Um candidato presidencial em coma que teve 14,3% dos votos. Um bombeiro que foi despedido por ultrapassar a caravana do primeiro-ministro quando conduzia um bebé de nove meses com dificuldades respiratórias. Uma atriz porno em São Bento. Um deputado que roubou gravadores a jornalistas porque não gostou da entrevista. O grau de insólito destas histórias pode levar quem não as conheça a pensar que se trata de invenções. Mas não são. Todas elas aconteceram e todas estiveram durante alguns anos numa pasta partilhada nos computadores dos jornalistas Liliana Valente e Filipe Santos Costa, com a sigla “WTF”, acrónimo para “what the fuck”, que significa tudo o que nos deixa entre o espanto e o riso, com uma incredulidade bem-disposta.

“Porque é que não assumimos que as histórias absurdas, surpreendentes, surreais, valem a pena contar? Há uma perda coletiva se nos esquecermos delas”, questionou-se Filipe Santos Costa, depois de os dois se aperceberem da quantidade de pequenas histórias que tinham ficado de fora do livro de ambos sobre O Independente. “Quanto mais íamos vasculhar, mais material tínhamos”, acrescenta Liliana Valente, que diz que o projeto andou a fermentar durante quase oito anos, numa recolha que passou pelas histórias que ambos presenciaram como jornalistas, mas também pela leitura de jornais antigos, biografias e Diários da Assembleia da República e por conversas com alguns dos protagonistas. O manancial era tão grande que às tantas tinham um livro de quase 400 páginas e, ainda assim, houve episódios que ficaram de fora. “Temos na prática um segundo livro de histórias que não entraram aqui”, diz Liliana Valente, ainda sem saber se esse segundo volume verá a luz do dia, mas consciente de que a pesquisa não procurou só histórias divertidas. “A ideia era ter as histórias mais inusitadas que fazem parte da nossa memória coletiva nestes 50 anos de democracia, que fossem estranhas, mas também com significado.”

A falsa camarada Arlete e o candidato em coma

Por acharem que o PREC (Período Revolucionário em Curso) era coisa para merecer um livro próprio, estas pequenas anedotas começam em 1976. E logo nos primórdios da democracia se encontram alguns momentos caricatos, que serão desconhecidos de muitos, como o da primeira mulher candidata à Presidência da República, em 1976, que se apresentava como a “camarada Arlete” e se gabava de ter um passado como antifascista e, sendo apoiada por trotskistas, dizia ter sido militante comunista. O currículo era falso e foi desmascarado pelo jornal O Diário, com ligações ao PCP.

Truca-truca Há mitos desfeitos: afinal o célebre poema de Natália Correia sobre o “deputado capado” do CDS antiaborto nunca foi lido em plenário

A camarada Arlete acabaria por não ir a votos, mas nessas eleições um dos candidatos estava em coma quando os portugueses foram às urnas. Era o almirante Pinheiro de Azevedo, que tinha a particularidade de ser ao mesmo tempo primeiro-ministro e candidato a Presidente e que, quatro dias antes das presidenciais, sofreu um enfarte do miocárdio e ficou em coma. Na véspera do ato eleitoral, Pinheiro de Azevedo tinha apenas movimentos reflexos, mas isso não impediu 14,3% dos eleitores de o escolherem (teve quase 700 mil votos). Dado o seu estado de saúde, a mulher só lhe contou o resultado das eleições semanas depois.

Manifesto O livro recupera o Manifesto Anti-Portas escrito pelo socialista Carlos Candal para arrasar o “elitista” e “democrata precário” Paulo Portas Foto: Lucília Monteiro

“O que é que se retira de um povo que votou num candidato que estava em coma?O que é que nos diz sobre nós a complacência com que olhámos para algumas coisas do Sócrates? Diz-nos muito sobre a nossa pequenez, sobre o facto de estarmos muito concentrados no momento e termos dificuldades em ganhar perspetiva, mas também nos diz algo sobre a nossa resiliência. Apesar disto tudo, chegámos aqui. Temos uma democracia que já existiu mais anos do que a ditadura”, comenta Filipe Santos Costa, que procura não só o lado lúdico destas pequenas histórias, mas também os traços que nos definem enquanto país. “A capacidade de nos rirmos e bola para frente, o deixa andar, o improviso, a arrogância bacoca.”

