Quem nunca se questionou se o seu corpo, a forma de pensar, de sentir ou de comportar-se é “normal” que atire a primeira pedra. Houve um tempo em que o “novo normal” andava nas bocas do mundo, para logo se falar em “normalizar” tudo e mais alguma coisa. Desde adolescente que Sarah Chaney sonhava em ser como as outras pessoas; a normalidade era um mundo estranho até ao dia em que a jovem adulta decidiu mergulhar no tema a fundo. Os estudos académicos levaram-na a descobrir a origem de uma obsessão que já dura há dois séculos e que partiu dos conceitos da matemática e da geometria, transpostos para os comportamentos humanos.

Aos 30 anos, a também gestora de exposições e eventos no Royal College of Nursing defende que o culto da norma é uma abstração com pés de barro e frequentemente colocada ao serviço de ideais que são, no mínimo, questionáveis. No livro As Pessoas Normais Não Existem ‒ A Obsessão pela Normalidade e por que Razão Ela não Existe (Presença, 303 págs., €19,90), a autora explica a razão do fascínio pelas medidas e testes, lançando alguma luz sobre um mito que nos influencia mais do que estamos prontos a admitir.

Este é o seu segundo livro. Após dissecar o tema da automutilação (Psyche on the Skin: a History of Self-Harm), explora o conceito da normalidade. O que motivou estas escolhas? 
O estudo da automutilação deveu-se a experiências pessoais que tive enquanto adolescente e jovem adulta e à necessidade de questionar ideias e atitudes que continuam a ser difundidas. Ainda não há muito tempo, a filha de uma amiga foi ao médico e ele, dando-se conta do comportamento autolesivo, comentou, de forma paternalista: “Porque é que fazes isso a ti mesma, sendo uma menina tão bonita?” O problema centra-se na aparência, sem reconhecer o que possa estar além dela. Explorei a história da psiquiatria e da saúde mental com base em registos hospitalares e, nos formulários de admissão, havia perguntas sobre a inclinação para a automutilação ou o suicídio. Estas evidências provam que o tema não se circunscreve aos anos 1980 e 1990, pois eram já conhecidas na era vitoriana. Costumam perguntar-me se este comportamento ocorria maioritariamente no feminino, mas, curiosamente, estas questões colocavam-se com mais frequência nos homens, que faziam cortes na pele, mas raramente o mencionavam.

O que concluiu sobre isso, uma vez que admite que a questão não se resume ao plano individual?
As ideias sobre os comportamentos autolesivos que eram difundidas pelos médicos no final do século XIX remetem para a castração. Na altura, presumia-se que essa prática era muito comum, mas os poucos registos encontrados permitiram apurar que eles foram inflacionados, já que não existiram assim tantos casos em rapazes e homens.

Que razões podem ter levado a isso?
Havia as questões sobre a masculinidade que estavam a mudar nessa altura, com preocupações médicas relativamente aos homens da classe média, a transitarem de profissões com uma componente mais física e manual para funções administrativas, em ambiente de escritório. No meio clínico, dominavam os receios em torno da masturbação, que ameaçava tornar os homens efeminados e levantava preocupações sobre a homossexualidade, que era ilegal. Era esta a visão, tornou-se proeminente nos círculos médicos: a Humanidade estava a degenerar e o foco de preocupação foi deslocado para os homens.

Porque abre cada capítulo do seu novo livro com um detalhe autobiográfico, descrevendo a sensação de estranheza de não ser como os outros?
Quando se fala destes assuntos numa perspetiva histórica, as pessoas tendem a questionar como é que aquilo que aconteceu há 200 anos pode relacionar-se com as suas vidas. É possível que pensem que se trata de algo muito distante, que pouco ou nada tenha que ver com elas. Quis remover essa barreira e optei por falar das implicações, na minha própria vida, de ideias do passado que hoje continuam a preocupar-nos e a influenciar os nossos comportamentos ou o que os outros possam esperar de nós.

Refere-se a coisas como a ideia de ser um patinho feio na escola ou o receio de ser alvo de bullying por ter determinada característica ou aparência?
Sim. Nas gerações mais jovens, continuam a existir fortes expetativas ligadas à aparência. Basta ver o tempo que passam no YouTube ou no TikTok, a fazer ou a visualizar tutoriais sobre maquilhagem, a fim de se parecerem com figuras que tomam como modelos, ou o estilo rígido das poses e expressões nas selfies que publicam. As redes sociais, que seriam uma via para abrir horizontes e partilhar uma gama de experiências e formas de estar, parecem ter o efeito oposto.

Estamos mais obcecados em corresponder a um ideal ou norma do que no passado? 
Hoje, questionam-se as expetativas sobre o que é isso de ser normal, mas menos do que entre 1950 e 1970. Na minha investigação constatei que houve muito debate nessa época. Por exemplo, nos textos médicos levantaram-se muitas dúvidas acerca do que deveria ser, ou não, entendido como normal. O mesmo se aplica aos livros sobre a infância e a parentalidade, mas aí os estudos não foram conclusivos.

Curiosamente, os jovens pais parecem mais informados mas menos seguros. Isto não é um tanto ou quanto contraditório?
Essa insegurança começou bem mais cedo do que se pensa, por volta dos anos 1930. Uma das pessoas com quem trabalho, no Queen Mary Centre for the History of Emotions, descobriu que nessa altura já era notório o progressivo aumento das orientações e expetativas depositadas nos pais. Essa tendência acentuou-se nas décadas seguintes, da mesma forma que o medo partilhado em certos círculos de pais por conta das teorias dos especialistas.

Pode dar um exemplo dessas teorias?
Na altura, emergiram os modelos da vinculação a partir de estudos na área da Psicologia, sugerindo que a ausência de experiências de ligação afetiva nos primeiros anos de vida dos filhos teria consequências nefastas nas suas vidas, quando atingissem a idade adulta.

O que significa ser normal e como é que a evolução do conceito tem impactado as nossas vidas?
Mergulhei no tema da normalidade porque ele esteve presente ao longo de grande parte da minha juventude. Foram muitas as vezes em que me perguntei “porque é que não consigo ser normal?”, sem interrogar o significado disso. A análise histórica de registos médicos permitiu-me perceber que o normal era definido pela sua ausência. Partia-se daquilo que não era comum e o normal era o que sobrava. Por isso, o conceito baseava-se em suposições.

É de admitir, então, que as suposições são a fonte de muitos sarilhos?
[Risos.] Na verdade, é um bocado mais sinistro do que isso. Com frequência, o normal é aquilo que os especialistas definem, estendendo esse padrão a terceiros. Muitas vezes, significa ser de raça branca e pertencer à classe média no mundo ocidental.

Fala do célebre acrónimo WEIRD (Western, Educated, Industrialized, Rich and Democratic), que cita em artigos científicos no livro?
Essa sigla é mais recente e foi proposta por alguns cientistas para descrever como boa parte dos estudos, sobretudo na Psicologia e na Medicina, se centram em determinado perfil de pessoas.

Qual a pertinência de indicadores que atestam se alguém tem peso a mais (Índice de Massa Corporal, IMC), é emocionalmente equilibrado, sexualmente são ou suficientemente inteligente, por exemplo?
No caso do IMC ou dos níveis médios da pressão arterial, eram usados no início do século XX nas seguradoras norte-americanas. Criou-se, nas classes média e alta – que tinham seguros – uma expetativa sobre o que era desejável ou saudável, e esses pressupostos, ou preconceitos, eram aplicados à generalidade da população. Os estudos com o intuito de encontrar o “homem médio” usavam amostras enviesadas.

Quem não encaixasse nesse ideal que resultava de cálculos, matemáticos ou estatísticos, era – ou ainda é – excluído?
Isso verificou-se num estudo que recolheu as medidas físicas de milhares de norte-americanos para encontrar a mulher e o homem típicos. Na sua maioria, elas eram caucasianas e com idades entre os 18 e os 25 anos. As estátuas que daí resultaram, Norma e Normman [concebidas pelo sexólogo Robert L. Dickinson e o escultor Abram Belskie, e doadas ao Museu da Saúde de Cleveland, nos Estados Unidos da América, em 1945], criaram a expetativa de que ter aquelas medidas era não a média mas o ideal de homem e de mulher. Isso excluía quem ficasse fora do padrão no qual se esperava que todos encaixassem num contexto cultural.

Quando se fala de padrões do “homem médio”, em que medida é que podem causar dano? 
Do ponto de vista científico, o foco era a população e não os indivíduos. No início do século XX, ficou claro como a criação de padrões normativos justificou o colonialismo e a emergência de políticas que definiam, por exemplo, quem podia, ou não, ter filhos, através das leis de esterilização nos EUA.

