Donald Trump. Salta de ultimato em ultimato. Tarifa aqui, tarifa ali. Até sobrar uma míngua do que dizia querer. Ou nunca quis. Mas fazia de conta. Credibilidade? Zero. Basta um finca-pé do ameaçado… e zás! Ou muda o prazo. Ou corta substancialmente.
Vai-se formando uma ideia. Clara. Ameaça os fracos. Teme os fortes. Humilhou Zelensky. Humilhou o presidente da África do Sul. Na Sala Oval. À vista de todos. Mas… caladinho com os líderes dos grandes. Alemanha. Reino Unido. Canadá. UE. E outros.
Quer ficar na História. Mas não pelas razões certas. Salão de baile na Casa Branca. Para centenas de pessoas. Só 200 milhões de dólares! Um investimento a saldos, quando comparado com as obras da FED. Que vão aos biliões! Trump gosta de bailar. De dar bailes!
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Para sempre, gerações atrás de gerações exclamarão: “Foi Trump que mandou fazer!”… “Foi Trump que construiu!”… “Foi Trump que gastou 200 milhões!» A propósito: não foi ele quem inventou um departamento para a eficiência financeira da Administração Federal? Para poupar triliões. Está no limbo. Sem Musk. Mas… a trabalhar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Tem tudo para ser a viagem de uma vida. Podermos embrenhar-nos no coração de um dos mais vibrantes pulmões do planeta, sem nunca deixar de desfrutar do conforto e da segurança na hospedagem e nos transportes, acompanhados por guias atentos e conhecedores, ao mesmo tempo que nos encontramos a curta distância de uma metrópole cosmopolita e alegre, como só as cidades brasileiras conseguem ser – é um privilégio e uma experiência inesquecível. Tudo isto bem no centro da Amazónia, a maior floresta tropical do mundo, e banhados pelo majestoso Amazonas e o seu maior afluente, o rio Negro. Um destino único, que agora se encontra mais perto, graças à reativação dos três voos semanais da TAP diretos a partir de Lisboa.
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Pulmão do mundo A Amazónia é a maior floresta tropical do mundo,localizada na bacia hidrográfica do rio Amazonas,na América do Sul. Abrange territórios de nove países:Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. A região é conhecida pela sua vasta biodiversidade e pela sua importância para o equilíbrio ambiental do planeta.Habitualmente chamada “pulmão do mundo”, cobre 6,74 milhões de quilómetros quadrados e esconde um infindável número de experiências apaixonantes.
Com os seus 6,74 milhões de quilómetros quadrados, a Amazónia estende-se na sua maior parte (60%) pelo Brasil, mas chega a mais oito países (Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa). A selva abrange maioritariamente o estado do Amazonas, mas ocupa também regiões de Acre, Amapá, Pará, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. Ao todo, quase metade do território brasileiro. Bem no centro deste ponto fulcral da biodiversidade e crucial para a manutenção do ciclo da água e a regulação climática globais, está Manaus, uma cidade de dois milhões de habitantes, cercada por floresta densa e pujante e dois dos maiores rios do mundo. Essa situação não a impediu, porém, de ser metrópole repleta de esplendor arquitetónico, patrocinado pelas riquezas proporcionadas pelos ciclos da borracha, que se extraía das árvores locais e dali seguia para todo o mundo. Chamavam-lhe nessa altura, até ao dealbar do século XX, a “Paris dos trópicos”, fruto da forte influência europeia que determinou a construção de alguns dos seus principais edifícios, que ainda hoje perduram, como é o caso do Teatro Amazonas, da Catedral Metropolitana, do Palácio Rio Negro e do Mercado Municipal, desenhado por Gustave Eiffel. Traços arquitetónicos também perfeitamente reconhecíveis em grande parte do centro histórico da capital amazonense, que fazem lembrar as zonas mais antigas de cidades como o Rio de Janeiro ou Salvador da Bahia.
