Zorb sempre gostou de hambúrgueres, de passear nas ruas do bairro da Lapa, em Lisboa, ou junto ao rio, com a tutora, Inez Vaz Carvalho. O labrador, de 13 anos, criou desde pequeno o hábito de a seguir como uma sombra: se Inez ia à cozinha, ele ia atrás; se ela voltava para o sofá, ele regressava também; e, quando Inez ia à casa de banho e fechava a porta, lá ficava ele, do lado de fora, à espera. Foram 13 anos assim, felizes, para os dois.                      

Foi em agosto de 2015 que tudo se precipitou. Inez Vaz Carvalho, hoje com 60 anos, estava de férias no Algarve quando o filho lhe ligou com a má notícia: “O Zorb não está bem. Não se mexe, está sempre deitado.” Regressou a Lisboa numa correria, pegou nele com a ajuda do filho e levou-o ao veterinário, onde recebeu outra má notícia: o diagnóstico mais provável era uma leucemia galopante.

Depois da imobilidade das pernas, chegariam os problemas nos pulmões, com dificuldades respiratórias. “O médico disse que o mais provável era que ele já não durasse muitos dias. Falou em eutanásia, mas eu não estava preparada para aquilo”, conta Inez. Então, assim como o carregaram para o consultório, ela e o filho acabaram por carregá-lo de novo até casa.

Quando chegou, a primeira coisa que fez foi dar-lhe hambúrgueres. Comeu-os, mas mal. No resto do dia e da noite, ao ver Zorb deitado e imóvel, de fralda, sem reagir a nada, pensou que talvez estivesse a ser egoísta em querer mantê-lo assim. Regressou ao veterinário no dia seguinte, para o eutanasiar. “Foi horrível, não senti alívio nenhum. Mas reconheço que foi o melhor, apesar de difícil.”

Momento certo?

Ter um papel ativo na morte de um animal “é sempre uma decisão dolorosa e que provoca sentimentos ambivalentes”, esclarece Sofia Gabriel, psicóloga clínica responsável pela consulta especializada de apoio ao luto na Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense. “Por um lado, há o desejo de terminar com o sofrimento do animal, mas, por outro, o medo do próprio sofrimento, o sentir que ainda não estamos preparados, que queremos mais tempo com ele.” A psicóloga refere ainda que a tendência para pensar que existe um “momento certo” para concretizar a eutanásia leva a pensar que também existe um “momento errado”, o que faz aumentar o medo do arrependimento e a ansiedade.

Esta é uma decisão difícil, mas cada vez mais frequente. Com os avanços da medicina veterinária e os cuidados que os tutores lhes dedicam, os cães e os gatos vivem cada vez mais tempo. No entanto, acaba sempre por haver um dia em que as soluções de tratamento se esgotam e as doenças que causam sofrimento chegam.

“Por volta dos 7, 8 ou 9 anos, os animais alcançam a terceira idade. Depois, vem a velhice e, com ela, doenças semelhantes às nossas: problemas cardíacos, renais, oncológicos e, por vezes, uma espécie de demência senil, que se assemelha às nossas demências, em que os animais perdem capacidade de locomoção, de comer. São coisas que podemos controlar durante algum tempo, mas não curar”, explica o médico veterinário Ricardo Vintém.

Na Primavet, a sua clínica, é feita, em média, uma eutanásia a cada 15 dias. O número tem aumentado nos últimos anos e, para Ricardo Vintém, por boas razões: a evolução da mentalidade com que os humanos encaram os animais. “As pessoas têm uma ligação emocional com eles; fazem parte da família. É por isso que tentam fazer o melhor possível pelos animais. E, no fim de vida, isso implica poupá-los a um sofrimento desnecessário”, sublinha o médico.

Uma morte tranquila

Quando Inez Vaz Carvalho chegou a casa, depois da eutanásia de Zorb, tinha à sua espera Bi, a sua outra cadela, que a ajudou a superar o luto. Estava longe de o imaginar, mas, anos depois, teve de passar pela mesma decisão com ela, embora num processo muito diferente. Foi em abril de 2021, já tinha Bi 16 anos, que começaram os primeiros sinais: “Andava desnorteada, caminhava sem rumo, parecia que não me ouvia.” O médico começou por pensar que se tinha tratado de um AVC e medicou-a. Ela pareceu melhorar, mas por pouco tempo. “O veterinário acabou por dizer que seria uma espécie de Alzheimer dos cães.”

Progressivamente, deixou de andar; depois, de comer e beber. “Era eu que a mudava de posição de hora a hora, fazia-lhe umas papas para lhe dar à colher, dava-lhe água por uma seringa. Mas chegou uma altura em que parece que ela se esqueceu de como engolir. E não me conhecia.”

Quando Inez decidiu proporcionar uma morte tranquila a Bi, estava mais adaptada à ideia. “Com o Zorb, foi mais doloroso, talvez por ter sido repentino. Com a Bi, como cuidei dela durante quatro meses e fui vendo o processo de degradação, acho que me fui preparando, e acabou por ser mais pacífico para mim.”