O bombeiro despedido por ultrapassar Cavaco

A hoje esquecida história do bombeiro Gomes é apontada por Liliana Valente e Filipe Santos Costa como reveladora dessa “arrogância bacoca”. Vítor Gomes era um pacato bombeiro da Póvoa de Varzim que no dia 8 de julho de 1990 teve de transportar uma menina de 9 meses com febre alta e dificuldade em respirar. Gomes pôs prego a fundo e ultrapassou todos os carros que lhe apareceram à frente para salvar o bebé. Salvou. Mas dias depois recebeu a notificação de um crime que não se apercebeu ter cometido. Tinha “atentado contra a vida de uma alta individualidade do Estado”. Como? Ultrapassando a comitiva onde ia o primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva. Foi multado, proibido de conduzir ambulâncias e despedido da empresa onde trabalhava e onde tinha um social-democrata como patrão. Alvo de um processo-crime, acabaria por ser absolvido por um juiz que até lhe louvou os esforços para salvar a criança.

Precoce Com apenas 27 anos, o diretor-adjunto do Expresso Marcelo era entrevistado pelo diretor Balsemão e anunciava as suas memórias políticas Foto: Inácio Ludgero

Se o bombeiro Gomes se perdeu na memória, há relatos que fazem parte do imaginário coletivo, mas não aconteceram tal e qual como hoje são contados. É o caso do famoso poema de Natália Correia sobre o “truca-truca” em resposta ao deputado do CDS João Morgado, que se opunha à legalização do aborto defendida pelo PCP, pela voz da então comunista Zita Seabra. Consultados os Diários da Assembleia da República e a biografia da poeta, Filipe Santos Costa e Liliana Valente descobriram que, afinal, nem Natália estava no plenário nem o poema foi escrito aí de rajada como resposta ao deputado “capado” Morgado. Natália escreveu sim com rapidez, mas o poema só foi publicado nos jornais do dia seguinte. Nele, a poeta ridicularizava a ideia de o coito ter “como fim cristalino, preciso e imaculado, fazer menino ou menina”, sem ter pejo em satirizar o facto de João Morgado ter apenas um filho, apesar de ser deputada do PSD, partido de que era parceiro o CDS na AD de então.

Mamas, cocós e lambisgoias

A verve de Natália também serviu para uma descrição em verso da visita da “carnal deputada porno”, a italiana Cicciolina, que entrou no plenário quando “o Parlamento em tédio morno, [estava] do Processo Penal a lei moendo”. Cicciolina apresentou-se com os seios à mostra, ursinho de peluche ao peito e bâton encarnado e assomou à bancada do Corpo Diplomático nessa figura. Entre protestos das bancadas da direita, a sessão foi encerrada. E Natália, em poesia, sugeria “ponham-lhes cuequinhas e soutiens”, às estátuas do plenário.

Erótico Macário Correia também entra no livro, com a revelação dos poemas de índole sexual do deputado algarvio que, entretanto, se afastou da política Foto: Bruno Rascao

Nesta lista de insólitos, há espaço para uma troca de palavras azedas entre Francisco Sousa Tavares e Helena Roseta sobre cocós nas águas das praias. O ministro da Qualidade de Vida do bloco central não hesitou em apontar o dedo à falta de saneamento básico responsável pelos coliformes fecais que boiavam nas águas de Estoril, Oeiras e Cascais. Roseta, autarca em Cascais, indignou-se pelo alarme público suscetível de prejudicar o turismo na zona. O mal estava feito e, depois de notícias de diarreias no Algarve, deu-se uma onda de cancelamentos nos hotéis. Criticado também pela ex-secretária de Estado do Ambiente, Margarida Borges de Carvalho, Sousa Tavares contra-atacou: “Todo este alarido tem sido obra de mulheres que me odeiam.”