Atualmente alimentada pela zona franca que dá guarida, a troco de gigantescas borlas fiscais, a inúmeras multinacionais da indústria e da tecnologia, é verdade que o centro e várias das outras atrações turísticas de Manaus poderiam estar mais limpos e conservados, mas esse problema é (infelizmente) comum à grande maioria das cidades brasileiras, e até sul-americanas em geral. Mas isso não lhe retira nem carisma nem charme. A boa disposição da população, a qualidade da oferta gastronómica e cultural, bem como o espírito festivo e musical dos manauaras tornam a estada na capital do estado do Amazonas uma agradável surpresa. Imperdível mesmo para aqueles cujo objetivo primordial da viagem seja o de se embrenharem na selva. À chegada, antes do regresso ou enquanto base permanente da estada, Manaus merece um ou dois dias de passeio atento. Há oferta hoteleira para todos os gostos e bolsas, museus, galerias de arte, livrarias, restaurantes e botecos que merecem mesmo uma visita (ver caixa).
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Igapó Na língua tupi, significa “floresta de raízes” ou “floresta inundada”, descrevendo as áreas de floresta tropical que são regularmente inundadas por rios ou lagos. Na bacia amazónica, os igapós podem ocupar, dependendo da época do ano e das chuvas, cerca de 2% da área total da floresta.
Entre lagos, igarapés e igapós
Para uma experiência realmente imersiva, existem inúmeras ofertas de hotéis e resorts nas margens do rio Negro, mesmo antes de este se juntar ao Amazonas (que nesta região responde também pelo nome de rio Solimões), num impressionante “encontro das águas”, fenómeno natural que, devido às diferenças de densidade, acidez e temperatura dos dois rios, os impede de se diluírem um no outro por mais de seis quilómetros. De toda a oferta disponível, o Uiara Amazon Resort, o único totalmente flutuante em toda a Amazónia, é a escolha ideal. Construída em cima de plataformas que acompanham a subida e a descida das águas de um lago abastecido por nascentes de água mineral, esta unidade hoteleira pioneira oferece uma experiência exclusiva de luxo e conforto em plena floresta. Com 92 quartos de design sofisticado, varandas com vista para o rio e serviço personalizado, proporciona aos hóspedes uma imersão completa na Natureza, sem abrir mão do requinte. O resort oferece transporte direto e personalizado desde Manaus, seja a partir do aeroporto ou dos hotéis do centro da cidade, para um embarcadouro privado e, daí, em lancha rápida até às águas plácidas do lago Salvador, assim chamado por ali ser, historicamente, o lugar onde as embarcações procuravam refúgio quando o banzeiro (a ondulação) do rio Negro desaconselhava a travessia. Ligado ao rio no pico da época das chuvas ou isolado no resto do ano, o lago do Uiara serve de porta de entrada perfeita para a magia da selva.
Sem sair o hotel, é possível avistar das janelas do quarto o imponente Caroço, jacaré com três metros de comprimento que domina o lago. Antes de adormecer, no escuro da varanda, pode escutar-se a impressionante “orquestra da floresta”, composta pelos milhares de sons proporcionados pelos animais e pela vegetação circundante. Sem precisar de ter pavor dos mosquitos, que ali não proliferam graças à acidez das águas do rio Negro, ainda que um bom repelente seja sempre aconselhado. Depois, dependendo da duração da estada, o resort oferece no preço da diária, que já inclui quatro refeições (pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar) de gastronomia local idealizadas por chefes contemporâneos, uma série de experiências imersivas. O cliente fará tantas quantas conseguir nos dias que ali permanecer. Desde assistir ao nascer do sol no rio até caminhadas curtas para aprender a atirar com arco e flecha e as técnicas de sobrevivência na selva, é possível procurar jacarés à noite no lago, dormir ao relento na floresta, andar de canoa ou partir de barco para ir ver o “encontro das águas”, ao largo de Manaus.
A experiência mais completa e inesquecível é aquela à qual chamam Amazónia Nativa. Nesse dia inteiro passado a bordo da lancha rápida do hotel ou numa canoa a motor conduzida por um habitante local, sempre acompanhados pelos extraordinariamente bem preparados guias, os hóspedes podem começar por nadar com botos-cor-de-rosa. Depois, dá-se a entrada no deslumbrante rio Ariaú, exemplo máximo daquilo a que os indígenas chamam igarapé (caminho das canoas em língua tupi), um curso de rio estreito que entra pela floresta adentro. Ao longo do trajeto, entre incursões nos igapós (rio com raízes, como os índios chamam às zonas de floresta alagadas na época das chuvas), é possível ver exemplares gigantes de árvores sumaúma, conhecidas como as rainhas da selva, com 300 anos de idade e um tronco que, na base, precisa de 20 homens para ser abraçado. Com sorte, consegue ouvir-se o potente grito dos guaribas, os macacos uivadores, e mais adiante, ter um encontro com os divertidos macacos-de-cheiro, que vêm à mão comer pedaços de banana. Atenção que também são capazes de levar os smartphones de quem não estiver atento.