A isto se chama luto antecipatório: um processo que começa a desenrolar-se antes da perda. “A pessoa vai reconhecendo e sofrendo com as inúmeras perdas simbólicas: a perda do animal como o conhecia até à data, a degradação da saúde física; o desaparecimento das rotinas – por exemplo, os passeios e as brincadeiras; a perda da sensação de procura do tutor pelo animal”, explica a psicóloga Sofia Gabriel.

“Em Portugal, não há dados, mas, no Reino Unido, existe um estudo que mostra que a esmagadora maioria dos animais de companhia acaba por ser eutanasiada”, conta Manuel Sant’Ana, médico veterinário e especialista europeu em bem-estar animal, que é, desde 2016, vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários.

O trabalho que refere, publicado em 2021, na Scientific Reports, da Nature, analisa os dados da morte de uma amostra de 29 865 cães, concluindo que 89,3% foram eutanasiados e apenas 8,3% morreram sem assistência. “A medicina veterinária lida com a eutanásia numa base diária”, diz o especialista. “Fá-lo porque temos o dever de fazer cessar o sofrimento, e chegamos quase sempre a um ponto em que é o único tratamento. E friso: a eutanásia é um tratamento – final, mas um tratamento, ainda assim.”

O código deontológico do médico veterinário, que entrou em vigor em setembro de 2021 e no qual Manuel Sant’Ana trabalhou, inclui, no seu artigo 21º, a eutanásia, estabelecendo que a decisão deve ter em conta a saúde pública, o estado de saúde do animal e o seu bem-estar, além dos legítimos interesses do seu detentor.

Os veterinários particulares, ao contrário dos municipais, têm liberdade de decisão conforme a sua avaliação e os seus valores. Há os que concedem em eutanasiar por razões de comportamento, fatores de conveniência ou insuficiência económica dos tutores; outros, no extremo oposto, assumem-se como objetores de consciência, recusando fazer o procedimento em quase todos os casos.

Os médicos veterinários estão entre as profissões que apresentam níveis de stresse e burnout dos mais elevados. O estudo “VetsSurvey”, de 2021, mostra que Portugal é um dos países onde se registam os índices mais altos, com 87% dos profissionais – médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários – a reportar níveis muito elevados de stresse e fadiga de compaixão.

Na origem disto estão muitos fatores, mas a prática da eutanásia é um deles. Há uns anos, Ricardo Reis Santos fez um conjunto de entrevistas a médicos veterinários que tinham decidido abandonar a profissão e estudar medicina humana. “Uma das razões apontadas foi justamente a árdua tarefa de praticar eutanásia a um grande número de animais, sobretudo em situações em que os motivos não estavam relacionados com a falta de opções terapêuticas, mas, sim, com a falta de meios financeiros por parte dos clientes.”

Há decisões difíceis também para os médicos, e o veterinário Ricardo Vintém reconhece que dantes havia situações complicadas com frequência. Por exemplo, pessoas que queriam fazer o procedimento porque ter um cão já não era conveniente. “Se recusávamos, diziam coisas como ‘Então, vou atirá-lo da ponte’. Ficava-se numa situação muito difícil. Faço o quê? Eutanasio sem estar doente? Arrisco que o animal vá sofrer mais e ter uma morte horrível, se não o faço? Isso hoje já não acontece, pelo menos aqui.”

O adeus

Independentemente do motivo, há boas práticas a ter em conta para o procedimento. “A primeira coisa é o consentimento informado”, explica Manuel Sant’Ana. Que, esclarece, “não é só assinar um papel: é compreender, explicar como é que o procedimento será feito, haver um diálogo e uma decisão partilhada”.

Depois, é preciso garantir condições de dignidade. “É um momento muito duro. O dono pode querer estar presente ou não – depende da pessoa, da relação com o animal e do estado em que este se encontra –, mas deve haver condições mínimas: ser feito numa sala sossegada, sem interrupções, com tempo e privacidade, para, no caso de estar presente, a pessoa poder expressar as suas emoções com tranquilidade e em privado.”

O tutor sofre quase sempre. O animal não. “A ideia é que deixe de sofrer. Eutanásia significa ‘a boa morte’”, nota. O procedimento “normalmente envolve uma sedação, embora não seja obrigatório, que deixa o animal inconsciente, e, depois, é administrado um anestésico, que, naquela dose muito elevada, provoca a morte por paragem cardiorrespiratória quase automaticamente. É muito rápido.”

As perdas não são todas iguais, nem com as pessoas, nem com os animais. “Se tenho um cão que uso como cão de guarda, é provável que, quando o perder, a resposta seja fraca. Fico triste, mas rapidamente o substituo, porque, para mim, o que era importante era a tarefa que ele desempenhava e não o cão em concreto”, explica Ricardo Reis dos Santos, biólogo e investigador do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que se tem dedicado a estudar questões relacionadas com o luto de animais de companhia.

Por outro lado, observa: “Se tenho um cão que me acompanhou durante o processo de divórcio ou que era da minha querida avó, que, antes de morrer, me pediu para cuidar dele, então este animal significa muito para mim.”