Tentar encaixar-se é algo muito enraizado: se for a uma loja de roupa experimentar uns jeans e vir que o seu tamanho não serve, tende a pensar que o problema é do corpo, não das medidas padronizadas

No limite, que utilidade tinham esses padrões, sem margem para a singularidade?
Na Europa Ocidental, estes estudos científicos em torno da normalidade serviram para difundir e legitimar a visão de uma hierarquia civilizacional.

Também era assim nas esferas emocional e social? Há um século, falava-se de histeria, mas também da fleuma no trato, sobretudo na cultura britânica. 
Os estudos de Thomas Dickson, por volta de 1840, mostraram que as emoções fortes eram para ser expressas, como chorar após receber uma má notícia ou por estar em stresse, mas depois isso mudou e a contenção emocional passou a ser considerada um comportamento civilizado. Essa noção parece vigorar ainda hoje na Grã-Bretanha.

A internet e a globalização poderiam contribuir para a diversidade e, contudo, parece haver uma estandardização crescente dos hábitos e costumes. Que leitura faz disso?
Embora as pessoas tenham ficado mais despertas para experiências, opiniões e expetativas diferentes, também se tornaram, em certa medida, mais lineares. Por exemplo, sabemos que existem várias formas de experienciar a mesma coisa, mas isso não significa que não se caia num pensamento dicotómico e que tem que ver com a forma como a sociedade funciona. Imagine o caso de uma criança neurodivergente: numa cultura menos medicalizada, o sistema educativo poderia ir ao encontro dessas necessidades sociais. Porém, para obter apoio estatal vai precisar de um diagnóstico e de um plano de tratamento específico.

Em que medida é que o mito do normal pode interferir nas políticas dos serviços de saúde públicos?
Pegando novamente no IMC, este indicador deixou recentemente de ser tão decisivo face a outras formas de avaliar o estado de saúde. Reconheceu-se que alguém pode estar na categoria de obeso, ter um risco mais elevado de desenvolver certas doenças e, apesar disso, ser saudável.

Alguma vez precisou de derrubar narrativas enviesadas que se revelaram problemáticas nas suas áreas de estudo?  
No caso da normalidade, não, mas no ativismo em torno dos comportamentos autolesivos, sim. Aconteceu quando foi proposta uma lei para criminalizar a partilha de informações nas redes sociais. Havia o risco de encorajar a automutilação ou incentivar o suicídio, mas, ao mesmo tempo, os adolescentes que falavam disso online, para procurar informação ou apoio e compreender melhor a sua saúde mental, também podiam ser criminalizados. É muito comum apontar o dedo às redes sociais, mas falta ver outros lados da questão.

Qual é o impacto da quantificação da vida na construção da identidade?
Apesar de muitos de nós questionarem as ideias de média e de normalidade, tentar encaixar-se é algo muito enraizado: se for a uma loja de roupa experimentar uns jeans e vir que o seu tamanho não serve, tende a pensar que o problema é do corpo, não das medidas padronizadas. Passa-se o mesmo que no caso da norma, fruto de uma média que passou a ser vista como uma medida universal.

No livro, fala do concurso feito por um jornal local, em que só 1% das candidatas se aproximava das medidas de norma. O que pode dizer sobre a clivagem entre corpo real e ideal, como o da Mulher-Maravilha? 
É fascinante pensar que o psicólogo que a criou [William Moulton Marston, nos anos 1920, quando já era célebre por inventar o polígrafo] tinha uma visão singular que não correspondia aos seus atos. Ele achava que as pessoas deviam evitar as emoções negativas por não serem normais. O caminho era promover as positivas, que advogava serem típicas das mulheres. Embora defendesse os ideais feministas, o criador da Mulher-Maravilha tinha acessos de raiva e ciúme, vivia com duas mulheres a quem passava as tarefas do lar e apoderou-se das ideias e do trabalho delas. Porém, o psicólogo via nessa figura a líder harmoniosa, capaz de resolver os conflitos do mundo causados pelos congéneres do sexo masculino.

Como encara os artigos do tipo “cinco formas de …” ou os livros com o subtítulo “para totós”, ou seja, pessoas normais?
Sim, é comum, sobretudo nos tabloides, partir do princípio de que é assim que se escreve para leigos, sem ter em conta em que medida é que isso se converte naquilo que as pessoas comuns se habituam a ler, o que não deixa de ser uma profecia autorrealizável.

Ser refém da normalidade pode converter-nos em normopatas, incapazes de pensar e de sentir como humanos?
Uma das coisas que mais me intriga é quão facilmente somos enganados por líderes que nos dizem que os nossos problemas se devem a um grupo específico, sendo nós os normais e eles não. Isso conduziu à eugenia [alusão ao cientista vitoriano Francis Galton, também conhecido pela “distribuição normal”] e outros fenómenos sombrios. Se me perguntassem, quando estava a escrever o livro, se era possível acontecer o que temos visto nos EUA, a minha resposta era não. Estava longe de pensar que coisas como a lei do aborto mudassem, o que mostra como são frágeis os nossos direitos e expetativas.

O poderoso investimento que Portugal tem de fazer na Defesa, para cumprir os mínimos da NATO, centra-se, por agora, na substituição dos F-16 – que bem poderiam ser oferecidos à Ucrânia – por caças de quinta geração, como os F-35 americanos.

Atualmente, na Europa, não existe nenhum avião equivalente a esta geração. O F-35 Lightning II é um caça multifuncional, destacando-se pelas suas capacidades «stealth», aviônica avançada e integração de sensores, sendo o mais sofisticado do mundo.

Este avião americano foi concebido para ser um modelo único, integrando todas as capacidades dos seus antecessores, como os F-15, F-16 e até o F-22 (mais especializado). Isso permitirá aos EUA reduzir e extinguir as outras frotas, apostando na capacidade de atualização de software e no tipo de armamento consoante as missões, o que o colocará muito próximo da sexta geração, já em fase de testes.

Assim sendo, não faz sentido que Portugal aposte em aviões europeus de quarta geração. Existem vários consórcios europeus a tentar melhorar esses modelos, mas a nova geração só deverá começar a voar em 2035. É verdade que os F-35 são muito caros (80 milhões de euros por unidade) e exigem uma manutenção igualmente dispendiosa, mas podem dotar a nossa Força Aérea com o que de melhor se há no mundo.

Vários países europeus adquiriram ou estão a adquirir o F-35, com o objetivo de reforçar a integração da Defesa europeia e da NATO, independentemente das tolices de Trump, cujo prazo de validade terminará em 2028. Também conviria aproveitar para investir em capacidades que ainda não possuímos, como drones de ataque e baterias antimísseis – sejam os Patriot americanos, os Iris-T alemães ou, até, os Arrow 3 israelitas.

As centenas de milhões que Portugal está obrigado a investir na Defesa têm de ser muito bem aplicados na aquisição de novos equipamentos militares, adequados aos conflitos do futuro, como se tem observado e comprovado na Ucrânia.

“Se as coisas não são como desejas, deseja-as como são.” Quando li pela primeira vez este provérbio iídiche, no fim da minha vida, não consegui compreendê-lo.

Naquele dia frio e invernoso de 14 de dezembro de 1941, quando cheguei à entrada de Theresienstadt, estava gelado, exausto e assustado. Queria o meu triciclo vermelho e queria muito estar com o meu avó amoroso e com o meu pai. Queria regressar a casa, em Karlovy Vary. Mas esta não era a minha realidade naquele dia terrível e nunca mais ia ser. Como é que, de alguma maneira, poderia desejar que as coisas fossem como eram então, em Theresienstadt, e muitos menos os dias, semanas, meses e anos que vieram depois, com as suas privações, sofrimento e medo?

Não há dúvida de que esse período horrível desempenhou um grande papel na formação da minha personalidade e perspetiva de vida. Em Theresienstadt, todos nós, homens, mulheres, jovens e idosos, e até crianças, tínhamos muito pouco de nada.

Tínhamos de fazer uso de tudo o que tínhamos, fosse um pedaço de comida ou pano, um lápis ou um botão, qualquer pequena coisa para nos ajudar a sobreviver mais um dia e ter até um bocadinho de esperança. Até hoje, tento ser o mais engenhoso que seja humanamente possível, em todos os sentidos. Tenho muito prazer nas pequenas conquistas, e acredito sempre que as coisas podem ser sempre, nem que seja um bocadinho, melhores.

Otimista por convicção Gidon Lev com a sua atual companheira, Julie Gray, numa marcha contra os negacionistas do Holocausto e em frente ao campo de concentração

Com certeza, não estou feliz, para dizer o mínimo, relativamente à forma como vivi a minha infância. Foi extremamente difícil e assustadora. A verdade é que, em grande medida, efetivamente, quase não tive infância.

