteceu”, diz meio a sério, meio a brincar a Irmã Nawal, freira da congregação das Irmãs do Sagrado Coração, antes de pedir, emocionada: “Não se esqueçam de nós. O mundo não se pode esquecer de nós.” Estima-se que nos últimos meses cerca de meio milhão de pessoas tenha abandonado o país, para procurar uma vida melhor em locais como o Brasil, o Canadá ou os EUA. A posição geoestratégica do Líbano complica-lhe a vida há décadas e a população sente-se particularmente esquecida, quando não há tragédias recorrentes para reportar.

Mas desengane-se quem acha que vai aterrar em Beirute e encontrar uma cidade rendida, completamente destruída ou sem vontade de viver. A capital está de mangas arregaçadas, mesmo que a desesperança seja o que mais se sente na rua. No entanto, apenas dois meses depois das explosões que destruíram grande parte dos bairros próximos do porto da cidade, a reconstrução é uma realidade graças ao trabalho de organizações como a Offre Joie que, com a ajuda de dois mil voluntários, já recuperou 45 casas. Encontrámos Rodrigue Harb num dos bairros mais afetados pela detonação, onde prédios inteiros ficaram sem paredes. “No dia da explosão começámos a fazer o levantamento das necessidades e, dois dias depois, estávamos a trabalhar. Não esperámos pelos donativos, fizemos o contrário”, explica o ilustrador que agora é mestre de obras, também ele voluntário. “As pessoas estão mais disponíveis para dar dinheiro ou material, se virem que já estamos no terreno. E foi isso que fizemos. Montámos aqui uma carpintaria, uma serralharia… Temos tudo à mão para fazer o trabalho da melhor forma e o mais depressa possível”, conta à VISÃO enquanto nos encaminha para junto da pequena oficina de Charbel. De olhos tristes e perdidos, este conta-nos que desmaiou assim que a explosão se fez sentir, e que acordou com uma casa destruída e o desgosto de uma vida: o filho, no terceiro ano da universidade, campeão de judo, perdeu um olho naquele dia. E Charbel nunca mais foi o mesmo. “Fui combatente no Exército libanês. Tentei fazer tudo bem na vida. Fui um bom homem, um bom marido, um bom pai. Porque é que Deus me fez isto?”, atira-nos em jeito de pergunta que sabe não ter resposta. Pede desculpa pelas lágrimas que não consegue segurar, antes de contar que continua a abrir a sua loja às 6h da manhã, e onde fica até às 18h. Acabou de recuperar um cadeirão de madeira maciça de uma igreja próxima, para tentar ganhar algum dinheiro e alguma paz de espírito. Aplaude o trabalho da Offre Joie – “ofereceram-nos tudo, até a comida” –, mas está cansado.

“O nosso lugar está destruído, mas nós não estamos!”
No bairro de Charbel veem-se agora estruturas novas, portadas de madeira acabadas de fazer, ligações elétricas e canalizações adequadas. “Aqui vai nascer um jardim, para haver um espaço bonito para estas pessoas”, confidencia Rodrigue, que entretanto conseguiu a autorização da câmara para o construir. Não que as autoridades tenham feito coisa alguma para acudir aos moradores de Beirute, mas pelo menos não têm impedido a sociedade civil de se mobilizar. O que já é muito. E num país tão ferido pela guerra, isso é algo que as pessoas sabem fazer: em duas semanas as ruas da capital libanesa estavam limpas, graças ao trabalho de milhares de voluntários que organizaram grupos em todas as áreas da cidade. “Basicamente, só tínhamos de chegar, pegar numa vassoura ou numa pá ou no material de que precisássemos, e que estava à disposição em pequenas bancas, deixávamos o nosso nome, informávamos se precisávamos de almoço, e íamos trabalhar”, conta o padre Rui Fernandes, jesuíta a viver no Líbano há mais de ano e meio. “A comida foi oferecida e grupos de voluntários faziam uns saquinhos com o que houvesse, para alimentar os que estavam a colaborar nas limpezas”, como ele fez.

E se é certo que ainda conseguimos ver os tetos ricamente trabalhados e os sofás desconjuntados de muitos palácios libaneses cujos donos não estão no país, e que ficam assim de paredes abertas para o mundo, a verdade é que dificilmente se pode dizer que Beirute ficou destruída.