Zanga Avelino Ferreira Torres ficou em fúria quando as Doce o proibiram de filmar um espetáculo em Marco de Canavezes. Chamou-lhes “lambisgoias” Foto: Lucília Monteiro

Também sem medo de ofender mulheres, o autarca de Marco de Canavezes, Avelino Ferreira Torres, acusou as Doce de serem “lambisgoias” e “badamecas”, depois de as cantoras se recusarem a deixar a autarquia gravar a atuação que teriam no concelho e que acabaram por cancelar.

Marcelo do princípio ao fim

Nas quase 400 páginas de Só Neste País, há protagonistas recorrentes. “Marcelo está do princípio ao fim”, nota Filipe Santos Costa. No primeiro episódio, o jovem jornalista-político-comentador e diretor-adjunto do Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa, é entrevistado pelo seu diretor, Francisco Pinto Balsemão, e revela a intenção de publicar as suas memórias aos 27 anos. Nunca aconteceu. E depois disso Marcelo e Balsemão zangaram-se por causa de um “lélé da cuca” com que o jornalista brindou o patrão, no meio de um texto, picado pela aposta de uma amiga. Na última entrada a que tem direito neste livro, Marcelo Rebelo de Sousa aparece, como conta Santos Costa, “a fazer uma intervenção completamente destravada” perante uma plateia de jornalistas estrangeiros, com a qual comenta o “lado rural” do primeiro-ministro Luís Montenegro.

O atentado Cavaco Silva foi o motivo pelo qual o bombeiro Gomes acabou despedido e acusado de atentar contra uma alta figura do Estado para salvar um bebé Foto: Egídio Santos

“Há figuras como Alberto João Jardim e Pedro Santana Lopes que também são recorrentes”, aponta Santos Costa, lembrando o célebre episódio em que Santana se enganou e falou de um concerto para violinos que Chopin nunca escreveu. Mas há também momentos menos famosos, como quando Marcelo e Alberto João foram adiando como podiam o Congresso do PSD na Figueira da Foz em 1985 para que Aníbal Cavaco Silva conseguisse as assinaturas necessárias para se apresentar como candidato a líder. Marcelo, da Nova Esperança (a corrente onde também estava Santana), apoiava Cavaco, mas as assinaturas tardavam. Jardim, conta o próprio no livro, pegou no papel e escrevinhou as três assinaturas que faltavam, usando os nomes de delegados da Madeira, que só seriam avisados de que apoiavam Cavaco depois. “Não houve nada de ilegal. Houve, sim, um certo pragmatismo”, defende-se Alberto João Jardim.

O repetente O nome de Pedro Santana Lopes aparece citado 35 vezes no livro. Dos famosos concertos para violino de Chopin ao já esquecido programa da SIC Cadeira do Poder

“Conforme leio o livro, mudo de história favorita”, confessa Filipe Santos Costa, que ainda assim gosta especialmente da que conta como o deputado socialista Ricardo Rodrigues roubou os gravadores dos jornalistas Maria Henrique Espada e Fernando Esteves, em maio de 2010, por não gostar do rumo que estava a levar a entrevista para a revista Sábado. Ficou tudo gravado em vídeo e Rodrigues foi condenado por atentado à liberdade de imprensa e atentado à liberdade de informação. “E o PS indicou-o para um cargo na Justiça depois disto acontecer”, frisa Santos Costa.

