Um candidato presidencial em coma que teve 14,3% dos votos. Um bombeiro que foi despedido por ultrapassar a caravana do primeiro-ministro quando conduzia um bebé de nove meses com dificuldades respiratórias. Uma atriz porno em São Bento. Um deputado que roubou gravadores a jornalistas porque não gostou da entrevista. O grau de insólito destas histórias pode levar quem não as conheça a pensar que se trata de invenções. Mas não são. Todas elas aconteceram e todas estiveram durante alguns anos numa pasta partilhada nos computadores dos jornalistas Liliana Valente e Filipe Santos Costa, com a sigla “WTF”, acrónimo para “what the fuck”, que significa tudo o que nos deixa entre o espanto e o riso, com uma incredulidade bem-disposta.

“Porque é que não assumimos que as histórias absurdas, surpreendentes, surreais, valem a pena contar? Há uma perda coletiva se nos esquecermos delas”, questionou-se Filipe Santos Costa, depois de os dois se aperceberem da quantidade de pequenas histórias que tinham ficado de fora do livro de ambos sobre O Independente. “Quanto mais íamos vasculhar, mais material tínhamos”, acrescenta Liliana Valente, que diz que o projeto andou a fermentar durante quase oito anos, numa recolha que passou pelas histórias que ambos presenciaram como jornalistas, mas também pela leitura de jornais antigos, biografias e Diários da Assembleia da República e por conversas com alguns dos protagonistas. O manancial era tão grande que às tantas tinham um livro de quase 400 páginas e, ainda assim, houve episódios que ficaram de fora. “Temos na prática um segundo livro de histórias que não entraram aqui”, diz Liliana Valente, ainda sem saber se esse segundo volume verá a luz do dia, mas consciente de que a pesquisa não procurou só histórias divertidas. “A ideia era ter as histórias mais inusitadas que fazem parte da nossa memória coletiva nestes 50 anos de democracia, que fossem estranhas, mas também com significado.”
A falsa camarada Arlete e o candidato em coma
Por acharem que o PREC (Período Revolucionário em Curso) era coisa para merecer um livro próprio, estas pequenas anedotas começam em 1976. E logo nos primórdios da democracia se encontram alguns momentos caricatos, que serão desconhecidos de muitos, como o da primeira mulher candidata à Presidência da República, em 1976, que se apresentava como a “camarada Arlete” e se gabava de ter um passado como antifascista e, sendo apoiada por trotskistas, dizia ter sido militante comunista. O currículo era falso e foi desmascarado pelo jornal O Diário, com ligações ao PCP.

A camarada Arlete acabaria por não ir a votos, mas nessas eleições um dos candidatos estava em coma quando os portugueses foram às urnas. Era o almirante Pinheiro de Azevedo, que tinha a particularidade de ser ao mesmo tempo primeiro-ministro e candidato a Presidente e que, quatro dias antes das presidenciais, sofreu um enfarte do miocárdio e ficou em coma. Na véspera do ato eleitoral, Pinheiro de Azevedo tinha apenas movimentos reflexos, mas isso não impediu 14,3% dos eleitores de o escolherem (teve quase 700 mil votos). Dado o seu estado de saúde, a mulher só lhe contou o resultado das eleições semanas depois.

“O que é que se retira de um povo que votou num candidato que estava em coma?O que é que nos diz sobre nós a complacência com que olhámos para algumas coisas do Sócrates? Diz-nos muito sobre a nossa pequenez, sobre o facto de estarmos muito concentrados no momento e termos dificuldades em ganhar perspetiva, mas também nos diz algo sobre a nossa resiliência. Apesar disto tudo, chegámos aqui. Temos uma democracia que já existiu mais anos do que a ditadura”, comenta Filipe Santos Costa, que procura não só o lado lúdico destas pequenas histórias, mas também os traços que nos definem enquanto país. “A capacidade de nos rirmos e bola para frente, o deixa andar, o improviso, a arrogância bacoca.”
O bombeiro despedido por ultrapassar Cavaco
A hoje esquecida história do bombeiro Gomes é apontada por Liliana Valente e Filipe Santos Costa como reveladora dessa “arrogância bacoca”. Vítor Gomes era um pacato bombeiro da Póvoa de Varzim que no dia 8 de julho de 1990 teve de transportar uma menina de 9 meses com febre alta e dificuldade em respirar. Gomes pôs prego a fundo e ultrapassou todos os carros que lhe apareceram à frente para salvar o bebé. Salvou. Mas dias depois recebeu a notificação de um crime que não se apercebeu ter cometido. Tinha “atentado contra a vida de uma alta individualidade do Estado”. Como? Ultrapassando a comitiva onde ia o primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva. Foi multado, proibido de conduzir ambulâncias e despedido da empresa onde trabalhava e onde tinha um social-democrata como patrão. Alvo de um processo-crime, acabaria por ser absolvido por um juiz que até lhe louvou os esforços para salvar a criança.