As ruas da cidade ecoam, mas a culpa é da Covid-19, que fechou escolas, restaurantes e estabelecimentos comerciais há vários meses. Nos bairros mais pobres, há uma obrigatoriedade de confinamento mais restrita – o facto de os hospitais, já insuficientes, terem sido atingidos pelas explosões, não ajudou ao controlo do coronavírus –, mas nos que têm mais dinheiro, a vida pode continuar a ser bastante agradável, ainda que muito mais cara. É que para fazer face ao enorme défice comercial acumulado, os bancos libaneses decidiram confiscar as contas correntes e, incapazes de manter o câmbio fixo que tinham com o dólar desde 1997, converteram todo o dinheiro em libras libanesas. Sem dólares nas instituições financeiras, a moeda libanesa pode ter agora sete diferentes taxas de câmbio no mesmo dia, no mercado negro. Durante a semana que passámos em Beirute, o valor do dólar oscilou entre as sete mil e as dez mil libras, e os preços dos alimentos, refeições fora ou roupa tocam facilmente os que encontramos em Portugal, o que torna qualquer compra praticamente incomportável num país onde o salário mínimo é de cerca de 150 dólares.
As esperanças estão agora postas num acordo internacional que permita ao país garantir ajuda financeira, reconstruir o porto (importante porta de entrada de bens de primeira necessidade) e voltar a ser a Paris do Mediterrâneo a que sempre aspirou. Os libaneses estão de olhos postos no futuro, mesmo que ele pareça difícil de alcançar: é por isso que continuam a fazer desporto, a passear como se estivessem num desfile de moda. Tal como a sorrir e a acolher como ninguém os poucos estrangeiros que os visitam e, os que ainda têm dinheiro, a encontrarem-se em lugares como o Salon Beyruth, onde um trio de jazz anima as noites de quarta-feira e refeições requintadas transportam os consumidores para um qualquer bar em Nova Iorque assim que passam à porta.

Reconstruir à mesa

James Gomez Thompson inspirou-se nos fornos comunitários espanhóis para reconstruir comunidades no Líbano. O projeto The Great Oven já alimenta centenas de pessoas e está a escrever uma verdadeira história de Amor no mundo.

Tudo começou com uma viagem a Tripoli, há cerca de dois anos: James, com a namorada, Nour, e um amigo artista saíram de Londres para ir até uma das zonas mais conflituosas do Líbano e ajudar as pessoas a reencontrarem-se umas com as outras através das artes e da comida. “Eu sou chef, de formação, e sou fascinado pela ideia de como a comida pode reabilitar relações entre as pessoas. Decidimos que íamos ensinar a cozinhar e a pintar. Tinha mesmo esta ideia de sentar pessoas que se tinham tentado matar em redor de uma mesa” para restabelecer relações, conta à VISÃO. O projeto foi um sucesso e deu lugar a um forno comunitário, construído com recurso a capitais próprios e a um artesão local. “A minha avó espanhola sempre me falou muito nos fornos comunitários e na importância deles para a construção de relações. E eu cresci fascinado com essa imagem. A ideia surgiu daí.”

Quando a explosão de 4 de agosto destruiu parte da cidade, a equipa do projeto, entretanto nomeado The Great Oven, decidiu que o forno tinha de estar onde estava a fome: com recurso a uma campanha de angariação de fundos fizeram-no chegar a Beirute, e já construíram mais três. Até ao final do ano, esperam que haja dez fornos no país. Enquanto nos conta a sua história, James aproveita para responder às duas avós que estão a descascar rabanetes ao nosso lado. “É um forno para a comunidade. São as pessoas que vêm cozinhar, com a nossa ajuda, claro. Mas o objetivo é fazer deste tempo um lugar de partilha.” Da cozinha vem o cheiro de quase 400 refeições que estão a ser preparadas para o jantar de hoje, sob a direção de um antigo prisioneiro do Daesh e de um refugiado sudanês – “É incrível a relação que aqueles dois estabeleceram. É tão bonito ver isto a acontecer”, sorri James enquanto aponta para eles. “É isto que a comida permite, sabe? A partilha numa mesa traz ao de cima o que temos de melhor.” Lá fora, um dos novos fornos está a ser pintado pelo artista libanês Apocaleps, sob os olhares curiosos do bairro de Achrafieh, um dos mais antigos da cidade.

O Banco Alimentar de Beirute tem sido um parceiro fundamental para o projeto, fazendo chegar os alimentos que são doados, mas também que são recuperados de hotéis ou restaurantes que entretanto fecharam portas. Com o preço dos alimentos a aumentar mais de 350% em apenas um ano, muitos libaneses estão, efetivamente, a passar fome. The Great Oven quer ser parte da solução. “Temos estas senhoras maravilhosas que se oferecem sempre para ajudar, dizendo que se estão em casa sem fazer nada podem vir cozinhar connosco, uma equipa de voluntários imensa e muita vontade de reconstruir as comunidades. E isso não é só dar-lhes comida: é ensiná-las a cozinhar, mostrar-lhes arte, porque as coisas bonitas também alimentam, e pô-las em diálogo.” O objetivo final é que estes fornos possam ficar nos bairros onde são mais precisos, e que as comunidades os usem como a avó espanhola de James fazia. A equipa do Great Oven vai saindo de cena, à medida que a independência de cada comunidade é construída.