O “desespero” de Ventura para ter um atentado

No lote dos momentos “WTF”, Filipe Santos Costa e Liliana Valente contam também várias histórias sobre André Ventura, como aquela em que o líder do Chega apagou de todas as plataformas o primeiro programa eleitoral do partido depois de o cronista Daniel Oliveira escrever sobre ele e denunciar algumas das suas propostas mais radicais contra o SNS e a escola pública. Ou, como diz Santos Costa, “o desespero de Ventura para ter o seu atentado, a sua Marinha Grande, mas a sua Marinha Grande não é mais do que o arremesso de caixas de pastilhas elásticas e rateres de motos”.

Escândalo A deputada e atriz porno Cicciolina agitou o País quando entrou no Parlamento de seios à mostra. Só Natália Correia correu aos Passos Perdidos para a abraçar

Apesar de o livro ir buscar a expressão “só neste país” para título, os autores citam Sérgio Godinho para garantir que “não é só neste país que se diz só neste país”. A viver há alguns anos no Japão, Santos Costa garante que também por lá há histórias que merecem o carimbo WTF. “Há histórias parecidas com estas em todo o lado. Há histórias da política japonesa com um grau de absurdo inverosímil. A questão é que estes são os nossos [políticos]. Temos de os tratar com carinho e com memória.”

Só Neste País

Filipe Santos Costa e Liliana Valente

São quase 400 páginas de pequenas histórias hilariantes que ajudam a perceber a História de 50 anos de democracia — Clube do Autor,356 págs., €20

As “anedotas” que arrancam gargalhadas aos guardas prisionais, dispostos em círculo, não têm como protagonistas “um inglês, um francês e um português”. Muitas vezes, os personagens principais são estes homens e mulheres, profissionais com décadas de carreira, ou jovens com apenas meia dúzia de anos de farda. Todos, sem exceção, guardam na memória episódios inusitados que já viveram no interior das cadeias. As vozes atropelam-se, participando num guião cómico-trágico. Numa fase de luta da classe – que reclama dos baixos salários e da falta de segurança, mas também da insuficiência de pessoal e das más condições das cadeias –, o desfiar destas recordações tira uma fotografia real ao sistema prisional português.

Dias depois de quase duas centenas de guardas prisionais se terem reunido à porta do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus – numa ação de solidariedade com os colegas daquela prisão, um mês depois da fuga de cinco reclusos –, a VISÃO recolheu histórias vividas para lá dos muros. O tema não é para rir, mas as piadas fazem-se sozinhas.

Pessoal João Neves, Carlos Sousa e Cláudia Gomes “testemunharam”, à VISÃO, algumas das histórias que se vivem no interior das prisões

Começamos por um dia de verão de 2008. João Neves, hoje com 52 anos, era guarda prisional no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Naquela tarde, os termómetros atingiam os 40 graus centígrados. O profissional, então com dez anos de carreira, podia adivinhar o “inferno” que lhe estava reservado, nas três horas seguintes, ao serviço nas torres de vigilância. “As torres tinham estruturas de ferro e não tinham sequer eletricidade. Era impossível colocar lá uma ventoinha, quando fazia calor, ou um aquecedor, quando fazia frio.” “O calor era muito complicado”, admite. Os minutos passaram, até que o desespero o dominou. De repente, teve um ideia. A voz alarmada de um colega, ao serviço noutra torre, deu o alarme: “João, estás bem? O que se passa?”, perguntou. Nas duas horas seguintes, surgiu uma nova (e inesperada) atração no interior da cadeia da capital, com João Neves firme no seu posto, envergando apenas cuecas e… a arma ao ombro. “Cumpri o meu dever, e sem desfalecer”, recorda, com uma gargalhada.

