“Compreende-se a lógica de atrair melhores quadros, mas, novamente, fica mais complexa e casuística a grelha remuneratória na administração pública portuguesa.” O reparo foi feito por Marcelo Rebelo de Sousa, a 19 de maio de 2023, na nota de promulgação do Estatuto das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). O tema eram os salários dos presidentes das CCDR que, graças a esse estatuto, ficaram a ganhar tanto como o primeiro-ministro e, por isso, cerca de mais €750 do que os ministros que os tutelam. Marcelo estava preocupado não só com essa discrepância salarial, mas sobretudo com a forma como se têm multiplicado as exceções que fazem com que cada vez menos o salário de primeiro-ministro sirva de referência e haja cada vez mais pessoas no universo do Estado (que inclui empresas e entidades reguladoras) a ganhar não só mais do que o chefe do Executivo, mas mais do que o Presidente da República.
Quando em 1985 se criou o estatuto remuneratório dos titulares de cargos políticos, o salário do Presidente foi usado como padrão para definir todos os outros vencimentos. E é por isso que o primeiro-ministro ganha 75% do seu vencimento, o Presidente da Assembleia da República (e segunda figura do Estado) recebe 80% desse valor, os ministros 65% e os deputados 50%. Há uma espécie de pirâmide que faz com que entre os titulares de cargos políticos ninguém se atropele. Mas o que se passa na administração pública é muito mais confuso.
O fator Macedo
A primeira grande polémica aconteceu em 2004, quando Manuela Ferreira Leite decidiu contratar Paulo Macedo para diretor-geral dos Impostos. Então com 41 anos, Macedo foi requisitado ao Banco Comercial Português, onde era diretor-geral adjunto. Problema? Ganhava €21 236, ou seja, cerca quatro vezes mais do que o primeiro-ministro, que na época era Durão Barroso. Apesar do escândalo, o valor estava escudado no decreto-lei 719/74, que autorizava a requisição por parte do Estado de quaisquer gestores ou técnicos de empresas do setor privado, desde que se verificasse a urgente necessidade dessa requisição e o acordo dos indivíduos a requisitar. E foi com base nisso que Macedo se manteve em funções com esse ordenado milionário durante três anos.

O caso serviu, porém, para que em 2005 se mexesse na lei que estabelece as regras para as nomeações dos altos cargos dirigentes da administração pública, com uma introdução feita para que o vencimento do primeiro-ministro passasse a ser o padrão. A lei nº 51/2005 diz que “o pessoal dirigente pode, mediante autorização expressa no despacho de nomeação, optar pelo vencimento ou retribuição base da sua função, cargo ou categoria de origem, não podendo, todavia, exceder, em caso algum, o vencimento base do primeiro-ministro”.
PM não é o mais bem pago
Isso significa que todos os dirigentes do Estado ganham no máximo o mesmo que Luís Montenegro? Na verdade, não. A lei tem várias exceções. Uma delas aplica-se às empresas públicas que se encontram sujeitas a um regime de livre concorrência no mercado, “tendo em conta os critérios decorrentes da complexidade, da exigência e da responsabilidade inerentes às respetivas funções, e atendendo, ainda, às práticas normais de mercado no respetivo setor de atividade”. Manda o mercado e o único critério é que o vencimento dos gestores tem de ser aprovado pela comissão de vencimentos da empresa.
Outra exceção foi introduzida para que Luís Montenegro pudesse convidar Hélder Rosalino para o novo cargo de secretário-geral do Governo, mantendo o ex-secretário de Estado de Passos Coelho o vencimento de cerca de 16 mil euros que ganhava como consultor do Banco de Portugal. A alteração feita à lei a 26 de dezembro permite que o vencimento na secretaria-geral do Governo seja superior ao do primeiro-ministro “desde que para tal seja expressamente autorizado no respetivo ato de designação”. Uma formulação que é contestada pela oposição e que fez o PS pedir uma apreciação parlamentar ao decreto, que vai agora a votos no Parlamento. É que, apesar de Rosalino ter recuado depois da polémica e de o novo secretário-geral ir receber o valor tabelado (que, entre salário e ajudas de custo, ronda os €6 100 brutos), caso não se altere o decreto, fica aberta mais uma via para novas exceções.