Cada forno custa cerca de 10 mil dólares a produzir, mas o impacto que pode ter a médio e longo prazo numa comunidade é imensurável, garante o cozinheiro que chegou a trabalhar com Nigel Slater, um dos chefs-estrela da BBC. Até agora o projeto já arrecadou mais de 130 mil dólares, mas o chef receia que o “arrefecimento mediático” faça cair as doações. Entretanto o Great Oven foi contactado pela ONU, que pediu a James uma reunião para estudar a possibilidade de estes fornos chegarem a várias zonas necessitadas da América do Sul. “Foi tipo…uau!”, resume o mentor filantropista com uma gargalhada. É caso para dizer que afinal, sim, é possível que uma pessoa mude o mundo. E que a comida continua a ser a melhor forma de conquistar a paz.

Nota: O The Great Oven continua em funcionamento, e está, ao dia de hoje, 28 de setembro de 2024, a funcionar com os voluntários possíveis para alimentar as populações em fuga, no Líbano.

Nasceu a 19 de outubro de 1968, tem uma carreira política que já leva mais de três décadas, foi ministro do Interior (2017-2019), lidera o partido político que todas as sondagens apontam como grande favorito nas legislativas de 29 de setembro e, mesmo assim, é tido como uma personagem misteriosa. Filho e neto de nazis, Herbert Kickl habilita-se a ganhar de forma clara o escrutínio do próximo domingo, embora seja duvidoso que consiga formar um governo e ser chanceler (o equivalente a primeiro-ministro).

Pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial, o seu Partido da Liberdade (FPÖ), organização criada por antigos oficiais das SS (força de combate do partido de Adolf Hitler), pode vencer as eleições gerais, mas ainda está por saber se Kickl irá garantir apoios e celebrar compromissos que lhe permitam assumir a chefia do país encravado nos Alpes que partilha fronteiras com outros seis Estados-membros da União Europeia e também com a Suíça e o Liechtenstein. A explicação é simples: em termos públicos, os oito partidos que vão a votos com o FPÖ rejeitam qualquer entendimento com a formação que quase todos apelidam de “radical”, “xenófoba” e “populista”. Na prática, e nos bastidores, podem já estar a decorrer negociações com a formação que, desde o seu início, em 1956, pela mão de Anton Reinthaller e Friedrich Peter, sempre se regeu pelo pragmatismo e suposto liberalismo. Logo no seu segundo ano de existência, o FPÖ fez um acordo com o então chanceler Julius Raab para, em conjunto, elegeram o candidato presidencial da direita conservadora ‒ Wolfgang Denk, que seria derrotado pelo social-democrata Adolf Schärf), ou seja, apesar de ser um partido minoritário (até 1986 nunca atingiu os dois dígitos em eleições gerais), o FPÖ, nos últimos 68 anos, nunca teve menos de seis deputados em cada legislatura e nunca hesitou em fazer pactos, em função dos seus interesses conjunturais. Em 1970, deu respaldo parlamentar ao governo minoritário de Bruno Kreisky ‒ líder histórico dos sociais-democratas austríacos (SPÖ). Em 1983, integra pela primeira vez um executivo federal, também com o SPÖ, com o respetivo chefe de fila, Norbert Steger, a ser nomeado vice-chanceler e a pasta da Defesa a ficar sob tutela de Friedhelm Frischenschlager, que desencadeou um escândalo nacional ao receber, em funções, um criminoso de guerra (o nazi Walter Reed) que cometera vários massacres e cumprira quase três décadas de prisão em Itália. Em 1999, foi a vez do Partido Popular (ÖVP) unir forças com o carismático e radical Jörg Haider, formando uma coligação que indignou a União Europeia e a levou a decretar várias sanções contra a presença da extrema-direita no governo de Viena. É nesta altura que Herbert Kickl entra a sério no jogo político, escrevendo os discursos de Haider e desempenhando ainda o papel de assessor e estratega. Sempre na maior das discrições.

COMUNICADOR E LACAIO

O introvertido e excelente aluno que cresceu na Caríntia, e nunca terminou os estudos de Filosofia, História e Ciência Política na capital austríaca, revelou um enorme talento para o marketing e a comunicação. Reza a lenda que ao filiar-se no FPÖ terá dito: “Posso não saber nada sobre nada, mas posso aprender tudo sobre tudo.” Segundo uma biografia publicada em abril e intitulada Kickl e a Destruição da Europa, da autoria de dois jornalistas da revista Profil, ele é o principal responsável pela retórica anti-islâmica do partido e por frases como “A pátria [austríaca] não é o Islão”, “Viena não se pode transformar numa Istambul”. Uma estratégia que passou a render votos e nem inspirava particular simpatia a Jörg Haider, que sempre se esforçou por manter relações cordiais ‒ e bons negócios ‒ com alguns países de maioria muçulmana, nomeadamente a Líbia de Kadhafi e o Iraque de Saddam Hussein.