Presidente Figueiredo A cerca de duas horas de Manaus, na estrada BR-174 que liga a capital do Amazonas à Venezuela, esta cidade de 25 mil habitantes é considerada a capital das cachoeiras deste estado, tendo catalogadas mais 150 quedas de água, às quais se juntam inúmeros lagos criados por nascentes naturais
Há, depois, tempo de pescar piranhas ao som dos uivos dos guaribas (parecem de onças…) enquanto se degusta uma cervejinha gelada, antes de rumar a uma das aldeias espalhadas à beira do rio. Aí, a comunidade local prepara irrepreensíveis patuscadas de tambaqui (ou pirarucu ou matrinxã ou outro exemplar de peixe do rio) assado na folha de bananeira. Uma experiência única, por se perceber que tem muito pouco de artificial e que estamos perante famílias que ali vivem o ano inteiro. Um sentimento que acaba por se sentir também, mais tarde, quando chega a hora de visitar a comunidade Cipiá, grupo de índios Tukanos liderado pelo chefe Thoalaman (também responde por Domingos). É evidente, pelo uso de telemóveis e terminais de pagamento com cartões de crédito, que estamos já muito longe de conhecer os índios originários, mas os rituais de receção e a visita à aldeia permitem ter uma ideia aproximada de como terá sido, no passado, a vida daqueles povos.
Todas estas experiências podem, obviamente, ser realizadas a partir de outros resorts ou até mesmo de Manaus, havendo diversas agências a oferecer pacotes e programas personalizados, sempre acompanhados por guias experientes e conhecedores (ver caixa). A oferta completa do Uiara acaba, contudo, por ser uma grande vantagem para os viajantes.
Capital das cachoeiras
Não tão perto do majestoso Amazonas ou do rio Negro, mas igualmente uma experiência a não perder nesta região é a visita a Presidente Figueiredo, uma cidade com cerca de 30 mil habitantes, a duas horas de distância de Manaus, construída já no século XX no meio da floresta, à beira da BR-174, a estrada que liga os estados brasileiros de Mato Grosso, Rondônia, Amazonas e Roraima à Venezuela. A localidade é conhecida como a capital estadual das cachoeiras, em virtude das 150 quedas de água catalogadas na região. Para ali chegar, é possível contratar os serviços de agências (ver caixa) que fazem o transporte de e para Manaus e disponibilizam guias para acompanhar toda a experiência, que contempla, da parte da manhã, uma caminhada de duas horas e meia pela floresta para visitar as grutas de Maragua e as suas deliciosas quedas de água, e, da parte da tarde, a hipótese de nos banharmos no Fervedouro e na lagoa Azul, duas nascentes de águas cristalinas em plena selva, ou na imponente cascata de Iracema. Apenas alguns (e impressionantes) exemplos da panóplia de atividades possíveis em Presidente Figueiredo.
Mercado Municipal Desenhado por Gustave Eiffel, o principal mercado da capital do estado do Amazonas é não só um expoente da época em que a cidade era conhecida como a Paris dos trópicos, mas também o lugar ideal para conhecer a impressionante diversidade de produtos alimentares que a floresta tem para oferecer.
Gastronomia única
Para lá do esplendor da Natureza em estado puro, entre as maiores surpresas da Amazónia está, sem qualquer sombra de dúvida, a gastronomia. Não só pela quantidade e pela qualidade surpreendentes da oferta, mas também pelo alto padrão que é possível encontrar na restauração que, sobretudo Manaus, tem para oferecer. O primeiro aspeto que salta imediatamente à vista é a omnipresença da mandioca na dieta do amazonense. Não se trata do tubérculo que facilmente se encontra já em Portugal, mas sim de uma variedade à qual chamam, naquelas bandas, mandioca brava, que pode ser tóxica, dada a alta concentração de ácido cianídrico. Apesar de venenosa, devidamente manuseada, transforma-se num alimento único, dele sendo possível tirar não só a farinha (ali chamada Uarini, mais grossa do que a farofa tradicional), mas também o tucupi (um líquido ácido e cítrico usado como condimento) e a goma, que são a base de um dos pratos mais típicos do Norte do Brasil, comido a qualquer hora do dia: o tacacá, um caldo com camarão de sabor requintado. Outro alimento diariamente presente na mesa ou na lancheira de um manauara é o x-caboquinho, uma sanduíche em pão francês composta de banana-da-terra frita, queijo e tucumã, um dos inúmeros frutos locais.