No dia em que conversamos com os guardas prisionais, a temperatura é amena. A chuva que cai não nos impede de admirar os muros altos da cadeia de Vale de Judeus, as redes de arame farpado. Recordando o dia 7 de setembro, questionamo-nos como foi possível? “Talvez as coisas pudessem ter sido diferentes”, interrompe um guarda, “caso não tivessem desativado os sensores de movimento”. “Os sensores, porém, eram muito sensíveis. Por isso, eram frequentemente acionados. Os guardas passavam o dia a deslocarem-se para verificar o que se passava, mas, chegados ao local, constatavam, invariavelmente, que o alarme tinha sido acionado por um pássaro ou um coelho”, comenta. “Alguém”, daria ordem para aquela “trabalheira acabar”. Quem? “Bom, isso já não sei responder, com certeza, não foi um guarda prisional”, sublinha.

“Pássaro ou coelho?”, pergunta outro guarda, ouvido afiado, que, com ar trocista, salta de imediato para o diálogo. “Ratos, baratas e percevejos. Isso, sim, é uma praga nas cadeias”, enumera. À VISÃO, também tem uma “cena de filme” para contar, na primeira pessoa. “Vale de Judeus, pavilhão B, madrugada. Apareceu-nos, pela frente, uma ratazana gigantesca. Sentindo-se cercada, investiu contra mim. Tive de lutar com ela”, recorda. O vencedor do combate não foi declarado. “Ossos do ofício”, afirma, meio a contragosto.

Portas escancaradas

Sérgio Almeida é dos mais jovens na concentração. Aos 34 anos, é guarda prisional no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz, município de Grândola. A juventude não lhe trava a língua. Em sete anos ao serviço, tem “muitas histórias para contar”. “Sabe, demoramos sempre uma eternidade para abrir as celas”. Como? “As celas”, insiste. “As fechaduras em Pinheiro da Cruz têm uns 70 anos. As portas estão cheias de manhas. Aquilo, para abrir à primeira, é quase impossível. Temos de puxar ali, empurrar acolá, até que a chave roda, finalmente”, explica. “O problema é diário, mas a coisa vai-se desenrascando”, completa. A imaginação, no entanto, antecipa um “problema maior”. “E se houver uma emergência, um incêndio, por exemplo? Em pânico, à pressa, como se retira alguém, rapidamente, de dentro de uma cela que tem uma fechadura que não funciona?”, questiona.

Fábio, preso de amores

As autoridades seguiram a namorada do fugitivo até Tânger. Fábio estava escondido na casa de um amigo e quase “irreconhecível” 

O amor traiu Fábio Oliveira (também conhecido como Fábio “Cigano”). A fuga terminou em Marrocos, um mês depois da evasão do grupo de cinco da cadeia de Vale de Judeus. A namorada de Fábio serviu de “isco”. A Polícia Judiciária tinha sob vigilância apertada a jovem portuguesa. Na sexta-feira, 4, os alarmes soaram quando ela se pôs a caminho em direção a Espanha. Com a cooperação da polícia espanhola, a PJ seguiu os seus movimentos até Madrid. No Aeroporto Internacional de Barajas, na capital do país vizinho, apanhou um avião para Casablanca. Em Marrocos, seguiu para Tânger. E, sem desconfiar, conduziu a polícia até ao namorado. “O evadido do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, Fábio Loureiro, foi detido, ontem [dia 6 de outubro], pelas 22h00, em Tânger, pelas autoridades marroquinas, com a colaboração das autoridades espanholas, em estreita articulação com a PJ”, descreveu, em comunicado, a PJ. Fábio Loureiro terá chegado a Marrocos, via Espanha, com recurso a documentos falsos. Ali, manteve-se escondido na casa de um amigo – que também foi detido –, situada próximo da estação do ferry boat que faz a ligação com Tarifa e Algeciras (Espanha). De acordo com as primeiras descrições, Fábio Loureiro está quase “irreconhecível”, de barba cortada, muito mais magro. Não ofereceu resistência quando foi abordado pela polícia. Conhecido como Fábio “Cigano”, este homem foi condenado a 25 anos de prisão pelos crimes de rapto, tráfico de estupefacientes, associação criminosa, roubo à mão armada e evasão. Portugal vai pedir a sua extradição “para cumprimento de pena” no País. No jogo do gato e do rato, Fábio foi o primeiro a cair na ratoeira. Ainda faltam quatro: Fernando Ferreira, Rodolf Lohrmann, Mark Roscaleer e Shergili Farjiani.