Contra certos factos não há argumentos que resistam e, a 3 de outubro de 1999, o FPÖ conquistou 26,9% nas legislativas (1,2 milhões de votos e 52 deputados), o melhor desempenho da sua história a nível federal. Graças ao contributo de Kickl, o partido passa a controlar ministérios estratégicos como a Defesa, Justiça, Finanças e Assuntos Sociais. Só que o poder desgasta e conduz a desentendimentos entre os melhores amigos. A coligação desfez-se passados três anos, agudizaram-se os problemas entre as alas moderada e radical do FPÖ, e o partido que quintuplicou o número de eleitores entre 1983 e o final do século XX perde influência e prestígio. Como se não bastasse, em 2005, Jörg Haider e um grupo de fiéis decidem abandonar o Partido da Liberdade e fundar a Aliança Pelo Futuro da Áustria (BZÖ). Por estranho que pareça, mistério que perdura até hoje, Herbert Kickl não acompanha os dissidentes. Pelo contrário, o apparatchik com ar de Harry Potter envelhecido, fã de Beatles e de Hegel, prefere não se expor e continuar a produzir slogans e insultos em larga escala. Chamou “Napoleão de bolso” a Jacques Chirac (Presidente francês), os outros partidos passaram a ser os “lacaios do sistema”, e o antigo presidente da comunidade judaica de Viena, o empresário Ariel Muzicant, chega a compará-lo com o ministro da propaganda nazi: “A sua agressividade e a sua linguagem fazem-me lembrar o Goebbels.”

Contrastes Em 1999, os austríacos manifestaram-se contra a presença do FPÖ no governo. Agora, perto de 28% dos eleitores admitem votar no partido

Deputado do Conselho Nacional (câmara baixa do Parlamento austríaco) desde 2006, o homem que tem a pretensão de ser o “chanceler do povo”, expressão que os nacional-socialistas também usavam em relação a Adolf Hitler, é um apologista incondicional do abendland (a civilização cristã do Ocidente). Heinz Mayer, constitucionalista, professor emérito da Universidade de Viena e subscritor de uma carta aberta aos seus compatriotas, adverte para os perigos deste tipo de conceitos: “[O programa eleitoral do FPÖ] tem traços etnonacionalistas e uma visão radical que interfere com o Estado social e de direito. (…) O objetivo é a eliminação dos dissidentes, a supressão das minorias, a subjugação do sistema judicial e a erosão das liberdades civis.”    

A confirmarem-se os estudos de opinião, os dados estão lançados. A Áustria, país neutral há quase sete décadas, a ilha alpina da felicidade, quase sempre imune aos problemas do mundo, ameaça converter-se no terceiro Estado da União Europeia a ser governado pela extrema-direita, tal como já acontece em Itália e na Hungria. Consultoras como a INSA e o Instituto Market-Lazarsfeld atribuem intenções de voto no FPÖ a rondar os 28%, colocam os conservadores do ÖVP em segundo lugar (25%) e a seguir os sociais-democratas do SPÖ, com 20%. Valores que quase replicam os resultados para o Parlamento Europeu, a 9 de junho, quando o Partido da Liberdade elegeu seis representantes, que integram agora, em Bruxelas e Estrasburgo, a bancada dos Patriotas pela Europa ‒ grupo a que também pertence a União Nacional, de Marine Le Pen, o português Chega, o espanhol Vox, o neerlandês PVV, de Geert Wilders, ou o húngaro Fidesz, de Viktor Orbán. Aliás, não é por acaso que muitos analistas, incluindo Tony Barber, editor do Financial Times, já falam em “orbanização” da UE: “O FPÖ promete ser uma nova peça que tentará gripar o motor comunitário, aliando-se ao seu gémeo do tempo dos Habsburgo”, escreveu Nikolaus J. Kurmayer, no jornal online Euractiv.

DITADOR E ALPINISTA

Em janeiro, a revista Falter colocou Herbert Kickl na sua capa, vestiu-o à moda de O Grande Ditador, de Charlie Chaplin, e analisou as propostas e o percurso político do candidato a “chanceler do povo”. Conclusão: “Boa parte das medidas que Kickl pretende adotar são contrárias ao direito internacional, ao direito europeu e à Constituição austríaca.” Sob o lema Fortaleza Áustria, Fortaleza da Liberdade, quer deportar sem delongas mais de meio milhão de estrangeiros que entraram clandestinamente no país ou que aguardam ainda concessão de asilo ‒ num processo a que chama “remigração” ‒, recusa receber ordens de Bruxelas e faz tábua rasa de qualquer sentença do Tribunal Europeu de Justiça (ou de qualquer outro órgão judicial supranacional), promete ignorar as regras ambientais decididas pelos 27, porque não se submete a “ecoterroristas” ou ao “comunismo climático”, diz que vai baixar a idade penal para os 12 anos, assume que baixará a generalidade dos impostos para os seus compatriotas “abençoados” e “de bem”, e ainda que suspenderá toda a ajuda militar e financeira à Ucrânia, fazendo jus à neutralidade nacional ‒ o que pressupõe que alinhará com Viktor Orbán nas tomadas de posição pró-Kremlin, de forma a garantir o normal abastecimento de gás russo à Europa e o fim das sanções ocidentais ao regime de Vladimir Putin.