É por isso que a perda de um animal pode ser uma experiência emocionalmente violenta. “Para algumas pessoas, esta é uma das perdas mais dolorosas das suas vidas. Fazem o luto da relação perdida com base em sentimentos de intimidade e proximidade emocional, que podem ultrapassar a relação construída com um ser humano”, esclarece Sofia Gabriel.

Atualmente, o luto de um animal de companhia, embora envolva algum estigma, é, apesar de tudo, mais bem aceite do que há décadas. “Há 20 anos, se quisesse fazer um funeral para o meu cão ou se pedisse ao meu chefe que tolerasse a minha ausência durante dois dias para me recompor, seria socialmente censurado”, refere Ricardo Reis dos Santos. Hoje, “são membros da família, (…) gozam de um estatuto jurídico que lhes reconhece direitos; (…) existem funerárias e cemitérios para animais”, exemplifica.

Em casa de Milene Monroy, 38 anos, há um canto da sala onde bate o sol durante grande parte da tarde. Aí, há uma pequena prateleira com uma planta e uma caixinha, que é, na verdade, uma urna. Lá dentro está o que resta de Puskas. “Ele adorava aquele canto; era onde brincava e fazia grandes sestas ao sol. Assim, de certa forma, está lá a apanhar sol na mesma.”

Puskas foi um gato muito desejado, acompanhou-a em momentos difíceis e no processo de crescimento da família. Durante a pandemia, foi diagnosticado com uma insuficiência renal, e, durante dois anos, Milene e o marido fizeram tudo o que estava ao seu alcance para lhe dar uma vida de qualidade: medicação diária e administração de soro subcutâneo em casa, temporadas de internamento que lhes custaram muito a pagar. “Mas, no dia 28 de julho de 2022, tivemos de ceder à doença. O meu marido diz, e é verdade: apesar de tudo, tivemos dois anos de despedida, porque foi um milagre que ele tenha aguentado tanto tempo.”

Desde o diagnóstico que Milene sabia o que ia acabar por acontecer. “Lembro-me de que pensei logo que não me queria separar dele. Não tenho um quintal para o enterrar e comecei a pesquisar opções de cremação individual para ficar com as cinzas.” No dia da eutanásia, ela e o marido estiveram presentes, pedindo o dia no trabalho, apesar de a lei portuguesa ainda não consagrar esse direito.

Nos dias que se seguiram, Milene garante que lhe parecia ouvir miar em casa; chorava se via restos de pelo alaranjado no sofá, chamava-o e só depois se lembrava de que ele já não estava lá. “Não sei se fiz bem, mas acabei por ir buscar dois gatinhos ao gatil no fim dessa semana – a Nala e o Simba.” E a casa voltou a encher-se.

Como lidar com o processo?

Sofia Gabriel, psicóloga clínica responsável pela consulta especializada de apoio ao luto na Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense, deixa alguns conselhos práticos para lidar com a eutanásia de um animal de companhia

1. Estabelecer uma data com o veterinário para a eutanásia, o que permite tornar real a tomada de decisão e, dentro do possível, aproveitar os últimos momentos.

2. Pensar sobre a eutanásia como o último recurso e ter presentes as desvantagens de adiar a decisão: por exemplo, aumentar o sofrimento do animal. Em termos emocionais, é difícil aceitar que este é um ato de amor e altruísmo, mas, racional e objetivamente, é.

3. Planear, individualmente ou em família, o momento de despedida: quem estará presente? Quem é o primeiro e o último a dizer “adeus”? Pensar sobre o “último dia” ajuda a não ter medo de beijar e abraçar o animal, a pedir-lhe desculpa, a sentir que dissemos “adeus”.

4. Pensar no futuro. Refletir sobre os rituais do luto importantes para a família e para cada um dos membros. Isto inclui, por exemplo, construir um livro de memórias, plantar uma árvore no jardim predileto do animal, fazer uma doação de medicamentos ou libertar as cinzas num sítio especial.

5. Definir uma rotina de autocuidado e identificar estratégias de regulação emocional. Incluem–se aqui cuidados com a rotina de sono e alimentação, praticar exercício físico e usar técnicas de distração, como ler, ver uma série ou cozinhar.

O mundo dos canis

A  lei nº 27/2016 estabeleceu medidas para a criação de uma rede de centros de recolha oficial de animais (CROA), bem como a proibição do abate de animais errantes, como forma de controlo da população, tendo sido fixado um período transitório de dois anos para adaptação, que terminou em setembro de 2018.

Esta lei e uma portaria subsequente (146/2017) estabelecem critérios muito limitados para a eutanásia animal nestes centros de recolha, os chamados canis e gatis municipais. “É um absurdo. Um médico veterinário, na sua clínica, pode decidir de acordo com os seus critérios, mas o veterinário municipal não”, argumenta Manuel Sant’Ana, vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários. A lei, defende o responsável, faz com que “os veterinários municipais se sintam muito pressionados. São por vezes ameaçados e têm medo de fazer o que é melhor para o animal”.