Se o bombeiro Gomes se perdeu na memória, há relatos que fazem parte do imaginário coletivo, mas não aconteceram tal e qual como hoje são contados. É o caso do famoso poema de Natália Correia sobre o “truca-truca” em resposta ao deputado do CDS João Morgado, que se opunha à legalização do aborto defendida pelo PCP, pela voz da então comunista Zita Seabra. Consultados os Diários da Assembleia da República e a biografia da poeta, Filipe Santos Costa e Liliana Valente descobriram que, afinal, nem Natália estava no plenário nem o poema foi escrito aí de rajada como resposta ao deputado “capado” Morgado. Natália escreveu sim com rapidez, mas o poema só foi publicado nos jornais do dia seguinte. Nele, a poeta ridicularizava a ideia de o coito ter “como fim cristalino, preciso e imaculado, fazer menino ou menina”, sem ter pejo em satirizar o facto de João Morgado ter apenas um filho, apesar de ser deputada do PSD, partido de que era parceiro o CDS na AD de então.
Mamas, cocós e lambisgoias
A verve de Natália também serviu para uma descrição em verso da visita da “carnal deputada porno”, a italiana Cicciolina, que entrou no plenário quando “o Parlamento em tédio morno, [estava] do Processo Penal a lei moendo”. Cicciolina apresentou-se com os seios à mostra, ursinho de peluche ao peito e bâton encarnado e assomou à bancada do Corpo Diplomático nessa figura. Entre protestos das bancadas da direita, a sessão foi encerrada. E Natália, em poesia, sugeria “ponham-lhes cuequinhas e soutiens”, às estátuas do plenário.

Nesta lista de insólitos, há espaço para uma troca de palavras azedas entre Francisco Sousa Tavares e Helena Roseta sobre cocós nas águas das praias. O ministro da Qualidade de Vida do bloco central não hesitou em apontar o dedo à falta de saneamento básico responsável pelos coliformes fecais que boiavam nas águas de Estoril, Oeiras e Cascais. Roseta, autarca em Cascais, indignou-se pelo alarme público suscetível de prejudicar o turismo na zona. O mal estava feito e, depois de notícias de diarreias no Algarve, deu-se uma onda de cancelamentos nos hotéis. Criticado também pela ex-secretária de Estado do Ambiente, Margarida Borges de Carvalho, Sousa Tavares contra-atacou: “Todo este alarido tem sido obra de mulheres que me odeiam.”

Também sem medo de ofender mulheres, o autarca de Marco de Canavezes, Avelino Ferreira Torres, acusou as Doce de serem “lambisgoias” e “badamecas”, depois de as cantoras se recusarem a deixar a autarquia gravar a atuação que teriam no concelho e que acabaram por cancelar.
Marcelo do princípio ao fim
Nas quase 400 páginas de Só Neste País, há protagonistas recorrentes. “Marcelo está do princípio ao fim”, nota Filipe Santos Costa. No primeiro episódio, o jovem jornalista-político-comentador e diretor-adjunto do Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa, é entrevistado pelo seu diretor, Francisco Pinto Balsemão, e revela a intenção de publicar as suas memórias aos 27 anos. Nunca aconteceu. E depois disso Marcelo e Balsemão zangaram-se por causa de um “lélé da cuca” com que o jornalista brindou o patrão, no meio de um texto, picado pela aposta de uma amiga. Na última entrada a que tem direito neste livro, Marcelo Rebelo de Sousa aparece, como conta Santos Costa, “a fazer uma intervenção completamente destravada” perante uma plateia de jornalistas estrangeiros, com a qual comenta o “lado rural” do primeiro-ministro Luís Montenegro.

“Há figuras como Alberto João Jardim e Pedro Santana Lopes que também são recorrentes”, aponta Santos Costa, lembrando o célebre episódio em que Santana se enganou e falou de um concerto para violinos que Chopin nunca escreveu. Mas há também momentos menos famosos, como quando Marcelo e Alberto João foram adiando como podiam o Congresso do PSD na Figueira da Foz em 1985 para que Aníbal Cavaco Silva conseguisse as assinaturas necessárias para se apresentar como candidato a líder. Marcelo, da Nova Esperança (a corrente onde também estava Santana), apoiava Cavaco, mas as assinaturas tardavam. Jardim, conta o próprio no livro, pegou no papel e escrevinhou as três assinaturas que faltavam, usando os nomes de delegados da Madeira, que só seriam avisados de que apoiavam Cavaco depois. “Não houve nada de ilegal. Houve, sim, um certo pragmatismo”, defende-se Alberto João Jardim.

“Conforme leio o livro, mudo de história favorita”, confessa Filipe Santos Costa, que ainda assim gosta especialmente da que conta como o deputado socialista Ricardo Rodrigues roubou os gravadores dos jornalistas Maria Henrique Espada e Fernando Esteves, em maio de 2010, por não gostar do rumo que estava a levar a entrevista para a revista Sábado. Ficou tudo gravado em vídeo e Rodrigues foi condenado por atentado à liberdade de imprensa e atentado à liberdade de informação. “E o PS indicou-o para um cargo na Justiça depois disto acontecer”, frisa Santos Costa.
O “desespero” de Ventura para ter um atentado
No lote dos momentos “WTF”, Filipe Santos Costa e Liliana Valente contam também várias histórias sobre André Ventura, como aquela em que o líder do Chega apagou de todas as plataformas o primeiro programa eleitoral do partido depois de o cronista Daniel Oliveira escrever sobre ele e denunciar algumas das suas propostas mais radicais contra o SNS e a escola pública. Ou, como diz Santos Costa, “o desespero de Ventura para ter o seu atentado, a sua Marinha Grande, mas a sua Marinha Grande não é mais do que o arremesso de caixas de pastilhas elásticas e rateres de motos”.

Apesar de o livro ir buscar a expressão “só neste país” para título, os autores citam Sérgio Godinho para garantir que “não é só neste país que se diz só neste país”. A viver há alguns anos no Japão, Santos Costa garante que também por lá há histórias que merecem o carimbo WTF. “Há histórias parecidas com estas em todo o lado. Há histórias da política japonesa com um grau de absurdo inverosímil. A questão é que estes são os nossos [políticos]. Temos de os tratar com carinho e com memória.”

Só Neste País
Filipe Santos Costa e Liliana Valente
São quase 400 páginas de pequenas histórias hilariantes que ajudam a perceber a História de 50 anos de democracia — Clube do Autor,356 págs., €20