O ainda chanceler Karl Hammer diz que o seu grande opositor é um “mercador de veneno político” e Peter Pilz, antigo deputado e dirigente dos Verdes, autor de um livro recente sobre o FPÖ e as ligações do partido à Rússia, acusa Herbert Kickl de ser uma “ameaça securitária”. O Presidente da Áustria, Alexander van der Bellen, já afirmou por diversas vezes que se arroga o direito de não dar posse a Kickl por este manifestar posições antieuropeias e se recusar a condenar a invasão russa da Ucrânia. A revista alemã Der Spiegel, na sua última edição, dedica um dossier a Kickl e apresenta-o como um alpinista (prestes a atingir o pico do poder). Título: “Quase lá!”

A herdeira mãos-largas

Marlene Engelhorn distribui milhões em nome da justiça social

Jan Zappner/re:publica

Tem 31 anos, já fez notícia nos maiores jornais e revistas do mundo  e é a primeira a reconhecer que a sua notoriedade se deve às contas bancárias. Marlene Engelhorn não precisa de participar de forma direta na campanha para as eleições deste domingo na Áustria. A tetraneta de Friedrich Engelhorn, fundador da BASF – multinacional da indústria química – tem os milhões e as convicções que a dispensam de militância partidária: “É injusto que um ser humano seja ultrarrico, que não pague impostos e possa beneficiar da sua fortuna para influenciar o debate político.” A aparente contradição do seu discurso está explicada no livro que publicou em 2022 – Gelt (Dinheiro). Na última primavera, criou um “Conselho para a Redistribuição” de 25 milhões de euros que recebeu da sua avó. Entre as 77 instituições eleitas estão a Wikipedia, com 50 mil euros, e a Tax Justice Network (ONG formada por académicos e ativistas que lutam contra a evasão fiscal e os paraísos fiscais), com 520 mil.

Palavras-chave:

Apresenta-se como “um filme provocador e deliberadamente imperfeito”, como se andasse à procura de grãos de areia para empenar a engrenagem. Mas o que, de facto, o filme exibe é uma imensa liberdade, como quem quer libertar o cinema das suas amarras narrativas e conceptuais, ainda que para isso se sirva de outros filmes.

Arrabalde lembra, por exemplo, os gestos livres de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, o cinema peculiar de José Oliveira, ou, para dar um exemplo geracional mais próximo do universo do realizador, Pedro Cabeleira. Por imperfeito que possa parecer, Arrabalde, dito filme manifesto observacional, só pode ser trabalho de alguém que viu bom cinema e saiu da Escola Superior de Teatro e Cinema há pouco tempo.

O filme inicia-se de forma tosca, com filmagens de telemóvel, numa mota à Moretti a circular pela Amadora e leva-nos até a uma peça quase sem público – chega a lembrar José Álvaro Morais, mas sempre mais rude. Depois, finamente envolve-nos em devaneios narrativos, por vezes quase sketches, com reflexões sobre a vida e a sociedade, com imagens mais ou menos sugestivas. Não abdica de momentos de humor, e de um olhar irónico ou satírico sobre aquilo que o rodeia.

Entre amadores e profissionais, conta com um elenco capaz de agir com a naturalidade exigida, incluindo o próprio realizador. Destaca-se naturalmente Luís Miguel Cintra, grande parte do tempo em off, mas também protagonizando uma das melhores cenas.

Arrabalde > De Frederico Serpa, com Frederico Serpa, Martim Guerreiro, Luís Miguel Cintra, Valerie Bradell, Manuel João Vieira, Pedro Lacerda > 76 min

Zorb sempre gostou de hambúrgueres, de passear nas ruas do bairro da Lapa, em Lisboa, ou junto ao rio, com a tutora, Inez Vaz Carvalho. O labrador, de 13 anos, criou desde pequeno o hábito de a seguir como uma sombra: se Inez ia à cozinha, ele ia atrás; se ela voltava para o sofá, ele regressava também; e, quando Inez ia à casa de banho e fechava a porta, lá ficava ele, do lado de fora, à espera. Foram 13 anos assim, felizes, para os dois.                      

Foi em agosto de 2015 que tudo se precipitou. Inez Vaz Carvalho, hoje com 60 anos, estava de férias no Algarve quando o filho lhe ligou com a má notícia: “O Zorb não está bem. Não se mexe, está sempre deitado.” Regressou a Lisboa numa correria, pegou nele com a ajuda do filho e levou-o ao veterinário, onde recebeu outra má notícia: o diagnóstico mais provável era uma leucemia galopante.

Depois da imobilidade das pernas, chegariam os problemas nos pulmões, com dificuldades respiratórias. “O médico disse que o mais provável era que ele já não durasse muitos dias. Falou em eutanásia, mas eu não estava preparada para aquilo”, conta Inez. Então, assim como o carregaram para o consultório, ela e o filho acabaram por carregá-lo de novo até casa.