Ficamos a saber que o “caso das portas” faz parte do “anedotário” do sistema prisional português. Os mais velhos aproximam-se, com vontade de contar muito mais. Como daquela vez em que o barulho metálico acordou todo o EP de Lisboa. Quando os guardas acorreram ao local deram de caras com um recluso, que, surpreendido, espreitava pela porta da própria cela. “Eu não fiz nada, a porta caiu”, jurou a pés juntos. Ou, então, do “caso dramático” do Estabelecimento Prisional de Alcoentre, ali mesmo ao lado, que, já entrados neste século, funcionava com muitas das portas das celas sem fechadura nem ferrolho. “Parece brincadeira, não é? Mas era exatamente assim! Como se fechavam as portas à noite, em Alcoentre? Com um pau de uma vassoura”, revela.

A situação deu azo a histórias insólitas, de reclusos que instalavam as próprias fechaduras, aos que deambulavam pelo presídio, visitando a cela do vizinho sempre que lhes apetecia. Criou-se, até, o hábito de os guardas fazerem ruído à chegada, para que os reclusos “não se deixassem apanhar” fora das respetivas celas. Todas as manhãs, o guarda “abria” a porta, numa coreografia ensaiada por quem tinha mais liberdade do que previra e por aqueles que não tinham soluções para alterar nada.

Viaturas avariadas

Os guardas admitem que muitos destes problemas ficaram no passado, mas que, entretanto, “surgiram outros” no presente. Se agora há fechaduras novas, as viaturas são cada vez mais velhas.

Carlos Sousa, 49 anos, é guarda no Estabelecimento Prisional do Porto e conta, à VISÃO, como “muitas diligências para os tribunais e os hospitais acabam por não ser feitas por falta de veículos disponíveis”. O problema é “quase diário”, sublinha. E dá exemplos: “Às vezes, o médico assinala uma urgência médica, logo de manhã, mas só conseguimos levar o recluso ao hospital ao final da tarde. As pessoas ficam ali a sofrer”, denuncia.

Noutras vezes, a carrinha celular arranca… mas não chega ao destino. “Avaria na berma da estrada. Por ano, são às dezenas os casos”, assegura. Ao final de 22 anos de carreira, Carlos Sousa recorda-se, sem esforço, do dia em que “uma carrinha avariou, e foi preciso aguardar pelo apoio de uma carrinha de suporte. Por vezes, é algo que demora horas. Dessa vez, ainda foi pior. O suporte também avariou, ficaram as duas paradas na estrada”, diz, com um encolher de ombros conformado.

A falta de pessoal é (outro) problema das saídas ao exterior. “O recluso devia ser sempre acompanhado por motorista e dois guardas, mas isso nunca acontece. Normalmente, vai apenas um guarda”, o que resultou num dos episódios relatados mais insólitos: o guarda acompanhava o recluso a uma consulta, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, quando teve um desmaio. A presença na unidade de saúde garantiu-lhe socorro imediato, mas foi o voluntarismo do recluso que fez “notícia”. Preocupado pelo portador de uma arma de fogo estar inconsciente, o recluso decidiu guardar o objeto no bolso, não fosse cair nas mãos erradas. Depois de recuperado, o guarda viu a arma ser-lhe devolvida.