A culpa é da concorrência
No caso da aviação, os preços de mercado são milionários. E é por isso que Luís Rodrigues, o CEO da TAP, uma empresa pública, ganha 504 mil euros brutos por ano (cerca de 36 mil euros ilíquidos mensais), tanto como a sua antecessora, Christine Ourmières-Widener, com a diferença de que, ao contrário do que acontecia com a francesa, não está previsto que ganhe qualquer prémio ou bónus. Por discordar do valor, o então presidente da comissão de vencimentos da TAP, Tiago Aires Mateus, apresentou a demissão, depois de ver vencida a contraproposta de um vencimento mais baixo, ainda assim estratosférico para a maioria dos portugueses: a rondar os 420 mil euros anuais.
Em 2004, Paulo Macedo veio do BCP para assumir
a Direção-Geral dos Impostos. Manteve
o vencimento do banco, superior a 21 mil euros. Mas apresentou trabalho…
Graças a essa mesma lógica, Paulo Macedo ganha hoje como gestor do banco público, a Caixa Geral de Depósitos, cerca de 30 mil euros brutos por mês. E a presidente executiva do Banco Português de Fomento (BPF), Ana Carvalho, recebe €22 833 ilíquidos mensais, enquanto a presidente não executiva do BPF, Celeste Hagatong, chega aos €18 500 brutos por mês. Já Nicolau Santos, que como presidente da RTP também não está abrangido pelo estatuto do gestor público em termos de remuneração, recebe €5 453 brutos por mês.
Além das empresas públicas que operam em regime de livre concorrência, as entidades públicas empresariais integradas no Serviço Nacional de Saúde também gozam de uma exceção para que os seus gestores não fiquem limitados pelo salário do primeiro-ministro. No caso dos hospitais, há uma divisão entre os que são de tipo 1 e dos de tipo 2, dadas as suas dimensões. Neste tipo 1 estão Santa Maria, São João e os HUC, em Coimbra, onde os presidentes dos conselhos de administração recebem atualmente €4 700 brutos mensais mais €1 600 de despesas de representação.
Mas não são só os gestores das empresas públicas dos hospitais EPE que têm luz verde para furar o teto do salário do primeiro-ministro imposto pela lei de 2005. Os presidentes das entidades reguladoras também podem (e ganham) mais do que Montenegro. O máximo que a lei-quadro destes organismos prevê para este cargo é uma remuneração de €11 592 ilíquidos por mês. E é essa a bitola para definir os salários de todos os reguladores, entre os quais estão os presidentes da Entidade Reguladora da Saúde, da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, da Comissão de Mercado de Valores Imobiliários, da Autoridade da Concorrência, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, da Autoridade Nacional de Comunicações, da Autoridade Nacional da Aviação Civil, da Autoridade de Mobilidade e Transportes e da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos.
É precisamente à boleia da exceção aberta para as entidades reguladoras que o diretor-executivo do SNS, António Gandra de Almeida, ganha mais do que Luís Montenegro. É que no decreto-lei 61/2022 que criou a orgânica da Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde, estabelece-se que “aos membros da DE-SNS é aplicável, com as necessárias alterações, o estatuto remuneratório fixado para a Entidade Reguladora da Saúde”. Ou seja, Gandra de Almeida recebe cerca de €11 592 ilíquidos por mês.
Abaixo destes valores fica a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), na qual o presidente, segundo os últimos dados disponíveis (de 2018), ganha €7 793,36 a que se somam €1 663,39 em despesas de representação.
Salário de Centeno
Também o Banco de Portugal está fora deste valor, mas neste caso para cima. Mário Centeno ganha €18 177,18 brutos por mês, enquanto os restantes administradores do Banco de Portugal auferem cerca de €15 905 ilíquidos mensais. De acordo com a lei orgânica do Banco de Portugal, quem define estes valores é “uma comissão de vencimentos composta pelo ministro das Finanças ou um seu representante, que preside, pelo presidente do conselho de auditoria e por um antigo governador, designado para o efeito pelo conselho consultivo”. Ou seja, não é o Banco Central Europeu que atribui estes vencimentos.
Segundo dados recolhidos pela Bloomberg em 2016, o banqueiro central mais bem pago da Europa era o belga, quatro posições à frente de Mario Draghi no Banco Central Europeu, aparecendo o português (na altura, Carlos Costa) a meio da tabela, na 12ª posição, mas acima do espanhol, que também ganhava menos do que o cipriota.
Se há muitos no Estado que ganham mais do que Luís Montenegro, a lista dos que ganham tanto como o primeiro-ministro também não é pequena. Se o espírito da lei era o de que o chefe de Governo ficasse no topo dos salários dos dirigentes do Estado, na prática esse valor ficou como referência remuneratória.