Quando chegou, a primeira coisa que fez foi dar-lhe hambúrgueres. Comeu-os, mas mal. No resto do dia e da noite, ao ver Zorb deitado e imóvel, de fralda, sem reagir a nada, pensou que talvez estivesse a ser egoísta em querer mantê-lo assim. Regressou ao veterinário no dia seguinte, para o eutanasiar. “Foi horrível, não senti alívio nenhum. Mas reconheço que foi o melhor, apesar de difícil.”

Momento certo?

Ter um papel ativo na morte de um animal “é sempre uma decisão dolorosa e que provoca sentimentos ambivalentes”, esclarece Sofia Gabriel, psicóloga clínica responsável pela consulta especializada de apoio ao luto na Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense. “Por um lado, há o desejo de terminar com o sofrimento do animal, mas, por outro, o medo do próprio sofrimento, o sentir que ainda não estamos preparados, que queremos mais tempo com ele.” A psicóloga refere ainda que a tendência para pensar que existe um “momento certo” para concretizar a eutanásia leva a pensar que também existe um “momento errado”, o que faz aumentar o medo do arrependimento e a ansiedade.

Esta é uma decisão difícil, mas cada vez mais frequente. Com os avanços da medicina veterinária e os cuidados que os tutores lhes dedicam, os cães e os gatos vivem cada vez mais tempo. No entanto, acaba sempre por haver um dia em que as soluções de tratamento se esgotam e as doenças que causam sofrimento chegam.

“Por volta dos 7, 8 ou 9 anos, os animais alcançam a terceira idade. Depois, vem a velhice e, com ela, doenças semelhantes às nossas: problemas cardíacos, renais, oncológicos e, por vezes, uma espécie de demência senil, que se assemelha às nossas demências, em que os animais perdem capacidade de locomoção, de comer. São coisas que podemos controlar durante algum tempo, mas não curar”, explica o médico veterinário Ricardo Vintém.

Na Primavet, a sua clínica, é feita, em média, uma eutanásia a cada 15 dias. O número tem aumentado nos últimos anos e, para Ricardo Vintém, por boas razões: a evolução da mentalidade com que os humanos encaram os animais. “As pessoas têm uma ligação emocional com eles; fazem parte da família. É por isso que tentam fazer o melhor possível pelos animais. E, no fim de vida, isso implica poupá-los a um sofrimento desnecessário”, sublinha o médico.

Uma morte tranquila

Quando Inez Vaz Carvalho chegou a casa, depois da eutanásia de Zorb, tinha à sua espera Bi, a sua outra cadela, que a ajudou a superar o luto. Estava longe de o imaginar, mas, anos depois, teve de passar pela mesma decisão com ela, embora num processo muito diferente. Foi em abril de 2021, já tinha Bi 16 anos, que começaram os primeiros sinais: “Andava desnorteada, caminhava sem rumo, parecia que não me ouvia.” O médico começou por pensar que se tinha tratado de um AVC e medicou-a. Ela pareceu melhorar, mas por pouco tempo. “O veterinário acabou por dizer que seria uma espécie de Alzheimer dos cães.”

Progressivamente, deixou de andar; depois, de comer e beber. “Era eu que a mudava de posição de hora a hora, fazia-lhe umas papas para lhe dar à colher, dava-lhe água por uma seringa. Mas chegou uma altura em que parece que ela se esqueceu de como engolir. E não me conhecia.”

Quando Inez decidiu proporcionar uma morte tranquila a Bi, estava mais adaptada à ideia. “Com o Zorb, foi mais doloroso, talvez por ter sido repentino. Com a Bi, como cuidei dela durante quatro meses e fui vendo o processo de degradação, acho que me fui preparando, e acabou por ser mais pacífico para mim.”

A isto se chama luto antecipatório: um processo que começa a desenrolar-se antes da perda. “A pessoa vai reconhecendo e sofrendo com as inúmeras perdas simbólicas: a perda do animal como o conhecia até à data, a degradação da saúde física; o desaparecimento das rotinas – por exemplo, os passeios e as brincadeiras; a perda da sensação de procura do tutor pelo animal”, explica a psicóloga Sofia Gabriel.

“Em Portugal, não há dados, mas, no Reino Unido, existe um estudo que mostra que a esmagadora maioria dos animais de companhia acaba por ser eutanasiada”, conta Manuel Sant’Ana, médico veterinário e especialista europeu em bem-estar animal, que é, desde 2016, vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários.

O trabalho que refere, publicado em 2021, na Scientific Reports, da Nature, analisa os dados da morte de uma amostra de 29 865 cães, concluindo que 89,3% foram eutanasiados e apenas 8,3% morreram sem assistência. “A medicina veterinária lida com a eutanásia numa base diária”, diz o especialista. “Fá-lo porque temos o dever de fazer cessar o sofrimento, e chegamos quase sempre a um ponto em que é o único tratamento. E friso: a eutanásia é um tratamento – final, mas um tratamento, ainda assim.”