Isto, alega, criou vários problemas sem solução à vista: enormes matilhas de ruas, que não podem ser acolhidas porque não há espaço; a sobrelotação dos canis e gatis e o sofrimento de muitos animais, apesar de a lei considerar que não é sofrimento suficiente para poderem ser eutanasiados. “Há animais doentes que o canil não tem capacidade de tratar, que não estão socializados, porque se encontram há 15 anos fechados numa jaula e não são adotáveis. Mas, como não estão com uma doença terminal que cause sofrimento irrecuperável – ainda –, vão ficar lá. Ao mesmo tempo que são mantidos, “os centros não conseguem aceitar outros mais jovens e saudáveis, que podiam ser adotados”, defende o também especialista europeu em bem-estar animal.

Eles fazem parte da família. E, no fim de vida, fazer o melhor implica poupá-los a um sofrimento desnecessário

Ricardo Vintém, Médico veterinário

(Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde de junho/junho de 2023)

“Hassan Nasrallah está morto”, declarou o porta-voz do exército israelita, tenente-coronel Nadav Shoshani, nas redes sociais, citado pela agência francesa AFP.

O Hezbollah não comentou publicamente o que aconteceu a Nasrallah, mais de 15 horas depois do devastador ataque israelita ao seu reduto nos subúrbios do sul de Beirute, mas uma fonte próxima do grupo admitiu à mesma agência que “perdeu o contacto” com Nasrallah desde sexta-feira à noite.

Segundo o exército israelita, o ataque aéreo de sexta-feira visou o quartel-general da direção do Hezbollah, que estava nesse momento reunido no local, em Dahiyeh, a sul de Beirute. Além de Nasrallah, terão morrido outros comandantes do Hezbollah, segundo os militares israelitas.

“Não esgotámos todos os meios à nossa disposição. A mensagem é simples: quem quer que ameace os cidadãos de Israel, nós saberemos como atingi-lo”, declarou o chefe do Estado-Maior do exército israelita, general Herzi Halevi, num comunicado citado pela AFP.

Hassan Nasrallah, um religioso de 64 anos, era alvo de um verdadeiro culto de personalidade no Líbano, onde era considerado o homem mais poderoso. Durante anos, viveu escondido e raramente aparecia em público.

O rapper e produtor musical Sean Combs – também conhecido pelos nomes artísticos “Puff Daddy” e “P. Diddy” – foi detido a 16 de setembro em Nova Iorque, acusado de tráfico sexual, extorsão, subornos e transporte para prostituição. Um dos nomes mais influentes do mundo do Hip Hop americano, admirado por milhões de fãs em todo o mundo, Diddy está agora a ser investigado pela justiça norte-americana num caso que está a chocar os Estados Unidos.

Quem é Sean “Diddy” Combs?

Conhecido por “Puff Daddy”, “P. Diddy” ou só “Diddy”, Sean Combs é um artista e produtor de música norte-americano, muito influente na indústria. Fundador da gravadora Bad Boy Records – criada em 1993 ao lado de Jay-Z – Combs, de 53 anos, está por detrás da carreira de grandes nomes do género musical Hip Hop como Notorious B.I.G., Mary J. Blige, Usher, Lil Kim, Faith Evans e 112. O autodenominado ‘bad boy’ da música expandiu também os seus negócios ao mundo da televisão e moda, acumulando uma fortuna de centenas de milhões de dólares.

Ao longo de três décadas de carreira, “Diddy” teve alguns problemas com a justiça norte-americana. Em 1998 foi detido após agredir o produtor de música Steve Soute com uma garrafa de champanhe e uma cadeira. Mas as acusações foram retiradas depois de emitir um pedido de desculpas público. No ano seguinte, em 1999, o músico foi detido novamente ao lado da cantora Jennifer Lopez, sua companheira na altura, após um confronto com armas num clube noturno de Manhattan que feriu gravemente duas pessoas. Combs, acusado de posse de arma e suborno, foi considerado inocente.

Mas denúncias de violência sexual só surgiriam em 2019 quando Gina Huynh, uma ex-namorada de Combs, alegou ter sido vítima de abusos físicos e emocionais, sem nunca ter, no entanto, apresentado queixa.  

As “freak-offs”

Detido a 16 de setembro, nos Estados Unidos, Combs está agora acusado de comandar um império de crimes sexuais e de abusar sexualmente de várias mulheres e alguns homens durante anos. No processo criminal – de 14 páginas –, citado pelo jornal New York Times, o nome do produtor surge associado a uma longa lista de crimes incluindo fogo posto, rapto, tráfico sexual, obstrução à justiça, suborno e transporte de mulheres entre estados com o intuito de prostituição.

A maioria das acusações surgem associadas às festas organizadas pelo rapper – a que chamava de “freak-offs” – e que envolviam uma elevada quantidade de drogas e sexo. Segundo a acusação, Combs drogava mulheres – com cocaína, oxicodona e cetamina -, forçando-as a ter relações sexuais com prostitutos e convidados enquanto o produtor filmava e se masturbava. As gravações – captadas sem o consentimento das vítimas – eram depois utilizadas para chantagear as mulheres, mantendo-as em silêncio. Combs “garantiu a participação das mulheres ao, entre outras coisas, obter e distribuir narcóticos, controlando suas carreiras, oferecendo apoio financeiro e ameaçando cortar o mesmo, e usando intimidação e violência”, refere a acusação.