Claro que no centro da minha tristeza estava a perda, em primeiro lugar, do meu pai e do meu avó Alfred, a quem tanto amava. Mas, hoje, só me resta aceitar o que aconteceu, porque não posso mudá-lo. Mas tenho uma sensação muito forte de que tanto o meu pai como o meu avó teriam ficado extremamente orgulhosos de mim pela forma como não só sobrevivi mas também consegui usar as lições que aprendi durante aquela altura para tornar a minha vida melhor.

QUANDO fui pela primeira vez a Brooklyn com a minha mãe, em 1948, a minha vida ficou mil vezes melhor e diferente do que tinha sido no campo de concentração. Em primeiro lugar, não estava com fome todos os dias e a todas as horas. Também tinha uma cama limpa, roupa quente e podia andar livremente, sem medo. Essas coisas tornaram a minha nova vida quase como um paraíso. Mas ainda não estava satisfeito. Ao andar pelas ruas, vi diners e soda shops cheias de pessoas a saborear hambúrgueres deliciosos, batatas fritas, cachorros-quentes e aqueles copos de bebidas com gelado (chocolate e morango) e também queria uma daquelas! Mas só conseguia olhar pelas montras, porque não tinha dinheiro para comprar nada.

Tinha de haver uma forma de ultrapassar esta situação, por isso, fiz um balanço da situação. Ali estava eu, um miúdo de 13 anos, que ainda não falava inglês, mas era livre e independente.

Tinha pernas, braços e cabeça. Procurei e perguntei até que consegui encontrar trabalho a entregar roupa lavada. Não recebia ordenado, só gorjetas, às vezes até 25 cêntimos, o que era muito dinheiro na época. Em pouco tempo, ganhei dinheiro suficiente para comprar um gelado. E fiquei muito feliz! Era tão bom que me lembro do sabor dele até hoje, morango. Não só consegui melhorar um pouco as coisas por um dia, como também reforcei a minha crença em mim próprio no meu novo país.

Quando penso numa coisa que quero, seja um gelado ou uma coisa muito mais ambiciosa e complicada, olho em volta para o que já tenho que possa ajudar. Aprendi isto na minha infância.

Consegui fazer o mesmo durante um dos momentos mais difíceis da minha vida, depois de a minha mulher Susan ter morrido. Tinha vendido a casa da nossa família e tinha-me mudado para uma parte diferente de Israel para ficar mais perto dos meus filhos.

Não sabia o que fazer comigo mesmo. Precisava de me manter ocupado, mas já tinha 77 anos. Para mim, foi uma verdadeira crise de identidade, não ter a Susan e não saber o que podia fazer para me manter ocupado. Os meus filhos cresceram e estava sozinho muito mais cedo do que jamais tinha imaginado.

Mas tinha um carro e tinha tempo. Por isso, comecei à procura até encontrar aquela loja de entrega de flores e perguntei se podia entregar as flores, a pensar que aquilo me ia ajudar a conhecer o lugar, e talvez até conhecer algumas pessoas que normalmente não costumava encontrar. E foi o que fiz. Depois, o outro irmão contratou-me, e o terceiro também! Acabei por estar muito ocupado!

Finalmente, de alguma forma, acho que entendo a frase de que se as coisas não são como se deseja, pode-se desejá-las como são. Porque às vezes a forma como as coisas são pode dar-nos novas ideias e fortalecer-nos, e pode até ser um fator para nos tornar mais resilientes e criativos.

Mesmo que não seja fácil, se olharmos para o que há nas nossas vidas, podemos encontrar as coisas que possuímos que podem ajudar-nos a sentir melhor, a fazer melhor e talvez até a melhorar as coisas para os outros. Quando entreguei flores, fiz o mundo um pouco melhor para as pessoas que as receberam, e isso fez-me sentir muito bem.

Muito poucos de nós reparam no que realmente já têm. Pode ser um teto sob a nossa cabeça, quem sabe, um bom amigo, a imaginação, a curiosidade e a criatividade, e até mesmo a simples determinação e o desejo de ser mais feliz. Se podemos imaginar que as coisas podem ser melhores, podemos fazê-las. Temos o poder dentro de nós para mudar a situação ou o ambiente e até mesmo mudar e curar a nossa própria alma. Isto, na minha opinião, é fundamental.

A minha situação enquanto criança, e não apenas a minha, mas a de milhões de outras pessoas, era extrema, mas muitas pessoas passam por períodos, às vezes longos, de sofrimento, por uma razão ou outra. A doença pode levar à incapacidade permanente ou mesmo à morte. Há pobreza. Há violência e dor, seja física ou emocional, e tudo isso torna a vida bastante difícil e desafiadora. Acho que é importante ser capaz de sentir empatia pelos outros. Não nos diminui nem ao nosso sofrimento, mas, na verdade, ajuda-nos e é bom para a alma.

Para mim, é difícil ver como as pessoas tem tão pouca empatia umas pelas outras. Isso acontece mais hoje do que antes? Não tenho a certeza, mas talvez esteja mais consciente disso e, portanto, tento sair do meu caminho para me envolver mais livremente com os outros. Nem sempre obtenho uma resposta positiva, mas tentar faz-me sentir que estou a ter um efeito positivo.

Por exemplo, neste preciso momento, o meu velho amigo Yaacov está a fazer tratamentos de quimioterapia. Algumas vezes por semana, vou até a casa dele, sento-me com ele e conversamos. Quando estava a fazer quimioterapia, era muito importante que as pessoas se interessassem e falassem comigo, não necessariamente sobre a minha doença, mas sobre todos os tipos de coisas.

Por vezes, os problemas das nossas vidas e, certamente, do mundo, podem ser avassaladores e totalmente desencorajadores. É muito difícil imaginar que as coisas vão melhorar, tanto quanto gostávamos que melhorassem. A nossa situação atual é assustadora, para dizer o mínimo. Mal conseguimos ver a luz ao fundo do túnel.

Podemos achar que, como indivíduos, podemos fazer muito pouco para concretizar uma mudança. Por exemplo, não sou uma pessoa rica, nem um político, nem um líder mundial famoso. Sou apenas o Gidon Lev, um tipo comum que, muitas vezes na sua vida, tentou melhorar as coisas.

Acho que foi o Yaacov quem me falou de uma frase do Rabino Tarfon, que viveu há muito, muito tempo: “Não é obrigado a completar a obra, mas também não é livre para abandoná-la.”

Algumas pessoas pensam que o rabino queria dizer, essencialmente, que há sempre muito trabalho a fazer, e também há sempre um tempo limitado para o fazer, seja uma hora, um dia, uma semana, ou até mesmo toda a nossa vida. O nosso trabalho, aparentemente, nunca está feito, e é por isso que este ditado faz muito sentido para mim. Costumava ser uma espécie de workaholic quando era mais jovem, e admito que isso perdura comigo até hoje. Mas não acho que o rabino Tarfon estivesse a referir-se a esse tipo de trabalho.

Queria entender mais sobre esse ditado, por isso, usei o Google e encontrei uma parábola sobre um rei que contrata trabalhadores para preencher um buraco gigante. Um trabalhador olha para ele e diz:

– Isto é demasiado grande. Nunca vou conseguir acabar isto!

Outro trabalhador diz:

– Fui contratado por apenas um dia. Pelo menos, tenho trabalho!

Gosto dessa parábola, porque ela foca-se no aqui e agora. Centra-se no que um indivíduo pode fazer, dependendo da sua atitude e perspetiva. Para mim, “o trabalho” a que o rabino Tarfon se refere é como um emprego, e esse emprego está a melhorar as coisas. Portanto, é claro que não podemos parar de tentar, porque isso significaria que estamos a desistir. Não podemos desistir, porque lutar, fazer, esperar, amar e criar são a essência de sermos humanos e, se pensarmos nisso, da própria vida!

Embora às vezes não o pareça, a vida em si é verdadeiramente um dom, e devemos aproveitá-la e agarrá-la com as duas mãos. Em toda a minha existência, nunca recebi um telefonema ou mensagem de alguém que tenha morrido a dizer-me o que está a fazer agora que está morto!

Claro que estou triste por haver tanto sofrimento e dor pelo mundo. Durante muitos anos, não tinha certamente consciência de como era a vida em lugares longe de mim ou dos diferentes problemas nesses lugares. Agora, com tantos meios de comunicação e informação, estou muito mais consciente das dificuldades que tantos milhões enfrentam. Coisas como guerras, doenças, fome e muito mais. Especialmente hoje, o mundo, em muitos lugares e instâncias, parece realmente ter-se descontrolado. Se houvesse alguma maneira de melhorar as coisas, fá-la-ia imediatamente, mas às vezes não sei o que posso fazer para ajudar. Acho que acontece o mesmo a muitos de nós.

Durante algum tempo, a Julie e eu trabalhámos como voluntários num centro de distribuição de alimentos em Ramat Gan. Principalmente eu, na verdade. A Julie vinha quando não estava a escrever ou a trabalhar. Esta organização recolhia donativos de alimentos de restaurantes, cafés e mercearias. Ou porque a comida não se tinha vendido e estava a passar a validade, ou porque não estava fresca, mas ainda era perfeitamente comestível.