O código deontológico do médico veterinário, que entrou em vigor em setembro de 2021 e no qual Manuel Sant’Ana trabalhou, inclui, no seu artigo 21º, a eutanásia, estabelecendo que a decisão deve ter em conta a saúde pública, o estado de saúde do animal e o seu bem-estar, além dos legítimos interesses do seu detentor.

Os veterinários particulares, ao contrário dos municipais, têm liberdade de decisão conforme a sua avaliação e os seus valores. Há os que concedem em eutanasiar por razões de comportamento, fatores de conveniência ou insuficiência económica dos tutores; outros, no extremo oposto, assumem-se como objetores de consciência, recusando fazer o procedimento em quase todos os casos.

Os médicos veterinários estão entre as profissões que apresentam níveis de stresse e burnout dos mais elevados. O estudo “VetsSurvey”, de 2021, mostra que Portugal é um dos países onde se registam os índices mais altos, com 87% dos profissionais – médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários – a reportar níveis muito elevados de stresse e fadiga de compaixão.

Na origem disto estão muitos fatores, mas a prática da eutanásia é um deles. Há uns anos, Ricardo Reis Santos fez um conjunto de entrevistas a médicos veterinários que tinham decidido abandonar a profissão e estudar medicina humana. “Uma das razões apontadas foi justamente a árdua tarefa de praticar eutanásia a um grande número de animais, sobretudo em situações em que os motivos não estavam relacionados com a falta de opções terapêuticas, mas, sim, com a falta de meios financeiros por parte dos clientes.”

Há decisões difíceis também para os médicos, e o veterinário Ricardo Vintém reconhece que dantes havia situações complicadas com frequência. Por exemplo, pessoas que queriam fazer o procedimento porque ter um cão já não era conveniente. “Se recusávamos, diziam coisas como ‘Então, vou atirá-lo da ponte’. Ficava-se numa situação muito difícil. Faço o quê? Eutanasio sem estar doente? Arrisco que o animal vá sofrer mais e ter uma morte horrível, se não o faço? Isso hoje já não acontece, pelo menos aqui.”

O adeus

Independentemente do motivo, há boas práticas a ter em conta para o procedimento. “A primeira coisa é o consentimento informado”, explica Manuel Sant’Ana. Que, esclarece, “não é só assinar um papel: é compreender, explicar como é que o procedimento será feito, haver um diálogo e uma decisão partilhada”.

Depois, é preciso garantir condições de dignidade. “É um momento muito duro. O dono pode querer estar presente ou não – depende da pessoa, da relação com o animal e do estado em que este se encontra –, mas deve haver condições mínimas: ser feito numa sala sossegada, sem interrupções, com tempo e privacidade, para, no caso de estar presente, a pessoa poder expressar as suas emoções com tranquilidade e em privado.”

O tutor sofre quase sempre. O animal não. “A ideia é que deixe de sofrer. Eutanásia significa ‘a boa morte’”, nota. O procedimento “normalmente envolve uma sedação, embora não seja obrigatório, que deixa o animal inconsciente, e, depois, é administrado um anestésico, que, naquela dose muito elevada, provoca a morte por paragem cardiorrespiratória quase automaticamente. É muito rápido.”

As perdas não são todas iguais, nem com as pessoas, nem com os animais. “Se tenho um cão que uso como cão de guarda, é provável que, quando o perder, a resposta seja fraca. Fico triste, mas rapidamente o substituo, porque, para mim, o que era importante era a tarefa que ele desempenhava e não o cão em concreto”, explica Ricardo Reis dos Santos, biólogo e investigador do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que se tem dedicado a estudar questões relacionadas com o luto de animais de companhia.

Por outro lado, observa: “Se tenho um cão que me acompanhou durante o processo de divórcio ou que era da minha querida avó, que, antes de morrer, me pediu para cuidar dele, então este animal significa muito para mim.”

É por isso que a perda de um animal pode ser uma experiência emocionalmente violenta. “Para algumas pessoas, esta é uma das perdas mais dolorosas das suas vidas. Fazem o luto da relação perdida com base em sentimentos de intimidade e proximidade emocional, que podem ultrapassar a relação construída com um ser humano”, esclarece Sofia Gabriel.

Atualmente, o luto de um animal de companhia, embora envolva algum estigma, é, apesar de tudo, mais bem aceite do que há décadas. “Há 20 anos, se quisesse fazer um funeral para o meu cão ou se pedisse ao meu chefe que tolerasse a minha ausência durante dois dias para me recompor, seria socialmente censurado”, refere Ricardo Reis dos Santos. Hoje, “são membros da família, (…) gozam de um estatuto jurídico que lhes reconhece direitos; (…) existem funerárias e cemitérios para animais”, exemplifica.