Os “freak-offs”, descritos como maratonas sexuais no processo judicial, podiam durar vários dias e a acusação refere que os seus participantes chegavam a ter de fazer reposição de fluídos, através de injeções, devido à exaustão que provocavam. “Um verdadeiro espetáculo de horror com atuações sexuais elaboradas e produzidas”, descreve a acusação.

O processo – que não menciona nomes – refere ainda que as vítimas eram “obrigadas a permanecer escondidas – às vezes por vários dias – para se recuperarem das lesões infligidas por Combs”, após os eventos. “As vítimas acreditavam que não podiam recusar as exigências [de Combs] sem pôr em risco a sua segurança financeira ou profissional ou sem repercussões sob a forma de abuso físico ou emocional”, lê-se na acusação.

O Ministério Público norte-americano acusa ainda Combs de liderar, desde 2008, uma empresa criminosa responsável pela coordenação destas festas, incluindo a procura e transporte interestadual de indivíduos para prostituição e encobrimento de danos nos quartos de hotéis ou outros espaços utilizados. A empresa estaria assim envolvida no esquema de tráfico sexual, trabalho forçado, transporte para fins de prostituição bem como delitos relacionados com drogas, rapto, incêndio criminoso, suborno e obstrução à justiça. “Combs não fez isto tudo sozinho”, explicou Damian Williams, procurador encarregue pelo caso. “Ele usou os seus negócios, funcionários e outros associados próximos para conseguir o que queria. Estes indivíduos, supostamente, incluíam supervisores de alto escalão nos negócios, assistentes pessoais, equipa de segurança e empregados domésticos”, acrescentou.

O rapper nega todas as acusações, garantindo que os encontros, apesar da sua natureza, não envolviam agressões sexuais, nem “força, fraude ou coerção”.

A acusação de Cassie: Como tudo começou

O processo contra Diddy surge no seguimento de denúncias de abusos físicos, feitas em novembro do ano passado, pela cantora de R&B Cassandra Ventura, com quem Combs manteve uma longa relação amorosa durante mais de uma década. Segundo o processo, Cassie – nome artístico – refere que a relação entre ambos – que teve início em 2005 quando esta tinha apenas 19 anos – incluía drogas, agressões físicas e mentais e abuso sexual. No processo, Cassie menciona as “freak-offs”, acusando o artista de a forçar a participar nas festas e de a obrigar a manter relações sexuais com prostitutos enquanto filmava. Alegações que Combs “nega veementemente” e considera “ofensivas”.

Um dia depois de Ventura ter apresentado o processo, a 16 de novembro de 2023, as duas partes chegaram a um acordo para resolver o caso, embora não tenham sido revelados pormenores sobre os termos. “Decidi resolver este assunto de forma amigável, em termos que me permitam ter algum controlo”, explicou Ventura através de uma declaração.

Mas as alegações de Cassie levaram outras mulheres e homens, nas semanas e meses seguintes, a acusarem o produtor musical e espoletaram uma investigação policial que levou agora à detenção de Combs. Uma das acusações, em fevereiro deste ano, surgiu pelo produtor e músico Rodney Jones Jr. – mais conhecido como Lil Rod. O artista acusa Combs de contactos sexuais indesejados e de o ter forçado a contratar prostitutas e a participar em atos sexuais enquanto trabalhavam no álbum de Combs“The Love Album: Off the Grid”, em 2023. No processo, Jones afirma que Combs terá agarrado seus órgãos genitais sem o seu consentimento, tentando incentivá-lo ter sexo com outro homem, dizendo-lhe que era “uma prática normal na indústria da música”.

Mais recentemente, já depois de sua detenção, também Thalia Graves acusou o rapper e o guarda-costas deste de agressão sexual. Graves alega ainda que a agressão foi filmada por Combs que partilhou as gravações com outras pessoas. Até ao momento, oito pessoas acusaram formalmente o rapper de abuso e agressão sexual, mas as autoridades acreditam que este número possa vir a aumentar.

As acusações levaram à abertura de um processo federal e a buscas policiais nas casas de Diddy, em Los Angeles e Miami, em março deste ano. Nas suas propriedades foram encontrados narcóticos, vídeos dos “freak-offs” e mais de mil frascos de óleo de bebé e lubrificante. As autoridades apreenderam ainda nove armas de fogo do tipo AR-15 e munições, que a acusação diz terem sido usadas para intimidar testemunhas e vítimas.

Provas que não mentem

O Ministério Público afirma estar a construir um caso sólido contra Combs. Até à sua detenção foram questionadas mais de 50 testemunhas e vítimas – um número que pode vir a aumentar – e obtidos os registos financeiros, de viagens e faturação do produtor.

Uma das principais provas de abuso é um vídeo, de 2016, divulgado em maio pela CNN norte-americana. Nas gravações pode ver-se o momento em que Diddy – com apenas uma toalha em volta da cintura – agride violentamente Cassie num corredor de um hotel nos Estados Unidos. A acusação alega que o episódio se passou após uma tentativa de fuga de Ventura de um “freak-off” e que têm provas que, durante o ataque, pelo menos um prostituto se encontrava dentro do quarto de hotel.