Uma dúzia de voluntários vestia aventais e luvas e começava por separar os alimentos e organizá-los em categorias como carne, pratos quentes, assados, frutas e legumes. Em seguida, organizávamos encomendas para serem entregues por outros voluntários em casas de famílias carentes e cidadãos da nossa cidade.

Era uma atividade muito gratificante, principalmente quando também conseguíamos ser nós a entregar essas doações nas casas e éramos os destinatários dos rostos alegres e agradecidos!

Estou muito feliz por ter podido fazer parte deste projeto, como uma pequena forma de contribuir para tornar a nossa sociedade melhor. Nós, voluntários, não fomos os únicos a participar num projeto deste tipo. Muitas destas organizações pelo mundo inteiro ajudam a distribuir alimentos. Mas estou convencido de que não são suficientes.

Talvez seja porque nunca tive comida suficiente quando era pequeno, para mim é totalmente inaceitável e não há desculpa para que restaurantes, mercearias e até casas particulares deitem fora tanta comida todos os dias. Toneladas e toneladas de comida perfeitamente boa, que as pessoas realmente precisam, vai para o lixo. Esta situação deve mudar e irá mudar num futuro próximo. Afinal de contas, há alimentos mais do que suficientes para todos nós, especialmente se eliminarmos o desperdício e trabalharmos em conjunto para fazer chegar esses alimentos às pessoas que necessitam deles.

Claro, todos têm uma coisa que lhes é próxima e querida que também podem combinar com os seus talentos, habilidades e paixões. Por exemplo, a Julie é muito boa a fazer discursos e a dar palestras e também é muito boa com as pessoas. Tem uma maneira de fazer com que as pessoas se sintam confortáveis e boas, especialmente os jovens. Por isso, passou muito tempo a fazer voluntariado aqui mesmo em Israel e na Cisjordânia, a ajudar jovens empreendedores a exprimir-se e às suas ideias com confiança para que possam ter mais sucesso nas suas carreiras.

Uma vez, ensinou a uma turma inteira de sobreviventes dos massacres em Darfur, no Sudão, como é que podiam criar os seus próprios sites para os ajudar a encontrar melhores empregos.

O meu neto Eshel é engenheiro agrónomo, e passou vários anos na Etiópia a trabalhar para uma organização sem fins lucrativos para melhorar a agricultura de forma a que os agricultores pudessem cultivar melhores colheitas, sair da pobreza e não sofrer de desnutrição. Na Etiópia foi onde o Eshel conheceu a minha querida nora-neta Reut, e tiveram um lindo casamento no deserto de Arava há uns anos. Agora têm a sua própria quinta lá. A ONG para a qual o Eshel trabalhou ajudou a fornecer aos agricultores etíopes sementes de melhor qualidade e ensinou-lhes novas formas de cuidar das suas colheitas. O Eshel e a Reut passaram algum tempo nos campos a trabalhar, ensinar, explicar e a melhorar as coisas de maneiras pequenas, mas significativas. Fiquei, e estou, muito orgulhoso e agradecido por ter um neto e uma neta tão importantes, que estão a fazer um trabalho tão importante.

Para mim, imaginar a diferença que o Eshel, a Reut, a Julie e tantos outros como eles fizeram, pessoa por pessoa, um de cada vez, é avassalador.

O meu filho Yanai, pai do Eshel, foi para o Ruanda em 2023 com mais dois ou três voluntários. Ele e os outros ensinaram habilidades de equilíbrio acrobático e malabarismo às crianças de rua. O Yanai esteve lá por cerca de uma semana. Ele e os amigos deram a essas crianças uma coisa muito especial que nunca tinham pensado que conseguiriam fazer, e isso fez com que essas crianças se sentissem bem, uniu-as e deu-lhes uma sensação de alegria e esperança num futuro melhor. Quem sabe o que isso pode inspirar nelas para os anos que se seguem.

O meu filho Shaya, que trabalha na Universidade Hebraica, estuda como a dor funciona para que, no futuro, possamos ajudar as pessoas com dor crónica a serem mais bem compreendidas e a sentirem-se menos mal. A minha filha Hadasa ajuda a desenhar cidades para que as pessoas possam ser mais sociais e conectadas. O meu filho Asher ensina às pessoas como a arte da dança pode libertar as suas almas, a minha filha Maya ensina ioga para ajudar as pessoas a estarem mais conectadas com o seu espírito, e o meu filho Elisha ajuda a enviar bens para todos os cantos do mundo para que todos tenham o que precisam.

Isto deixa-me muito feliz e esperançoso. Quando penso em como os meus filhos e tantas centenas de milhares fazem coisas deste género pelo mundo todos os dias. São pessoas que escolhem ser úteis e ter esperança, quando podiam estar preocupadas, irritadas ou tristes. Ao fazerem o que podem e ao participarem neste tipo de atividades, estão a optar por ajudar a melhorar as coisas para todos nós, em vez de desistirem ou se voltarem para dentro, ou focarem-se apenas em si próprios.

A mudança vem de baixo para cima, uma pessoa de cada vez. Quando uma pessoa faz algo positivo, isso liga-a a outras pessoas, e podemos ter um forte impulso. Também podemos ter ímpeto na direção oposta e negativa, e temo que haja muito disso hoje. Mas acredito verdadeiramente que a mudança vem ai. Acho que as coisas estão a mudar agora, porque mesmo quando, especialmente quando, as coisas não estão tão boas, é quando as pessoas percebem e começam a mudar.

NO MUNDO DE HOJE, somos muito encorajados a pensar em nós mesmos como indivíduos. É dada grande ênfase ao individual, sobretudo entre os jovens. Na minha época, esse foco no indivíduo não era uma coisa em que as pessoas pensassem muito. Isso é bom, em muitos aspetos, porque somos indivíduos únicos e os nossos pensamentos, sentimentos e experiências importam, às vezes, muito. Quem me dera que tivesse sido assim quando era miúdo, depois da libertação. Mas não se esperava que fosse assim, naquela época.

Mas, na atualidade, fomos possivelmente longe de mais ao pensarmos no nosso eu individual. Tanto que muitos jovens estão bastante separados ou isolados dos seus amigos, das suas comunidades e até mesmo das suas próprias famílias. Muitas vezes, são totalmente egocêntricos, mas ao mesmo tempo são, provavelmente, bastante solitários. Parecem estar ao sabor das ondas e à procura de um significado ou propósito.

Especialmente em tempos difíceis, não nos podemos pôr de parte, por assim dizer, e não estar envolvidos. Se não temos um sentido de missão, reparemos no que nos rodeia. Para onde quer que olhemos, a ajuda é necessária. Certamente, vamos encontrar muitos lugares nos quais podemos ser úteis e estar envolvidos, o que, no fim, nos ajuda a sentir esperança, porque estamos a fazer a diferença, mesmo que pequena, à nossa maneira. Isso, por si só, é muito gratificante.

Nunca me vi como uma pessoa com uma missão ou um propósito. Nunca olhei para a minha vida dessa forma. Mas, para mim, a própria oportunidade de escrever este livro deu-me um forte sentido de propósito e isso ajuda-me verdadeiramente a sentir-me mais ligado a todos vós, à minha comunidade e ao mundo em geral.

ÀS VEZES, as pessoas nem sempre querem ouvir as opiniões e pensamentos de um velho comum. Mas escrever este livro, para lerem, permitiu-me explorar muitas das minhas memórias e experiências a um nível muito mais profundo. Também me deu a oportunidade de olhar para trás de maneiras que raramente tinha feito antes. Aprendi muito mais sobre o mundo, a minha vida no passado e, mais importante ainda, a minha vida nesta situação atual. Até olhei mais profundamente para o meu coração e alma para perguntar o que é verdadeiramente importante para mim, aqui e agora, nesta fase da minha vida.

Aprendi muito, e imagino que, se a minha Susan estivesse por perto, ficaria espantada com a quantidade de introspeção que agora sou capaz de fazer!

A Julie e eu tivemos longas conversas enquanto trabalhávamos juntos neste livro, e pareceu-me muito natural e importante pensar e considerar não apenas a minha própria vida, mas também a vida no sentido mais amplo. Todos os dias, enquanto trabalhávamos, sentava-me na minha cadeira amarela favorita. É a mesma em que me sentei quando a Susan me disse para não ficar sozinho. Acho que a Susan ia ficar feliz por ainda estar vivo e feliz hoje, por ter encontrado uma companheira tão fantástica como a Julie, e estar a refletir profundamente sobre a minha vida, da maneira que ela sempre me encorajou a fazer.