Em casa de Milene Monroy, 38 anos, há um canto da sala onde bate o sol durante grande parte da tarde. Aí, há uma pequena prateleira com uma planta e uma caixinha, que é, na verdade, uma urna. Lá dentro está o que resta de Puskas. “Ele adorava aquele canto; era onde brincava e fazia grandes sestas ao sol. Assim, de certa forma, está lá a apanhar sol na mesma.”

Puskas foi um gato muito desejado, acompanhou-a em momentos difíceis e no processo de crescimento da família. Durante a pandemia, foi diagnosticado com uma insuficiência renal, e, durante dois anos, Milene e o marido fizeram tudo o que estava ao seu alcance para lhe dar uma vida de qualidade: medicação diária e administração de soro subcutâneo em casa, temporadas de internamento que lhes custaram muito a pagar. “Mas, no dia 28 de julho de 2022, tivemos de ceder à doença. O meu marido diz, e é verdade: apesar de tudo, tivemos dois anos de despedida, porque foi um milagre que ele tenha aguentado tanto tempo.”

Desde o diagnóstico que Milene sabia o que ia acabar por acontecer. “Lembro-me de que pensei logo que não me queria separar dele. Não tenho um quintal para o enterrar e comecei a pesquisar opções de cremação individual para ficar com as cinzas.” No dia da eutanásia, ela e o marido estiveram presentes, pedindo o dia no trabalho, apesar de a lei portuguesa ainda não consagrar esse direito.

Nos dias que se seguiram, Milene garante que lhe parecia ouvir miar em casa; chorava se via restos de pelo alaranjado no sofá, chamava-o e só depois se lembrava de que ele já não estava lá. “Não sei se fiz bem, mas acabei por ir buscar dois gatinhos ao gatil no fim dessa semana – a Nala e o Simba.” E a casa voltou a encher-se.

Como lidar com o processo?

Sofia Gabriel, psicóloga clínica responsável pela consulta especializada de apoio ao luto na Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense, deixa alguns conselhos práticos para lidar com a eutanásia de um animal de companhia

1. Estabelecer uma data com o veterinário para a eutanásia, o que permite tornar real a tomada de decisão e, dentro do possível, aproveitar os últimos momentos.

2. Pensar sobre a eutanásia como o último recurso e ter presentes as desvantagens de adiar a decisão: por exemplo, aumentar o sofrimento do animal. Em termos emocionais, é difícil aceitar que este é um ato de amor e altruísmo, mas, racional e objetivamente, é.

3. Planear, individualmente ou em família, o momento de despedida: quem estará presente? Quem é o primeiro e o último a dizer “adeus”? Pensar sobre o “último dia” ajuda a não ter medo de beijar e abraçar o animal, a pedir-lhe desculpa, a sentir que dissemos “adeus”.

4. Pensar no futuro. Refletir sobre os rituais do luto importantes para a família e para cada um dos membros. Isto inclui, por exemplo, construir um livro de memórias, plantar uma árvore no jardim predileto do animal, fazer uma doação de medicamentos ou libertar as cinzas num sítio especial.

5. Definir uma rotina de autocuidado e identificar estratégias de regulação emocional. Incluem–se aqui cuidados com a rotina de sono e alimentação, praticar exercício físico e usar técnicas de distração, como ler, ver uma série ou cozinhar.

O mundo dos canis

A  lei nº 27/2016 estabeleceu medidas para a criação de uma rede de centros de recolha oficial de animais (CROA), bem como a proibição do abate de animais errantes, como forma de controlo da população, tendo sido fixado um período transitório de dois anos para adaptação, que terminou em setembro de 2018.

Esta lei e uma portaria subsequente (146/2017) estabelecem critérios muito limitados para a eutanásia animal nestes centros de recolha, os chamados canis e gatis municipais. “É um absurdo. Um médico veterinário, na sua clínica, pode decidir de acordo com os seus critérios, mas o veterinário municipal não”, argumenta Manuel Sant’Ana, vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários. A lei, defende o responsável, faz com que “os veterinários municipais se sintam muito pressionados. São por vezes ameaçados e têm medo de fazer o que é melhor para o animal”.

Isto, alega, criou vários problemas sem solução à vista: enormes matilhas de ruas, que não podem ser acolhidas porque não há espaço; a sobrelotação dos canis e gatis e o sofrimento de muitos animais, apesar de a lei considerar que não é sofrimento suficiente para poderem ser eutanasiados. “Há animais doentes que o canil não tem capacidade de tratar, que não estão socializados, porque se encontram há 15 anos fechados numa jaula e não são adotáveis. Mas, como não estão com uma doença terminal que cause sofrimento irrecuperável – ainda –, vão ficar lá. Ao mesmo tempo que são mantidos, “os centros não conseguem aceitar outros mais jovens e saudáveis, que podiam ser adotados”, defende o também especialista europeu em bem-estar animal.

Eles fazem parte da família. E, no fim de vida, fazer o melhor implica poupá-los a um sofrimento desnecessário

Ricardo Vintém, Médico veterinário

(Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde de junho/junho de 2023)