Unidos Mais de 200 guardas prisionais reuniram-se em Vale de Judeus. O SNCGP continua a lutar “por melhores salários e condições de trabalho”

Os 49 estabelecimentos prisionais que existem em território nacional guardam muitos outros “segredos”. Para lá dos muros do EP de Coimbra, “voam”, “com frequência”, telemóveis, carregadores e droga, como conta, à VISÃO, Cláudia Gomes, 49 anos, guarda há mais de duas décadas. “Os objetos são lançados do exterior, envoltos em esponjas para lavar a louça, pacotes de leite ou papel kraft. Certo dia, por pouco, um colega não levou com uma dessas ‘encomendas’ na cabeça”, detalha.

À VISÃO, Frederico Morais, presidente do Sindicato Nacional do Corpo de Guardas Prisionais (SNCGP), admite que “já conhecia ou tinha ouvido falar” de todas estas histórias. “É por tudo isto que fazemos a nossa luta, por melhores salários e condições de trabalho, por um melhor sistema prisional”, conclui.

Carlos Moreira

Diretor do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus

“Hoje, posso dormir descansado. O que aconteceu [a fuga de Vale de Judeus] não vai voltar a acontecer”

O novo diretor da cadeia de Vale de Judeus transita da direção do Estabelecimento Prisional da Carregueira, onde estava desde 2022. O jurista garante que, logo nos primeiros dias, encontrou forma de “não haver baixas de segurança” durante os turnos

Chega a Vale de Judeus na sequência da mediática fuga dos cinco reclusos. Quais foram as suas prioridades?
A minha primeira preocupação foi definir e estabelecer novos pontos de controlo. Isso foi logo feito. Hoje, posso dormir descansado. E posso garantir que o que aconteceu [a fuga dos cinco reclusos] não vai voltar a acontecer. Isso está garantido. As equipas estão comprometidas e tem havido o esforço de todo o pessoal para que tudo corra bem… É um bom primeiro sinal. Mas ainda há muitas coisas a melhorar, claro.

O setor continua com uma longa lista de reivindicações. Como pode garantir que uma fuga como a de 7 de setembro não se volta a repetir?
O reforço de pessoal é, naturalmente, essencial. A tutela sabe dessa necessidade, a ministra da Justiça [Rita Alarcão Júdice] está alinhada com o nosso projeto, e tem demonstrado essa vontade de suprir as dificuldades. Estas coisas, porém, não se resolvem facilmente, da noite para o dia. E, até lá, temos de garantir que o estabelecimento prisional [de Vale de Judeus] se mantenha a funcionar, com os meios que temos ao nosso dispor.

Referiu que a ministra da Justiça “está alinhada”. Tem a garantia do Governo que, no futuro, terá mais e melhores meios para gerir a cadeia de Vale de Judeus?
Temos, de facto, essa garantia, para a reconstrução e a construção do que é preciso fazer no interior do estabelecimento prisional [de Vale de Judeus]. Mas, para já, o que me dá garantias são os acertos que já foram efetuados nos pontos de controlo [maior número de guardas a vigiar o pátio e as câmaras de CCTV].

E isso foi possível mesmo com a falta de meios humanos de que os guardas prisionais tanto se queixam?
Exatamente. Há, agora, uma forma de gestão diferente dos recursos que, neste momento, estão disponíveis. Esta foi uma forma que encontrámos para não haver baixas de segurança durante os turnos.

Os profissionais do setor mostram-se descontentes e desmotivados. Neste contexto, é possível melhorar?
A parte das carreiras, como é óbvio, não me diz respeito. Ao longo dos anos, não só os guardas prisionais como também os técnicos viram as condições de trabalho tornarem-se mais difíceis, o que motivou alguma desmotivação… Espero, sinceramente, que possa ser possível tornar estas carreiras mais atrativas, mas isso são políticas públicas, que têm de ser definidas pela tutela. 

Concorda, então, com as queixas dos guardas prisionais? Faltam profissionais para guardar as cadeias?
Temos um défice de pessoal, é evidente. Já tive a oportunidade de falar com a ministra da Justiça sobre o assunto. Ela sabe quantas pessoas preciso para fazer um bom trabalho.