Tenho esperança de que vocês, meus queridos leitores, quando pegarem neste livro, encontrem a ligação não só entre nós os dois, mas também com as vossas famílias, amigos e o mundo em geral. Talvez ao lerem sobre as minhas dificuldades e aventuras, também encontrem coragem e meios para se aventurarem e experimentarem coisas novas e diferentes que vos deem um novo sopro de vida e esperança. Nunca tenham medo de parecer ou ser ridículos, porque isso faz parte de se ser humano.

Talvez ao lerem, e verem, como, às vezes, foi tão difícil para mim superar adversidades (algumas até de minha autoria!) se sintam encorajados a não desistir. E isso é uma vitória para todos nós. Porque podem inspirar outras pessoas, que podem seguir o vosso exemplo e fazer o mesmo. E isso pode mudar o mundo e torná-lo um lugar melhor para todos nós.

Uma vida cheia

1935
Nasce, com o nome Petr Wolfgang Löw, em Karlovy Vary, na antiga Checoslováquia.

1941
Com apenas seis anos, é deportado com a família para o campo de concentração de Theresienstadt, a norte de Praga. Nos anos seguintes, 26 membros da família morreram no Holocausto, incluindo o pai.

1945
Libertação do campo de concentração de Theresienstadt pelo Exército Vermelho.

1948
Emigra, com a mãe, para os EUA.

1949
Passa a viver no Canadá.

1958
Muda o nome para Lev, versão hebraica do apelido europeu Low. “Para o meu primeiro nome, escolhi o de um guerreiro da Bíblia, Gidon”

1959
Muda-se para Israel e começa a viver e trabalhar no Kibutz Hazorea, no Vale de Jezreel.

1960
Alista-se nas Forças Armadas de Israel, tendo participado na Guerra dos Seis Dias, em 1967

1985
Conta, pela primeira vez, a sua história a um grupo de estudantes. Ao ser identificado como sobrevivente do Holocausto, começa a receber convites para falar nas escolas

2017
Conhece a atual companheira, Julie Gray, a quem pede que escreva em livro a história da sua vida

2021
Começa a publicar vídeos, no TikTok, sobre o Holocausto e a condenar o antissemitismo, em que rapidamente ganhou mais de meio milhão de seguidores.

Todos sabemos que as generalizações são injustas. Mesmo no futebol, na equipa que jogou mal e desinteressada, há sempre quem se tenha esforçado e dado o seu melhor.

Vem isto a propósito do debate sobre a moção de confiança. As críticas ao que se passou no debate sobre a moção de confiança na Assembleia da República, sem especificar quem fez “triste figura“, quem ensaiou manobras e truques, são um ataque generalista infundado à democracia. Jogos de sombras, falsas vontades de negociar, manobras e malabarismos de bastidores e muito mais coisas que comentadores descortinaram são críticas injustas se atribuídas em geral, a todo o plenário. Serão adequadas se dirigidas aos grupos parlamentares da AD e ao Governo, mas desadequadas se atribuídas genericamente a todos os protagonistas da Assembleia.

Não se trata, aqui, de discutir a qualidade dos argumentos do Governo ou dos partidos – essa é uma questão já largamente debatida –, mas tão só recusar a crítica generalizada a um órgão central da democracia. Sim, já houve sessões e incidentes pouco recomendáveis no Parlamento, em que deputados de várias bancadas travaram discussões acesas, com argumentos descabidos na tentativa de “salvarem a prata da casa”. Discussões tão acaloradas que levaram um ministro a pôr dois dedos na testa simulando chifres, um primeiro-ministro a gritar que “manso é a tua tia, pá”, ou um deputado que mandou outro para tão longe que me abstenho aqui de escrever o destino. Na Biografia de Jorge Sampaio, José Pedro Castanheira recorda peripécias do debate iniciado na manhã de 21 de abril de 1988 e que só terminaria às 9h55 do dia seguinte. A maioria absoluta de Cavaco Silva impôs o prolongamento dos trabalhos e a votação mecânica dos diferentes pontos do regulamento da Assembleia. Todos os partidos da oposição, em protesto, decidiram deixar apenas um ou dois dos seus parlamentares na sala. A permanência dos 126 sociais-democratas garantia o quórum necessário, e iam dizendo sim a todos os pontos, apresentados, sem qualquer debate. O jornalista parlamentar Daniel Reis escreveu na altura que os eleitos pelo PSD “nem sequer” liam os artigos do regimento. O PSD “só votava, votava, votava” Jorge Sampaio haveria de referir-se a este episódio como “Laranja Mecânica”, invocando o violento filme de Stanley Kubrick.

Naqueles tempos, porém, ainda não estava na moda atacar o Parlamento e a memória é curta.

Nada de tão dramático se passou no passado dia 11. O que houve, foi um partido e um governo que tentaram resolver questões de Estado – como evitar a queda do Governo – numa negociação secreta a dois. O debate esteve longe de atingir o calor de outros momentos e até os mais

truculentos se mantiveram, inesperadamente, no domínio do razoável. As manobras e truques, as negociações clandestinas foram recusadas e tudo acabou como era previsível que acontecesse.

Houve conversa de surdos, sim, porque as posições eram conhecidas à partida. Não havia conceitos, ideias ou projetos para debater, mas um problema de transparência e de ética pessoal. As oposições já tinham avisado que não fariam a vontade ao Governo e o Governo insistia em não fazer a vontade às oposições,

Na origem de todo este processo está uma “empresa familiar” destinada a gerir propriedades da família, como Luís Montenegro começou por a apresentar. Empresa que veio a revelar-se ser uma sociedade muito diferente daquela que era suposto apenas administrar património familiar. O que começou por um pífio ataque a uma alegada atividade imobiliária, forçadamente suscitado pela nova lei dos solos, acabou por transformar-se num empreendimento de vulto.

Agora, a oposição quer saber com quem, direta ou indiretamente, negociou o primeiro-ministro, como se justificam os valores cobrados, quem trabalha na consultora e se houve procuradoria ilícita. Vai longa a lista de dúvidas e suspeições. Está gasta a crítica de que Luís Montenegro devia ter-se explicado mais cedo. Ele bem sabe que não há segunda oportunidade para dar uma boa primeira explicação. Não foi por o ignorar que quis silenciar o caso. Agora, é tudo ou nada.

Só a estratégia do Governo e da AD poderá ter dado origem às críticas que se ouviram. Porém, raramente os ataques de muitos comentadores ao Parlamento tiveram destinatário.

Disto mesmo se ocupa Pacheco Pereira no seu artigo semanal no “Público”, ao escrever que “a herança maldita [do salazarismo] está cá e basta haver um momento de maior confronto (…) e logo uma onda de indignação se levanta”. Continua: “Bate-se no peito com a vergonha da negociação, a barganha, que aconteceu no plenário(…) E depois? Qual é o problema de, no meio de uma crise política, haver este tipo de confrontos, truques e coreografias?” Responsabilizando o que se vai dizendo na Comunicação Social, Pacheco Pereira diz haver “uma incompreensão profunda do que é uma democracia na sua natural imperfeição. É também por ser imperfeita que é democracia”

Quando se vive uma época em que as democracias estão ameaçadas por extremismos de direita, apoucar os órgãos do regime é dar armas a quem não gosta de debates, de diálogo e prefere um líder forte ao confronto de opiniões. Os parlamentos são, inevitavelmente, locais de discórdia. Ainda bem que os há e que as há.

A democracia e os seus órgãos precisam de ser prestigiados e não de críticas indefinidas. Não “é tudo farelo do mesmo saco”, como costumava dizer Jerónimo de Sousa.

O resultado está à vista nas redes. Circulam boletins de voto em que os candidatos às próximas legislativas são os protagonistas dos Marretas, em que se diz que o governo foi derrubado por quem, no passado, não se deixou sujeitar a comissões, e que vamos à escola mais vezes, para votar, do que quando tínhamos às aulas. Há dias, na RTP, um prestigiado cientista, agora convertido ao mundo rural e criador de burros, dizia querer aumentar a burricada para … fazer um parlamento. Onde já chegámos!

Menosprezando sistematicamente a classe politica não se conseguem melhores líderes. Para recorrer aos aforismos do ex-líder do PCP, corremos o risco de “saltar da frigideira para as chamas”.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Os distritos de Setúbal, Beja e Faro vão estar sob aviso amarelo a partir das 15 horas deste domingo, 16, devido a chuva, “por vezes forte”, causada pela depressão Laurence. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), o mesmo alerta estende-se, após as 18 horas, às regiões de Lisboa e Évora, até atingir, a partir das 21 horas, os distritos de Leiria, Santarém e Portalegre.

Com exceção de Lisboa e Setúbal, onde as condições meteorológicas acalmam por volta da meia-noite, nos restantes seis distritos a chuva vai manter-se mais persistente até às três da madrugada, já segunda-feira, portanto.