É o caso dos presidentes das cinco CCDR (que são eleitos pelos autarcas das respetivas regiões), mas também dos presidentes de vários institutos públicos. A lista inclui a Agência para a Modernização Administrativa, cuja direção este Governo afastou para nomear outra, o Instituto do Turismo de Portugal, que também mudou de direção com este Executivo, o Instituto Nacional de Estatística, cujo presidente foi afastado por este Governo, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, onde também houve troca de cadeiras, ou o Instituto da Segurança Social, cujo presidente também foi mudado nesta legislatura.

Depois há quem ganhe ligeiramente abaixo, mas muito próximo do valor auferido por Luís Montenegro. É o caso dos 472 dirigentes de empresas públicas que recebem no máximo €5 472 brutos de salário mensal (a 14 meses) mais €2 317 em despesas de representação (a 12 meses): ficam muito próximos, mas abaixo do nível remuneratório de Montenegro. Já os vice-presidentes e vogais destas empresas não podem ter um salário superior a 90% e a 80%, respetivamente, do vencimento mensal ilíquido dos seus presidentes.
Segundo a tabela publicada pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, os presidentes das empresas públicas do grupo A recebem como remuneração base o mesmo que o primeiro-ministro, os presidentes das empresas do grupo B auferem 85% desse valor e os do grupo C 80%. Todos recebem 40% do seu vencimento base em despesas de representação. A classificação das empresas em cada um destes grupos depende de fatores como o seu volume de negócios, o número de postos de trabalho, o ativo líquido e o contributo do esforço financeiro público para o resultado operacional.
Abaixo destes valores ficam os presidentes de câmara, que por lei recebem uma percentagem do vencimento do Presidente da República, acrescido de despesas de representação. Em concelhos com 40 mil eleitores ou mais, os presidentes recebem 50% do vencimento do Presidente, ou seja, €3 624,41 mais despesas de representação de €1 110. Nas autarquias com entre dez e 40 mil eleitores, recebem 45%, o que equivale a €3 261,97 mais despesas de representação de €999,88. Nos restantes municípios é aplicada a percentagem de 40%: €2 899,53 de salário com despesas de representação de €888,78.
Ricos assessores
Tudo somado, significa que Carlos Moedas e Rui Moreira ganham cerca de €4 700. Um valor que, segundo uma investigação publicada pela revista Sábado em 2022, era até inferior ao que recebiam dezenas de assessores de Moedas na Câmara Municipal de Lisboa, embora nesses casos através de recibos verdes.
Sérgio Figueiredo
vinha para consultor,
no ministério de
Medina, ganhando
mais do que o ministro. A polémica
fê-lo recuar
Curiosamente, em 2022, Fernando Medina teve de deixar cair a contratação do ex-jornalista e economista Sérgio Figueiredo para o Ministério das Finanças, depois de se saber que iria, como consultor, ganhar €4 767 brutos, o mesmo que um ministro. A oposição considerou tratar-se de um “pagamento de favores” e Medina sucumbiu à polémica. Em causa estava o facto de Sérgio Figueiredo ter contratado Fernando Medina como comentador enquanto era diretor da TVI.
Pelo salário, Figueiredo não seria sequer caso único no governo. A então chefe de gabinete de António Costa, Rita Faden da Silva Moreira Araújo, recebia cerca de €5 200 brutos mensais, mais do que o próprio primeiro-ministro.
As regras e as exceções
Lei define tetos, mas há muitas formas de os furar
Em 2024, a remuneração base do Presidente era de €8 193,97 brutos, antes do corte de 5% que acabou a 1 de janeiro, mais 25% desse valor em despesas de representação, o que dá cerca de €11 500. Limpos,Marcelo Rebelo de Sousa recebe €5 715,58 por mês
Luís Montenegro recebe €5 838 mensais, mais 40% desse valor em despesas de representação
Empresas que operam em mercados de concorrência livre ficam fora do teto imposto pelo salário do primeiro-ministro. É por isso que Luís Rodrigues, CEO da TAP, ganha cerca de 36 mil euros brutos por mês, e Paulo Macedo recebe na CGD à volta de 30 mil euros ilíquidos
Os presidentes das entidades reguladoras podem receber até €11 592 ilíquidos por mês. É por essa bitola que é pago o diretor-executivo do SNS, Gandra de Almeida, que assim ganha mais do que o PM
No Banco de Portugal há uma comissão de vencimentos que estabelece o valor dos salários e na qual tem assento o ministro das Finanças. Mário Centeno ganha cerca de 18 mil euros, menos do que Paulo Macedo que está à frente de um dos bancos supervisionados por Centeno.