Rua Bernardo Ramos É uma das primeiras ruas de Manaus e a primeira a ser urbanizada naquela que viria a transformar-se na capital do estado do Amazonas, que, atualmente, alberga dois milhões de habitantes. Em tempos alimentada pelos ciclos da árvore–da-borracha, Manaus vive agora impulsionada pela zona franca, que alberga um significativo polo industrial.
Tendo por base estes ingredientes, aos quais se junta o jambu, uma planta amazónica cujas flores e folhas causam dormência na boca e que é usada em caldos, pratos salgados e bebidas (a obrigatória caipirinha, por exemplo), a gastronomia local ganha asas e permite enriquecer de sabor, sobretudo, os inúmeros peixes que é possível pescar nas águas do Amazonas e do rio Negro. Os reis são, como já foi dito, o tambaqui, o matrinxã e o pirarucu, este último com a particularidade de, em determinados cortes, saber a porco. Se a isto juntarmos a luxuriante panóplia de frutos como açaí, cupuaçu, taperebá, bacaba ou bacuri, o leque de sucos, gelados e demais sobremesas torna-se infinito. Tudo isto cada vez mais bem apresentado nos vários restaurantes de Manaus que conseguem elevar a qualidade da cozinha tradicional ao mais alto nível contemporâneo (ver caixa).
Aqui juntamos, enfim, argumentos que julgamos suficientes para que o leitor possa começar a planear a sua viagem de sonho à Amazónia, sendo certo que a melhor altura do ano para o fazer será a partir de meados de junho, quando a época das chuvas está a terminar e em que, portanto, as águas dos rios estão mais altas. A partir de julho, os rios começam a recuar durante o verão amazónico (por lá só existem duas estações, uma quente e chuvosa e a outra muito quente e húmida), com o final de agosto e o mês de setembro a apresentarem temperaturas extremamente altas. Ainda assim, nada que não se consiga amenizar com uma visita ao Bar do Armando, em pleno Largo de São Sebastião (em frente ao Teatro da Amazónia), fundado por um português de Arganil e frequentado pelos intelectuais e boémios da cidade, onde se pode beber umas refrescantes cervejinhas e caipirinhas, enquanto se escuta música ao vivo. Imperdível!
Comandado pelo chefe Felipe Schaedler, com delegação também em São Paulo, este é provavelmente o melhor restaurante de Manaus, onde é possível degustar algumas versões contemporâneas e surpreendentes da gastronomia amazonense. Impossível visitar este espaço sem experimentar a moquecada de barriga de pirarucu ou o tambaqui com crosta de castanha e banana assada. Mas nesta casa tudo é excecional.
A chefe Débora Shornik deixou a sua São Paulo natal para abrir, bem no centro de Manaus, no número 495 da Rua 10 de Julho, em frente ao Teatro da Amazónia, um dos 50 melhores restaurantes do mundo. Os bolinhos de tambaqui, o carpaccio de pirarucu com tucupi e o matrinxã recheado para duas ou três pessoas são de comer rezando, sobretudo quando acompanhados de caipirinha amazónica, aromatizada com jambu.
É o primeiro restaurante indígena de Manaus. Situado na zona histórica da cidade, naquela que foi a sua primeira rua, junto à antiga prefeitura, esta casa chefiada por Clarinda Maria Ramos une as gastronomias das etnias Tukano, do alto rio Negro, e Sateré-Mawé, do baixo Amazonas, e oferece combinações intensas entre peixes, caldos apimentados e formigas como acompanhamento ou delicatessen.
Vários dias seguidos a comer, sobretudo, peixe pode pedir uma alternativa. Para apreciadores de carne, este é o sítio a procurar para experimentar um tipo de churrasco diferente do habitual. A picanha ou a costelinha (ou ambas) no bafo são de comer e chorar por mais.
Agência especializada em tours personalizados em Manaus e na floresta. Oferece uma vasta gama de passeios que misturam a gastronomia, a arte e a vida na cidade, bem como a ciência e a vivência na floresta.