De acordo com as previsões do IPMA, o tempo chuvoso, que pode ser acompanhado de trovoada, voltará depois às primeiras horas da manhã de segunda-feira, com todos os já referidos distritos outra vez sob aviso amarelo, a que se juntam Coimbra e Castelo Branco, até ao final do dia.

Entre as 18 horas de segunda-feira e as seis da manhã de terça-feira, Lisboa, Setúbal, Beja e Faro também estarão sob aviso laranja, por causa da agitação marítima, com as ondas a poderem atingir os 11 metros de altura máxima.

Palavras-chave:

Com a avó materna doente com demência, Hope Woodard voltou à zona rural do Tennessee, nos Estados Unidos da América, onde cresceu, para passar algum tempo com ela. Nessa visita, percebeu que a avó continuava a enviar mensagens de texto para o seu marido, mas ficava irritada quando ele não respondia, sem conseguir lembrar-se de que o marido tinha morrido.

“A minha mãe tentou ajudar a minha avó, mas a resposta veio em gritos: ‘Não preciso de ninguém para cuidar de mim, exceto de um homem.’” Ao mesmo tempo, a comediante de 28 anos, estava a recuperar de uma relação com um rapaz que conheceu no Hinge, aplicação de encontros, e que morava em Londres. Preocupava-a que os seus comportamentos a levassem pelo mesmo caminho da matriarca.

Estava sempre a verificar as mensagens no telemóvel, mas ciente de que ele nunca iria importar-se com ela. “Venho de uma longa linhagem de mulheres que nunca conseguiram viver sem homens. Estou a ser um fantasma de um homem e a minha avó do seu marido literalmente morto. Pensei: ‘Tenho de parar o ciclo’”, revelou à Cosmopolitan.

Este foi o gatilho de que Hope Woodard precisava para decidir fazer uma pausa. Durante um ano, comprometeu-se a não espiolhar as aplicações de encontros, desativando-as, a não sair com homens recém-conhecidos, nem com ex-namorados, abdicando de afetos e de relações amorosas. “A troca de afetividade e o apoio emocional de pessoas próximas, inclusive relações de namoro, são importantes para o bem-estar e o desenvolvimento emocional. Aplica-se a todas as relações próximas ao longo da vida”, lembra Patrícia Pascoal, psicóloga clínica e professora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e na Universidade Lusófona.

Os 12 meses seguintes seriam de abstinência de romance, namoro e relações sexuais, investindo antes em amizades e no seu novo espetáculo de stand-up comedy, em que fala de fazer reset aos padrões que até agora a tinham prejudicado, incluindo os que foram transmitidos de geração em geração. Mas terá sido “o tempo que anteriormente era gasto em aplicações de encontros, por exemplo, diretamente transferido para incrementar a qualidade das relações? Não sabemos”, responde a psicóloga clínica.

No Purgatory, palco noturno no bairro de Bushwick, em Brooklyn, Nova Iorque, Hope Woodard conseguiu juntar uma “grupeta” abaixo dos trinta, jovens nascidos entre 1997 e 2010, ávidos por a ouvirem numa espécie de culto feminino, aumentando a legião de mais de 600 mil seguidores no TikTok e no Instagram, sob o nome “justhopinalong”.

Hope Woodard considera-se uma pessoa positiva em relação ao sexo, chegando a assumir: “Amo orgasmos femininos.” Mas quando olhou para trás e inventariou a sua vida amorosa, percebeu que, desde o jardim de infância, tinha sempre um namorado.

A expressão #boysober, batismo da irmã de Hope, pode ser confundida com celibato, mas é mais do que isso. É aprender a dizer “não” e a ter controlo sobre o corpo, a desintoxicar de maus relacionamentos. É nessas alturas que muitas destas mulheres, na sua maioria heterossexuais, percebem que as relações sexuais tidas e mantidas nos últimos anos nem sempre foram as desejáveis, ficaram aquém das suas expectativas e foram, na verdade, um desperdício de energia.

Mais do que ser uma hashtag para sexo e relacionamentos, pode, antes, ser vista e aplicada para classificar um tema da saúde mental.

Cultura sexual machista

Hope Woodard não é celibatária e odeia a palavra. “A palavra celibatário, para mim, não transmite poder, dá um cinto de castidade. Dá cultura de pureza”, disse a comediante ao The Washington Post. Ela virou-se para o sexo e para o álcool para a ajudar a lidar com a separação da sua família. Um emaranhado de vergonha e distração que também caracterizou o sexo e as relações com homens – ambos se tornaram um vício.

“Sinto que ainda estamos a aprender a fazer sexo de formas mais saudáveis. Quero que as mulheres se sintam ‘empoderadas’ quando estão a namorar e a ter relações sexuais”, desejou Hope na Cosmopolitan.

“Se se sente esgotado pelo namoro, talvez seja o momento de fazer uma pausa. Concentre-se no que adora fazer e nas pessoas que importam na sua vida. Quando se sentir mais confiante, tende a começar a namorar de um ponto de partida diferente. Sabe o que está disposto a tolerar”, constata Natasha Silverman, conselheira de relacionamento da empresa britânica Relate, acrescentando que as pessoas costumam usar o namoro e o sexo “compulsivamente, ou para entorpecer sentimentos negativos ou baixa autoestima”.

Esta reformulação da definição de celibato pela Geração Z não é sobre atribuir aos homens a culpa pelos horrores do namoro moderno, neste caso, sinónimo de relações iniciadas nas aplicações de encontros.

Estes 365 dias de abstinência irão ajudar as mulheres a aprender a escolher melhor, consoante as características físicas primeiro, comportamentais em segundo. É reaprender a perder menos tempo a deslizar o dedo nessas apps, a enviar e a receber mensagens evasivas, fazendo uma purga a tudo o que é supérfluo e prejudicial.

É complicado quando muitos encontros giram em torno da hook-up culture, a cultura de encontros sexuais casuais.

Para Louise Perry, autora do livro O Caso Contra a Revolução Sexual, “a influência e a disponibilidade da pornografia tiveram um efeito realmente destrutivo na cultura sexual”. Segundo as suas pesquisas, “a maioria das mulheres não tira muito proveito do sexo casual. O problema é que, como a nossa cultura sexual é orientada para um estilo de sexualidade mais masculino, muitas jovens mulheres, em particular, não se sentem capazes de exigir algum tipo de compromisso aos parceiros. Um número crescente está mesmo a optar por sair completamente da cultura sexual.”

O desejo de parar de namorar – mesmo que seja apenas temporariamente – também reflete a mudança de atitude em relação ao amor e às relações. O casamento e o conceito de alma gémea estão cada vez mais ultrapassados, enquanto o autoconhecimento e a construção de amizades mais fortes assumem importância.

“Ainda que as pessoas solteiras sejam globalmente alvo de alguma discriminação, é importante perceber que a idade e a fase da vida têm aqui um papel determinante, pois há faixas etárias em que estar solteiro, ou não ter uma relação de compromisso, se associa ao investimento na estabilização ou na ascensão profissional. A qualidade de vida e o bem-estar das pessoas solteiras dependem da importância que dão às relações amorosas estáveis e à rede social que têm”, analisa Patrícia Pascoal.

De acordo com uma pesquisa da aplicação Bumble, quase metade (47%) dos jovens entre os 18 e os 24 anos no Reino Unido dizem que as amizades são mais importantes do que as relações românticas.

Sexo, mas mau

O namoro iniciado a partir das aplicações de encontros tornou-se propício à toxicidade. A troca online de fotografias sedutoras passou a ser terreno fértil para assédio, abuso e agressão. Lisa Portolan, professora convidada na Universidade de Tecnologia de Sydney, na Austrália, e autora de vários livros, incluindo Amor, Intimidade e Namoro Online: Como uma Pandemia Redefiniu as Relações Românticas, de 2020, liderou uma pesquisa sobre o uso de aplicações de encontros e intimidade, em que a maioria das mulheres assumiu que já tinha enfrentado violência facilitada pela tecnologia, incluindo comportamento abusivo, receber imagens sexuais não solicitadas e pedidos de fotografias da sua nudez, marcações de encontros com falsos interessados, agressores e perseguidores.

A expressão #boysober pode ser confundida com celibato, mas é mais do que isso. É aprender a dizer “não” e a ter controlo sobre o corpo, a desintoxicar de maus relacionamentos

Um dos benefícios do boy sober é dar às mulheres a oportunidade de refletir sobre o que realmente desejam para a sua intimidade. Também liberta espaço cerebral valioso. É hora de se concentrarem em si mesmas, nos seus gostos, passatempos e interesses. Criar espaço para reforçarem a autoestima, canalizar a energia, seja na carreira profissional, seja nas amizades.

“As apps são uma forma prática de explorar diferentes formas de relação e podem ser o primeiro passo para relações de compromisso. Mas pode, de facto, haver sofrimento associado à sensação de rejeição e, em alguns casos, incongruência nas expectativas”, alerta Patrícia Pascoal.