Já a defesa do rapper alega que a discussão foi provocada por Cassie após descobrir que Diddy era infiel, e que a mesma terá agredido o artista e fugido do quarto com as roupas todas do músico – justificando a sua falta de vestuário.

Combs permanece numa prisão federal em Brooklyn, Nova Iorque, depois de lhe ter sido negada fiança. Na audiência, o juiz Andrew L. Carter Jr. mostrou-se preocupado com a possibilidade de obstrução à justiça, através da manipulação de testemunhas. Combs encontra-se ainda sob vigilância por risco de suicídio.  

O dia 28 de setembro de 1974 amanheceu com bom tempo, ainda convidativo para uma ida à praia. A Ponte 25 de Abril, em Lisboa, recém-rebatizada depois de retirada a placa toponímica “Ponte Salazar”, foi muito utilizada pelos lisboetas, durante todo o dia. Pela manhã, porém, movimentações militares do COPCON (Comando Operacional do Continente, criado a 8 de julho e comandado pelo estratega do 25 de Abril, o major graduado em brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho) restringiram, logo às primeiras horas, as movimentações civis. Foram erguidas barricadas, por populares – na verdade, elementos mobilizados, sobretudo, pelo PCP – que à entrada sul da ponte, do lado de Almada, ou em Sacavém, no final da Autoestrada do Norte, revistavam minuciosamente todas as viaturas, sob o olhar complacente dos militares, e sem outra autoridade que não fosse a da “legitimidade revolucionária”. A tensão sentia-se no ar, sobretudo quando foram encontradas duas ou três caçadeiras nas bagageiras de automóveis de gama alta, nomeadamente, da marca Mercedes-Benz, a favorita dos ”reacionários”. Muitos dos “apanhados” preparavam-se, inocentemente, para o dia seguinte, um domingo, em plena época de caça. No final, a manifestação de apoio ao Presidente da República, general António de Spínola, convocada para esse dia, em Belém, às 15h, acabou por ser boicotada e já não se realizou. No fundo, desconfiavam a ala esquerda militar e boa parte do povo que vitoriara, cinco meses antes, os capitães de Abril, que o que se preparava não era bem uma manifestação, mas uma marcha sobre Lisboa, que evocava outros exemplos, de triste memória, como a Marcha sobre Roma, de Benito Mussolini, em 1922. Para não falar do levantamento do 28 de maio de 1926, que começara por uma marcha desde Braga – mas essa era protagonizada pela tropa –, comandada por Gomes da Costa e instauradora da ditadura militar que daria origem ao Estado Novo, e inventaria uma criatura chamada Salazar. O anterior nome desta ponte.

Isto é uma tourada

Mas a época não era apenas de caça – e a “caça ao fascista” não era a única modalidade praticada nessa Lisboa, metade revolucionária e metade castiça. Era, também, o final da época das touradas que, tal como a caça, tinham os seus dias de atividade às quintas-feiras (no Campo Pequeno) e aos domingos (noutros locais do País). Dois dias antes, uma quinta-feira, precisamente, decorrera a “festa brava” na praça de touros da capital, com a presença do Presidente Spínola e do primeiro-ministro, conotado com o PCP, Vasco Gonçalves. Ainda não se tinha intensificado o PREC (Processo Revolucionário em Curso), como viria a suceder no “verão quente” de 1975, mas o “gonçalvismo”, com uma repentina viragem à esquerda, na condução dos destinos do País, estava a afirmar-se desde junho, quando o advogado maçon e de centro-direita, Adelino da Palma Carlos, primeiro chefe de governo no pós-25 de Abril, se tinha demitido e sido substituído por este oficial de Engenharia Militar. Por essa altura, já uns enigmáticos cartazes de aspeto um tanto ou quanto inquietante, com um boneco sem boca, que fazia lembrar o dr. Strangelove, convocavam os portugueses para uma manifestação de apoio a Spínola, para dar voz, finalmente à suposta “maioria silenciosa”. Ou seja, segundo os organizadores – que se escondiam atrás do anonimato, mas que pertenciam aos grupos de direita radical do Partido do Progresso (PP) e do Partido Liberal (PL) e se escudavam no pretexto de pugnarem pela não desvirtuação do programa do MFA… –, havia uma maioria de portugueses que, não podendo manifestar-se nas gritarias da revolução, se preocupava – em sintonia com as preocupações de Spínola – com o caminho que o País tomava, conduzido por Vasco Gonçalves, por Otelo, pelo MFA, pelo PCP e pela pulsão descolonizadora protagonizada, entre outros, pelo “almirante vermelho”, Rosa Coutinho, governador de Angola. Essa “maioria silenciosa” descia, finalmente, à capital, para fazer ouvir a sua voz.