Oferece uma panóplia de pacotes que vão de um a dez dias na floresta amazónica. Entre a vivência dos rituais indígenas, passando pela aventura da subida às árvores ou do mergulho nas cachoeiras e nascentes de Presidente Figueiredo, esta agência com mais 25 anos de experiência é uma excelente alternativa para quem não quiser ficar preso num só resort.
Empreendimento inovador que alia turismo de alto padrão, respeito ao meio ambiente e valorização da cultura local. Único hotel 100% flutuante da Amazónia, fica situado num lago adjacente ao rio Negro, na margem oposta de Manaus. Além de pensão completa (bebidas alcoólicas à parte), oferece, incluído no preço da diária, uma série de atividades e experiências na floresta, acompanhadase monitorizadas por experientes guias turísticos e florestais. E até se pode tomar banho numa zonado lago onde, de vez em quando, aparece o Caroço, um jacaré de três metros. Transporte de ida e volta em lancha rápida com wi-fi e confortáveis minivans assegurada pelo resort.
Uma das inúmeras alternativas para pernoitar em Manaus. Pequeno, mas charmoso, com um excelente pequeno-almoço, este hotel (“pequenos” é a palavra certa para descrever os dez quartos) tem a grande vantagem de estar situado em pleno Largo de São Sebastião, bem no centro da cidade. Além do emblemático Teatro da Amazónia, fica paredes meias com a zona mais boémia da cidade.
Geógrafo especializado em Climatologia, Alfredo Graça, 30 anos, está à frente da equipa informativa do site tempo.pt, da Meteored Portugal (filial nacional da empresa-mãe espanhola com o mesmo nome), cada vez mais consultado para se saber como anda e andará a meteorologia no País e no mundo. Nesta entrevista à VISÃO, descobrimos um climatologista com opiniões concretas e definidas, que rebate exageros sobre, por exemplo, o fenómeno das ondas de calor, mas reconhece o esbatimento das estações do ano. E apresenta o conceito de “forno ibérico”, muito mediatizado em Espanha e por cá quase desconhecido.
Tem memória de, em pequeno, já se interessar pelos “mistérios” do tempo?
Lembro-me de ir às sete da manhã, com a minha avó paterna, regar plantas numa casa de férias que ela tinha em São Julião, uma freguesia de Portalegre, e de estar sempre muito atento ao céu, às nuvens.
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Isso com que idade?
Sete, oito anos, se calhar até mais cedo. Claramente, a minha avó e esse ambiente desempenharam um papel crucial na minha paixão pela Natureza e Geografia, da paisagem ao céu.
E como surgiu o seu interesse específico pela Climatologia, em que se especializou?
Para ser sincero, era das disciplinas em que tinha pior nota, na faculdade. Mas adorava na mesma. Até que se tornou uma paixão, uma obsessão diária, que inicialmente proveio da Paleoclimatologia, em que se estuda as mudanças globais climáticas na Terra ao longo de milhões de anos. Para mim, foi muito cativante estudar o Quaternário, a designação que se dá a esse período em particular.
O seu estágio profissional foi proveitoso?
Foi um tempo ótimo. Estagiei no Instituto Geofísico da Universidade do Porto com duas especialistas de excelência – Helena Madureira, a orientadora, e Ana Monteiro, a supervisora. Para começar, estávamos num sítio muito bonito, a serra do Pilar, no Porto, onde se situa a estação meteorológica clássica do IPMA [Instituto Português do Mar e da Atmosfera]. Depois, eu e os meus colegas aprendemos imenso sobre a recolha, medição e análise de dados, na temperatura do ar, precipitação, humidade, vento e por aí adiante. Tive de coligir bases de dados da serra do Pilar e compará-las com outras duas bases de dados. Toda essa metodologia é importante para perceber como é que a nível científico as coisas funcionam, como é que podem resultar com substância ou podem ficar limitadas pela própria amostra dos dados que temos. Foi importante para ganhar calo, como se costuma dizer. A seguir redigi a dissertação de mestrado, com a orientação daquelas duas professoras, e defendi-a em finais de 2020.
Nessa altura já trabalhava no site da Meteored?
Sim, desde 2018.
E já era redator-chefe?
Exato. Lembro-me de que fui promovido no dia anterior a fazer 23 anos.
O site pretende fazer alguma concorrência ao IPMA?