É, sem dúvida, um mundo onde a mulher ainda é dominada e enganada – encontrarem o mesmo homem em diversos portefólios online é recorrente. Hoje, os jovens não estão a usar tanto aplicações de encontros como Tinder, Hinge, Bumble ou Grindr, que perderam 594 mil utilizadores, 131 mil, 368 mil e 11 mil, respetivamente.

Em contrapartida, sobe a popularidade de plataformas que agregam pessoas com os mesmos interesses, como Strava (exercício físico, incluindo atividades indoor) e Letterboxd (cinema). Vence o conceito social first, com base na autenticidade. E na desintoxicação de certas masculinidades que ainda prevalecem

Ensaiando as palavras
O maestro Sérgio Peixoto coordena o coro de cinco elementos, enquanto ensaiam num espaço da Dona Ajuda, uma IPSS de Lisboa. Em baixo, vemos uma glosa, que serve como pauta dos gestos da Língua Gestual Portuguesa

A essência de um coro
Antes do Concerto de Reis, no Palácio Fronteira, em Lisboa, fazem-se as últimas afinações dos gestos. Em baixo, os cinco elementos do coro, Cláudia Dias, Patrícia Carmo, António Cabral, Débora Carmo e Carlos Gonçalves, mostram-nos os ingredientes da sua arte

Trabalhando para o público
Sofia Figueiredo, intérprete de Língua Gestual Portuguesa, acompanha o coro e vemo-la aqui durante o Concerto de Reis, no Palácio Fronteira. Em baixo, já se ensaia para o concerto de tributo aos Coldplay que teve lugar no Coliseu dos Recreios, a 13 de fevereiro

Começar o ano
A Sala das Batalhas do Palácio Fronteira encheu-se para o Concerto de Reis, no dia 11 de janeiro. Um mês depois, um dos pontos altos do percurso do coro, no tributo aos Coldplay, no Coliseu dos Recreios

“I’m Falling in Love”
Coliseu dos Recreios, 13 de fevereiro. No espetáculo dos Vocal Emotion de tributo aos Coldplay, esta foi a canção interpretada pelo coro Mãos que Cantam. O videoclipe original do tema inclui a Língua Gestual Inglesa

Manter a pressão sobre a Rússia e lançar as bases de uma coligação militar para a manutenção da paz na Ucrânia foram as duas ideias mais fortes saídas do encontro online promovido, neste sábado, 15, pelo primeiro-ministro britânico, Keir Starmer.

Com a presença da NATO, da União Europeia (UE), do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia, além de vários líderes de países europeus, entre os quais Luís Montenegro, Volodymyr Zelensky ouviu mais de duas dezenas de interlocutores vincarem a necessidade de empurrar Vladimir Putin para o acordo de cessar-fogo gizado entre EUA e Ucrânia.

“A Rússia deve agora demonstrar a sua disponibilidade para apoiar um cessar-fogo que conduza a uma paz justa e duradoura”, afirmou a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, nas redes sociais, agradecendo a Starmer pela iniciativa.

António Costa, que participou na videoconferência desde Lisboa, reforçou esta posição da UE. “Agora, a Rússia precisa de mostrar real vontade política para acabar com a guerra”, escreveu o Presidente do Conselho Europeu, na rede social X, sublinhado a intenção de “fortalecer” a Ucrânia na mesa das negociações, tendo em vista o fim do conflito, “através de apoio político, financeiro e militar”.

Segundo adiantou Keir Starmer, o grupo decidiu avançar para uma fase operacional, tendo ficado agendada para a próxima semana, em Londres, uma reunião entre representantes das forças armadas dos países que se mostraram disponíveis para integrarem um contingente de manutenção de paz no terreno, como é o caso de Reino Unido, França ou Austrália. É o momento de esta “Coligação de Interessados”, como lhe chamou, “estabelecer planos fortes e sólidos para apoiar um acordo de paz e garantir a futura segurança da Ucrânia”, considera o chefe do Governo britânico.

Na rede social X, Zelensky instou à criação o quanto antes daquilo que apelida de “base das futuras Forças Armadas da Europa”, de modo a alcançar uma paz “mais segura” e duradoura, “com os americanos como apoio”.

O chanceler alemão ainda em exercício, Olaf Scholz, também presente no encontro à distância, insistiu na ideia de que “cabe agora à Rússia pôr termo aos seus ataques diários às cidades ucranianas e às infraestruturas civis e enveredar finalmente pelo caminho de uma paz duradoura e justa”, deixando a garantia de que a Alemanha continuará firme no apoio a Kiev até o objetivo ser concretizado.

Queijo camembert, meias mal cheirosas, coelho morto, excrementos de cão. Ernestino Maravalhas, 64 anos, tem seguido as melhores práticas odoríficas internacionais para atrair a borboleta-imperador (Apatura iris), mas não há meio de a avistar. As incursões na Mata de Albergaria, no Gerês, última localização conhecida em Portugal, não resultaram, assim como as mais recentes buscas junto de salgueiros velhos, sugeridas por um especialista espanhol, se revelaram infrutíferas, lá mais para o lado de Montalegre, na região do Barroso.

“Há uma ânsia muito grande em encontrá-la, porque poderá vir a ser a primeira borboleta declarada extinta no nosso país”, admite o autor do livro Borboletas de Portugal, editado em 2003 como o primeiro guia de campo sobre estes insetos de rara beleza.

Ernestino acredita ter visto uma Apatura iris nos cada vez mais longínquos anos 80, mas ficou na dúvida se não seria a “irmã” borboleta-imperador-pequena (Apatura ilia), bem mais comum. Isso significa que o último registo confirmado em Portugal tem quase 100 anos. Ainda assim, inclina-se para a hipótese de ninguém a ter procurado no sítio certo. “Portanto, a nível nacional, não há extinções detetadas”, garante este autodidata que, desde 1977, identifica e cataloga diferentes espécies de borboletas presentes no País. “Agora, no final dos anos 70 e no início dos 80, havia uma riqueza em abundância muito maior.”

A perceção no terreno deste natural do Porto, que se mudou durante a pandemia para Boticas, em Vila Real, reflete uma tendência que parece estar a tornar-se global. Nos Estados Unidos da América, uma meta-análise com dados de 12,6 milhões de borboletas, distribuídos por 35 programas de monitorização, concluiu que, entre 2000 e 2020, o país perdeu 22% do total de indivíduos. Divulgado na revista Science, na passada quinta-feira, 6, o estudo revela ainda que, das 554 espécies avaliadas, 107 perderam mais de metade das populações, enquanto apenas 3% se tornaram mais numerosas.

Na Europa, o quadro não é mais animador. Em países que estudam o fenómeno há décadas, a tendência decrescente é ainda mais flagrante. Desde 1976, no Reino Unido, as borboletas caíram para cerca de metade, embora se mantenham 92% das espécies. Nos Países Baixos, 20% das espécies desapareceram desde 1990, com redução de 50% do universo total.

Os grandes inimigos

“Não tenho dúvida de que as populações estão a diminuir”, atesta a bióloga Patrícia Garcia-Pereira, fundadora e presidente do Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal, ainda sem poder avançar com dados detalhados sobre o panorama nacional. Por cá, a contagem de borboletas de forma sistematizada só arrancou há cinco anos e será preciso aguardar outros tantos para ser legítimo estabelecer pontos de comparação, justifica.

A também investigadora externa do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa aponta a perda dos habitats como a principal causa para o declínio, lembrando que “só temos borboletas se tivermos as plantas que as alimentam em estados imaturos, ou seja, enquanto lagartas, e uma vez que cada lagarta só come determinado tipo de plantas, há uma relação com a diversidade da flora existente num certo local”. Reciprocamente, sem insetos, como as abelhas e também as borboletas, polinizadoras de primeira linha, não há renovação dessa flora, “a base de toda a cadeia alimentar do ecossistema”.

Os “inimigos” desses habitats naturais estão bem identificados. Vão desde a industrialização à urbanização das cidades, passando pela agricultura intensiva e o uso de pesticidas, a que se juntam as alterações climáticas. “E agora temos os parques solares”, adiciona Patrícia Garcia-Pereira, que diz ser possível um maior equilíbrio com a Natureza.

Paleta Acobreada-ibérica (Lycaena bleusei); grande-pavão-noturno (Saturnia pyri); nêspera-dos-lameiros (Coenonympha glycerion); fritilária-do-sul (Melitaea aetherie), em cima; cauda-de-andorinha (Papilio machaon); elefante-pequeno-noturno (Deilephila porcellus); apatura-pequena (Apatura ilia); maculínea (Phengaris alcon), em baixo

Face a tantos Golias, a presença de borboletas tornou-se um indicador de biodiversidade e do estado do ambiente na União Europeia, por exemplo “para informar os decisores políticos e fundamentar políticas como a Estratégia Europeia para a Biodiversidade, a Política Agrícola Comum ou a Lei do Restauro da Natureza”, nota Helena Ceia, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

Interessado em estudar a evolução das borboletas em Portugal, em 2019, o ICNF aliou-se à associação Tagis para cobrir o máximo de território nos chamados transectos, percursos fixos de cerca de um quilómetro, a que qualquer pessoa pode aderir, com o propósito de contar e identificar estes seres voadores coloridos.