Um dos reclusos [Fábio Loureiro] que se evadiu de Vale de Judeus foi capturado em Marrocos. Sente algum alívio?
É um alívio, sobretudo, para a comunidade. Agora, há um trabalho longo que tem de ser feito com esse recluso.

Palavras-chave:

De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), os centros de dados e a computação em nuvem são responsáveis por cerca de 1% a 2% do consumo global de eletricidade, sendo que este valor deverá crescer à medida que mais empresas adotam soluções baseadas em IA. Um estudo realizado pela Universidade de Massachusetts Amherst, em 2019, revelou que o treino de um modelo de IA de grande escala pode gerar emissões de cerca de 284 toneladas de dióxido de carbono (CO₂), o equivalente às emissões de cinco carros ao longo de toda a sua vida útil. Além do consumo energético, os centros de dados utilizam grandes quantidades de água para arrefecer os servidores. Sistemas de refrigeração líquida, que circulam água para absorver o calor são mais eficientes do que os métodos de arrefecimento por ar, mas também são mais exigentes em termos de recursos.

O papel das grandes empresas

Empresas tecnológicas como a Google, Amazon e Microsoft, que operam alguns dos maiores modelos de IA, têm estado sob crescente escrutínio devido ao impacto ambiental. A Breakthrough Energy, uma organização fundada por Bill Gates, estimou que as infraestruturas de IA destas grandes empresas foram responsáveis pela emissão de milhões de toneladas de dióxido carbono desde 2020. Estas organizações estão, contudo, a tentar mitigar o impacto ambiental. A Google comprometeu-se a operar com energia 100% livre de carbono até 2030, e a Microsoft anunciou que, até essa data, pretende eliminar mais emissões de carbono do que aquelas que produz.

A Microsoft já instalou centros de dados subaquáticos o denominado, Projeto Natick, ao largo da costa das Ilhas Orkney, na Escócia

Soluções em discussão

Entre as soluções propostas para reduzir o consumo de recursos estão a redução da complexidade dos algoritmos, a otimização dos processos de treino e o uso de fontes renováveis para alimentar os centros de dados. O desenvolvimento de modelos de IA “mais leves” e eficientes é uma área em que empresas como a OpenAI estão a investir. Além disso, o uso de energia verde no setor tecnológico tem vindo a aumentar, representando, segundo a IEA, cerca de 20% do total consumido por grandes empresas de tecnologia.

Outra abordagem em destaque é a implementação de sistemas de refrigeração inovadores, como a refrigeração submersa, que pode reduzir o consumo de água e energia em comparação com os sistemas tradicionais de arrefecimento líquido. A Microsoft testou este conceito no Project Natick, instalando centros de dados submersos que utilizam a água do mar para arrefecimento. Esta estratégia não só reduz o consumo de energia como prolonga a vida útil dos servidores devido à estabilidade térmica do ambiente aquático. Paralelamente, as empresas tecnológicas estão a investir em fontes de energia renovável, como parques eólicos e solares, que alimentam diretamente os centros de dados, diminuindo assim a dependência de combustíveis fósseis.

Neste centro de dados da Google, no estado norte-americano de Oregon, a maioria dos funcionários não tem acesso e o edifício tem uma vigilância apertada

A Google, por exemplo, está a utilizar IA da DeepMind para otimizar o uso de energia nos seus centros de dados, resultando numa redução de 40% no consumo de energia para arrefecimento​. Por fim, um dos aspetos mais promissores para mitigar o impacto ambiental da IA é a eficiência computacional. Vários investigadores e empresas estão a desenvolver algoritmos de machine learning (ramo da inteligência artificial onde os sistemas aprendem automaticamente a partir de dados) que necessitam de menos potência computacional para serem treinados, o que reduz significativamente o consumo de energia. Este esforço pela otimização energética não só diminui a pegada de carbono das operações, mas também torna os modelos de IA mais acessíveis e sustentáveis a longo prazo.