Não, de todo. O único paralelismo que encontro entre o IPMA e a Meteored é o objetivo que ambos têm de informar com conhecimento científico, credível e fiável, com rigor. Há esse pano de fundo de alerta, de aviso a pessoas que podem estar vulneráveis a certos tipos de eventos – inundações, secas, ondas de calor, incêndios florestais, até erupções vulcânicas. Os alertas oficiais, no entanto, cabem ao IPMA, que tem essa responsabilidade. Mas é claro que, como faz qualquer empresa e serviço, puxamos a brasa à nossa sardinha. Tem de ser, é assim que o mundo funciona.
Diria que este está a ser um verão relativamente calmo, no que respeita a ondas de calor, tirando a de junho e a que se anuncia neste momento em que falamos [na passada sexta-feira, 25]?
Neste mapa de anomalia de temperatura verifica-se, segundo Alfredo Graça, que “em grande parte da geografia de Portugal continental se prevê um agosto mais quente do que o normal”
Em junho houve duas ondas de calor. Agora, a partir da reta final de julho, prevê-se que haja um aumento do calor, embora a duração e a intensidade ainda estejam por confirmar. Muitas vezes, o que acontece com ondas de calor é que são analisadas após o evento ter ocorrido. Isto porque não há um parâmetro uniforme que, no que concerne a uma onda de calor, diga: “Isto é assim, e é assim em todo o lado.” O que não permite, com assertividade, definir o que é uma onda de calor, ou se vai ser, ou se já está a ocorrer.
Que parâmetros existem?
Temos vários institutos e instituições, organismos oficiais e credíveis, que diferem nos critérios de classificação de uma onda de calor. A Organização Meteorológica Mundial – cujos critérios são seguidos pelo IPMA – considera que existe uma onda de calor quando, durante seis dias, a temperatura média máxima está 5°C acima da média. Já o IPCC, Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, diz que são cinco dias com os mesmos 5°C. Depois, temos o Met Office, o instituto de meteorologia do Reino Unido, e a AEMET, a agência meteorológica de Espanha, a dizerem que bastam três dias para já ser um evento de onda de calor.
Complicado…
Além de que temos de ver aqui a questão da intensidade. Por exemplo, para grupos de pessoas mais vulneráveis o impacto de uma onda de calor é maior durante três dias em que a temperatura chega aos 10°C acima da média do que os 5°C acima da média ao longo de seis dias. Ou seja, a intensidade, neste caso, do valor da previsão da temperatura média máxima que vai ocorrer durante esse período é mais importante do que a duração.
Para o aumento do calor agora em agosto, que já se prevê acima do normal, que explicações encontra?
Diria que tem que ver, sobretudo, com o “forno ibérico” – expressão que ganhou mediatismo em Espanha, mas que pode ser aplicada em Portugal, e que se relaciona com o próprio relevo: a Península Ibérica pode ser entendida como um minicontinente na época do verão, por razões geográficas e climáticas -, com o vento de Leste, quente e seco, com a massa de ar tropical continental do Norte de África, e com a exposição peninsular à radiação solar, que atinge os valores mais elevados nesta altura. E, já agora, relembre-se que, em termos estatísticos, estamos no período mais quente do ano, a canícula, que vai de 15 de julho a 15 de agosto.
Ainda assim, há quem diga que estamos mesmo perante um verão atípico, tendo em conta que noutros anos foram recorrentes ondas de calor e temperaturas extremas…
Precisamente por causa disso, não diria que estamos num verão atípico. Um verão atípico implica muitas ondas de calor e muitas temperaturas extremas. A não ser que se diga “atípico” por estar a ser normal. Habituámo-nos a ter anos de calor excessivo e de seca, e achamos que isso agora é o normal. Acho que finalmente estamos a viver um ano normal, porque estamos a ter algumas ondas de calor, típicas de verão, mas estamos a ter também um verão que não está a ser mau na seca. Lembro-me de notícias que publicámos na Meteored sobre “Alentejos” e “Algarves” floridos como há muitos anos não se via, pelo que choveu, por exemplo, em março. Compare-se com o verão de 2022: esse, sim, foi um verão atípico, extremamente quente, com incêndios brutais. Esse foi um verão já marcado pela alteração climática, diria.
Há um esbatimento entre as estações, tornou-se mais ténue defini–las. Temos tido outubros muito quentes, por exemplo, mas também muito chuvosos. Uma coisa um bocado de extremos.Nos últimos anos, nota-se que têm chegado muito à Península Ibérica os chamados ‘atmospheric rivers’, os rios atmosféricos que eram mais característicos das Caraíbas
Este ano tem sido mais húmido do que a norma?