Sob a coordenação da Tagis, a ciência-cidadã, composta por mais de 100 voluntários, une-se a dezenas técnicos do ICNF para tirarem o retrato ao País em cerca de uma centena de percursos, idealmente uma vez por semana e, no mínimo, dez vezes por ano, alinhados com as regras de monitorização internacionais. Excluindo as expedições, Patrícia Garcia-Pereira segue sempre o seu trilho perto de casa, em Avis, até à Barragem do Maranhão.

As alterações climáticas

Contam-se 139 espécies de borboletas diurnas em Portugal e mais de 2 500 noturnas, ou “noturídeas”, como Ernestino Maravalhas gosta de as apelidar. Muitas fontes resumem-nas a traças, o que está longe de ser verdade. Há tão ou mais bonitas a voar à noite, como se pode observar por alguns dos exemplares que ilustram estas páginas. E são também muito eficazes enquanto agentes polinizadores. O menino que aos 8 anos se deixou “maravilhar por uma borboleta-cauda-de-andorinha”, em Matosinhos, tem agora armadilhas à porta de casa, em Boticas, para apanhar e fotografar as que se movem pela calada da noite.

Reformado do setor dos seguros, Ernestino anda, entre outros projetos relacionados com a fauna e a flora local, mais ocupado com a maculínea (Phengaris alcon), por ele considerada “a borboleta mais ameaçada que existe em Portugal”. Numa colaboração com o Laboratório de Ecologia Fluvial e Terrestre da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, querem restabelecer-lhe o habitat, na Bacia Hidrográfica do Tâmega, mas não está fácil.

Apesar de os ecossistemas de várias localizações conhecidas não mostrarem alterações, elas estão a desaparecer. “É esta mudança climática”, atira Ernestino Maravalhas. O pastoreio do gado bovino fora de época “estraga os matos húmidos onde a maculínea se desenvolve”, os desvios de água de barragens e afins só atrapalham e “choveu pouco nos últimos três anos”.

Já a acobreada-ibérica (Lycaena bleusei) é agora presença assídua em terras mais altas, para escapar à subida da temperatura, coisa nunca vista no passado por aquelas bandas do Barroso. E quanto à borboleta-imperador (Apatura iris), tão gulosa por estranhos odores, Ernestino deixa a promessa: “Este ano, vamos lá voltar.”

Palavras-chave:

Uma cremação não termina em cinzas. No fim, restam apenas os resíduos dos ossos calcificados que seguem para a trituração. O processo completo demora cerca de uma hora e meia, em que tenho de estar atenta à câmara de combustão, verificar se o queimador está a funcionar, controlar as altas temperaturas, acima de mil graus centígrados, através de um mecanismo com botões.

O meu irmão também é coveiro, mas nem posso tirar grandes dúvidas com ele, porque este forno não é igual ao do cemitério onde ele trabalha. Lá têm um computador e nós temos um “dinossauro”.

Todos os dias realizam-se vários enterros e entre três e cinco cremações, e quando não estou no crematório faço as limpezas do cemitério, com sopradores e roçadoras ou a varrer as ruas. É um trabalho muito físico. Embora não tenha de o fazer, sei a base para escavar uma sepultura, mas nas cremações também tenho de ter arcaboiço para ajudar a carregar o caixão para a transportadora – ainda ontem o caixão pesava 168 quilos.

Depois de 18 anos como cozinheira, quis mudar de ramo por questões financeiras. Quando me inscrevi em vários concursos para entrar na Câmara Municipal de Lisboa, este, para assistente operacional coveira, foi o primeiro e o mais rápido a aceitar-me. Não hesitei, o meu irmão também me incentivou, disse-me que não era nada daquilo que se pensa, não era estranho e era tranquilo. O meu marido, que é operador de call center, só me perguntou se eu tinha a certeza da mudança. E as minhas filhas [de 19 e 21 anos] acham imensa piada e dizem aos amigos, com orgulho: “Olha que a minha mãe é coveira!”

As pessoas ficam um bocado assustadas com a palavra cemitério, mas não era o meu caso. Não é a mesma coisa que trabalhar num jardim. No inverno, temos roupa para andar cá fora ao frio e à chuva, no verão, com o calor, é horroroso. No entanto, os turistas vêm aqui passear, os vizinhos vêm passear os cãezinhos e trazem as crianças como se fosse realmente um jardim.

“O cheiro foi o maior choque inicial”

Esta profissão foi totalmente nova para mim. Tive de aprender a criar mais empatia para quando estou a acompanhar os funerais. Tenho de lidar com os familiares e eles têm muitas dúvidas sobre como é a cremação. Há muitas pessoas que ainda acham que nós abrimos o caixão e tiramos os corpos lá de dentro, porque desconfiam da profissão.

Não sei dizer de onde é que vem o preconceito, mas que há, há. Os colegas diziam: “Mais uma mulher para aqui? Precisávamos era de um homem com força.” Entrei com confiança, percebo que isto é um mundo de homens, mas vim aqui para trabalhar e ponto final.

Cada vez que digo sou coveira, ouço: “Credo!” É o mais normal que me dizem sempre. Credo porquê? É um trabalho que tem de ser feito e eu faço. Infelizmente, em algumas cremações, temos pessoas que estão ali a olhar para nós de lado, como se tivessem nojo. Mas sou eu que estou a tratar do seu ente querido, para lhes entregar as cinzas.

Aprendi a ser muito mais tranquila. A maior diferença que senti quando troquei a cozinha do restaurante pelo cemitério foi a calma e o silêncio. Ganhei qualidade de vida, menos horas de trabalho. Na cozinha eram 12 horas, a sair de noite tarde e a entrar de manhã cedo; aqui são sete, também com turnos, das sete às 15 ou das 11 à 19 horas, mas o ordenado melhorou, ganhei estabilidade financeira.

Em funerais grandes, com mais gente, a herança é o assunto que vem logo à baila. Também já tive de fechar as portas do crematório para impedir uma senhora que queria, à força, entrar. Dizia que era “para ver o marido a arder nas chamas do inferno”

O cemitério tem cheiros diferentes. Imagine um jazigo cheio com corpos muito antigos, ainda dos finais do século XIX, e agora a família quer ter algum espaço para os novos mortos. É preciso fazer a exumação, abrir a sepultura e retirar os restos – é um cheiro que não sei descrever, não se parece com nada… Não é enxofre, é mais parecido com ovos podres, mas 30 vezes pior. Ao início, parecia que se entranhava na roupa e na pele, mas já não me faz diferença, já é tolerável.

O cheiro foi o maior choque inicial, pior do que o lado visual, como ter de espreitar para dentro do forno para ver em que fase vai a cremação. É muito mais impressionante do que corpos carbonizados que vemos nos filmes. A única situação que me faz ir para casa muito em baixo são os funerais de bebés. Infelizmente, já fiz quatro cremações de bebés e ver a dor dos pais é surreal. O sofrimento daquelas pessoas é muito pior do que o dos outros funerais. Nessas alturas, o meu pensamento é que Deus é injusto. E o pior é ter de explicar aos pais que a cremação de um bebé não dá cinzas, porque é um corpo muito pequenino, sem ossos, só com cartilagens.

Temos de criar mecanismos de defesa. Ganhamos uma armadura, mas temos de ter força de vontade para criar esse escudo, para ser forte emocionalmente. Às vezes, desligo um pouco e penso em coisas práticas da minha vida, como o que vou fazer para o jantar ou se as minhas filhas vão estar em casa, para me distrair daquele sofrimento, porque não posso estar sempre emocionada.

Também já apanhei grandes sustos, quando os meus colegas saltam do meio dos jazigos, e já assisti a episódios insólitos que nos dão muita vontade de rir. Num funeral com apenas três pessoas a assistir, a irmã, o cunhado e o filho do morto, entrou um senhor aos gritos pelo cemitério adentro a dizer que o falecido era o seu marido. Os familiares sabiam, mas não o queriam por perto. Foi num instante que marido e cunhado acabaram numa cena de pancadaria.

Em funerais grandes, com mais gente, a herança é o assunto que vem logo à baila. Também já tive de fechar as portas do crematório para impedir uma senhora que queria, à força, entrar. Dizia que era “para ver o marido a arder nas chamas do inferno” e outra avisou-me: “Você não tire os sapatinhos ao meu marido, são uns ténis Nike.”

Depoimento recolhido por Sónia Calheiros