História viva Em cima, barricadas à entrada de Lisboa e os elementos da Junta de Salvação Nacional.Em baixo, Otelo e Costa Gomes. O Presidente Mário Soares foi quem reabilitou o general Spínola

Uma manifestação à medida do que se desconfiava ser o projeto bonapartista do “general do monóculo” que, depois da crise Palma Carlos – e que à esquerda se entendia pelo falhado “golpe Palma Carlos” –, ensaiava agora uma segunda tentativa. Recorde-se que Palma Carlos se demitiria por ver recusada, no Conselho de Estado, uma proposta de lei constitucional que adiava as eleições um ano e meio e para as calendas de 1977 uma Constituição definitiva. E que, entretanto, colocava nas mãos do Presidente da República, praticamente, todo o poder. Ao mesmo tempo, Spínola tinha percorrido o País, apelando ao povo simples – começava sempre os discursos, em grandes comícios populares, com a formulação “meu bom povo!” –, alertando contra o perigo que pairava: o da substituição de uma ditadura de direita por uma nova ditadura de esquerda, imposta pelos comunistas. Ao mesmo tempo, procurava intervir no processo de descolonização, adiando ao máximo as independências e colocando-as, mesmo, em causa, mediante a realização de referendos nas colónias, uma ideia inaceitável, quer para os movimentos de libertação, quer para os próprios militares portugueses que tinham feito o 25 de Abril, precisamente, para acabar com a Guerra Colonial. Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, encarregado de negociar com os antigos “terroristas” africanos, era permanentemente ultrapassado pela situação de facto, no terreno, onde nenhum soldado queria arriscar perder a vida, para impor um referendo, agora que o fim da guerra se tinha anunciado. As posições eram, portanto, inconciliáveis.

Os setores tauromáquicos são, ainda hoje, muito ligados à direita e à direita radical. Mesmo que o universo de aficionados seja, politicamente, bastante transversal – aliás, a tradição tauromáquica está mais implantada a sul, em autarquias historicamente comunistas… De repente, naquela corrida de 26 de setembro, a multidão explodiu em vivas a Spínola, enquanto apupava e insultava Vasco Gonçalves. E o cavaleiro José João Zoio, na primeira bandarilha espetada, terá mesmo desfraldado uma bandeira que replicava o cartaz da maioria silenciosa. Cá fora, houve desacatos. Sentia-se a eletricidade no ar.

Estado de sítio?

Umas semanas antes, uma comissão encabeçada pelo general spinolista Galvão de Melo, membro da Junta de Salvação Nacional, órgão constituído no dia 25 de abril, e que seria, mais tarde, candidato a Belém e deputado independente pelo CDS, propusera a Spínola a realização da manifestação, uma ideia que o PR aceitou de forma entusiástica. Com Melo, estavam o coronel Fernando Cavaleiro, presidente da comissão organizadora, e o general Almeida Viana, presidente da Liga dos Antigos Combatentes. O dia 28 de setembro, um sábado, era a data aprazada para a manif. A direita faria uma demonstração de força.

Assustado, naquela manhã, mas percebendo a oportunidade, o PCP mobilizou, portanto, os seus militantes para erguerem barricadas nas entradas de Lisboa: “Não passarão!” Alegadamente, fizeram-no em busca de armas proibidas – mas, na prática, atemorizaram os eventuais manifestantes, dissuadindo-os e desmobilizando-os. Bem entendido que estas ações foram autorizadas pelo MFA colaborante e que nem o PS nem o PPD (futuro PSD), representados no governo, mexeram uma palha para garantir o direito à manifestação que, a partir daquela data, parecia ser exclusivo da esquerda. O CDS e os seus dirigentes, apesar de se terem demarcado da iniciativa, é que passaram um mau bocado, o que teria desfecho dramático no cerco ao seu congresso no Palácio de Cristal, no Porto, quatro meses depois.

Tensão No Diário de Lisboa, fazia-se menção às provocações dos reacionários, durante a tourada. O cartaz tinha as palavras “maioria silenciosa” no lugar da boca do estranho boneco. E Spínola ainda era o homem do momento…

É claro que a convocação da manifestação por elementos de partidos não representados no Governo Provisório enfraquecia a sua credibilidade democrática e originava profundas desconfianças. Spínola, por sua vez, nada fez para procurar o apoio dos partidos democráticos moderados, o PS e o PPD. Provavelmente, sabia que eles, naquela fase, não só não estavam interessados em prestar esse apoio, como até estavam desejosos de se verem livres dele.

No dia 29, de manhã, numa tempestuosa reunião em Belém, Spínola procurou impor o estado de sítio, na área metropolitana de Lisboa. E um dos seus próximos, o general Firmino Miguel, ministro da Defesa (que se demitiria) chegou a dizer que havia graves tumultos na Margem Sul do Tejo, com derramamento de sangue. Todavia, o general Francisco da Costa Gomes, também da Junta de Salvação Nacional (JSN) e primeira escolha dos capitães para a Presidência da República (caso Spínola, em abril, não se tivesse antecipado), decidiu ir ver com os seus próprios olhos, tendo sobrevoado toda a região, de helicóptero. Ora, tal como diria a antiga formulação do Estado Novo, afinal “reinava a tranquilidade em toda a Nação”.

Obviamente, demito-me

No seu discurso de renúncia ao cargo, perante os 19 conselheiros de Estado e com a presença das câmaras da RTP, que transmitia em direto, Spínola faz uma análise bastante pessimista do estado a que a revolução chegara. Depois de ter traçado um quadro negro e ultrapessimista do “caos nacional”, nas suas vertentes política, social e económica, o “general do monóculo” proferiu a frase definitiva: “Renuncio ao cargo de Presidente da República.” Sim, porque um PR não se demite, por não ter a quem apresentar a demissão. Ou fica ou sai. Ou preside ou renuncia. A seguir, Spínola pegou nos seus papéis, encerrou a sessão e foi para casa.

Minutos depois, porém, a reunião do Conselho de Estado era reaberta, agora sem Spínola nem os seus apoiantes da junta, que se demitiram com ele. Eram saídas há muito reclamadas pela Comissão Coordenadora do MFA, um órgão formado pelos capitães e que tinha ganhado cada vez mais protagonismo, comportando-se como um verdadeiro poder paralelo. Saíam, assim, Galvão de Melo, Silvério Marques, Diogo Neto, Almeida Bruno e Ricardo Durão. Permaneciam Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo e Rosa Coutinho. Costa Gomes pede aos jornalistas que saiam da sala, antes de retomar os trabalhos, agora mais informalmente.

O nº 2 da JSN dirige-se aos conselheiros e pergunta: “Parece-me que haverá que proceder, de imediato, à designação de um novo Presidente da República. Não será assim?” E pede aos conselheiros juristas, nomeadamente, Freitas do Amaral, Isabel Magalhães Colaço e Azeredo Perdigão, que digam de sua justiça. Veio à mesa a lei 3/74 – a lei constitucional provisória – e procurou-se a norma aplicável: “O Presidente da República é escolhido pela Junta de Salvação Nacional, de entre os seus membros.” Ou seja, competia à junta e não ao órgão Conselho de Estado designar o sucessor de Spínola. Freitas do Amaral sugeriu que os elementos civis saíssem e que ficassem apenas os membros da junta, para deliberar. Mas Costa Gomes atalhou logo: “Não senhor, não há nada a esconder. Podemos fazer tudo perante o Conselho de Estado e até é preferível que assim seja.”

Subsistia um problema: após a saída dos militares spinolistas, a junta tinha agora apenas três membros (um dos quais, Rosa Coutinho, se encontrava em Angola), quorum insuficiente para se proceder à designação de um novo PR. Era preciso cooptar, pelo menos, dois e, depois, os cinco cooptariam mais dois, para fechar o elenco. Um processo moroso que não permitia uma decisão rápida. Mas Isabel Magalhães Colaço desataria o nó: numa situação de exceção e necessidade, qualquer órgão colegial estava habilitado a funcionar com três elementos. E estes tinham, portanto, toda a legitimidade para proceder à escolha, imediatamente. Bastava telefonar para Luanda e recolher o voto de Rosa Coutinho. Os outros juristas estavam de acordo. E Pinheiro de Azevedo, o outro militar presente, além de Costa Gomes, declarou: “Por mim, voto já no Costa Gomes. Se o Rosa Coutinho também o fizer, fica o assunto arrumado.” E foi assim que Costa Gomes foi eleito (com um voto por telefone, de caminho…), mantendo-se no cargo até 1976, com o País já munido de uma Constituição e com um sufrágio direto e universal. Seria, assim, António Ramalho Eanes o primeiro Presidente da República eleito pelos portugueses.

Em jeito de epílogo, deve acrescentar-se que, naquele transe, o PCP tomou consciência da sua força: tinha parado uma capital, a maioria dos militares parecia estar nas suas mãos e uma manifestação hostil fora neutralizada. Vinham aí o 11 de março e o “verão quente”, principais consequências de tudo isto.

50 anos depois, o dia 28 de setembro, um sábado, será a data de uma manifestação contra os imigrantes, promovida pelo Chega – onde se acolhem vários antigos dirigentes do PP, do PL e de outras associações primitivas da direita radical, ainda vivos. Finalmente, a maioria silenciosa vai ter a sua manifestação. Ainda que, por enquanto, não passe de uma minoria ruidosa.

Quatro protagonistas

Os mais poderosos, em 1974

Spínola 64 anos, o militarão
Governador militar da Guiné, escreveu o livro Portugal e o Futuro, no qual defendeu uma solução política para a guerra em África. Nomeado vice-CEMGFA, foi demitido um mês antes do 25 de Abril. Primeiro PR da democracia.

Costa Gomes 60 anos, o diplomata
Comandante militar de Angola. Implicado no Golpe Botelho Moniz (1961) que pretendia derrubar Salazar. CEMGFA demitido um mês antes do 25 de Abril. PR entre 1974 e 1976, tentou ser um ponto de equilíbrio entre moderados e extremistas, contribuindo para evitar a guerra civil.

Vasco Gonçalves 53 anos, o idealista
Um dos oficiais mais graduados do MFA, chefiou quatro governos provisórios e foi o militar mais próximo do PCP durante o PREC e o “Verão Quente” de 1975.

Otelo 38 anos, o revolucionário
Discípulo de Spínola, na Guiné, fez uma deriva ideológica para a extrema-esquerda. Estratega do 25 de Abril, chefiou o poderoso COPCON, destacamento operacional do MFA no PREC.