Consultando os dados, sim, tem sido. De outubro a maio choveu quase sempre acima da média. Junho e julho são as exceções, mas acho que não é o suficiente para ser não húmido.
O facto de não estar ativo neste momento um El Niño é o que “puxa” a temperatura média global para baixo? Ao contrário de Portugal, o resto da Europa, por exemplo, está sob um tempo mais fresco…
É difícil atribuir só a um El Niño o facto de estar mais ou menos calor. Também não estou seguro, até do ponto de vista científico, que possa ser só esse fator que está a interferir. Há uma tendência, mas não diria que é 100% precisa. Acho que a temperatura média global depende de muita coisa em simultâneo.
Quais são os impactos das alterações climáticas que, do seu ponto de vista, mais se têm feito sentir em Portugal?
Desde o início do século XXI, um dos que mais chama a atenção são as secas. Por serem um problema crónico, no Alentejo e no Algarve, que por acaso este ano não estamos a viver e ainda bem. Diria que esse é um dos problemas prementes, que afeta a agricultura, a gestão dos recursos locais hídricos e o uso do solo. Sem água torna-se muito difícil produzir ou ter o mesmo tipo de atividades de outras zonas do País, muito mais expostas à pluviosidade anual, como é o caso do Minho, por exemplo, fruto da latitude e porque tem uma barreira de condensação, um conjunto de montanhas alinhadas, paralelo à linha de costa – Marão, Alvão, Peneda-Gerês –, o que faz com que a chuva chegue e fique ali, toda concentrada nesse lado noroeste de Portugal. Mas as secas não afetam apenas o Alentejo e o Algarve. Também as há, por exemplo, no interior Norte, no Nordeste, precisamente por razões naturais, em que a montanha serve de barreira e a chuva que chega é muito menor. Este é um bom exemplo em que o ser humano em nada contribuiu. O problema é mesmo a montanha e não há nada a fazer, a não ser ajudar as comunidades locais a adaptarem-se. Depois, temos as inundações que acontecem em vários sítios, mas aqui não diria que é por causa das emissões, diria que é por má ocupação do território. Já nos incêndios florestais, está provado por diversos estudos científicos que 90% podem ser atribuídos à pirotecnia, à mão criminosa que mete fogo. Mas ainda é preciso referir as ondas de calor e a subida do nível do mar, embora só em certos pontos do território isso se note. Apesar de o relevo, aqui, estar naturalmente mais exposto, na erosão costeira também se intromete a construção urbana a montante, que depois interfere a jusante.
Quais são as alterações mais visíveis no clima português? Há a perceção de que hoje as estações do ano estão mais fluidas do que antigamente…
Também tenho a mesma perceção, não científica, mas resultante dos meus anos de experiência e trabalho. Há um esbatimento entre as estações, tornou-se mais ténue defini-las. Temos tido outubros muito quentes, por exemplo, mas também muito chuvosos. Uma coisa um bocado de extremos. Nos últimos anos, nota-se que têm chegado muito à Península Ibérica os chamados atmospheric rivers, os rios atmosféricos que eram mais característicos de zonas como as Caraíbas. Muitas vezes, o tempo ainda está quente em Portugal e já seria de esperar mais frio. Mas, para termos a certeza científica sobre esta eventual mudança climática, importa salientar que é preciso fazer um estudo aprofundado a 30 anos. E 30 anos demora.
Sou leitora e assinante da Visão há mais de 27 anos. Além da edição digital, compro-a semanalmente nas bancas, por convicção, para apoiar… Dizer isto é dizer que cresci convosco, que me informei convosco, que vi o mundo pelos olhos do vosso jornalismo. E hoje, com o coração apertado, escrevo estas palavras não apenas como leitora fiel, conjuntamente com o meu marido, mas como alguém que sente que pode estar a perder uma parte essencial da sua ligação à verdade, à reflexão e à liberdade. A Visão sempre foi para nós e para muitos, símbolo do jornalismo sério, íntegro e corajoso. Uma revista que nunca teve medo de pensar, de investigar, de incomodar quando era preciso, de iluminar o que alguns preferiam deixar nas sombras. Uma casa onde o rigor e a humanidade andam de mãos dadas. Uma referência. É por isso, com imensa tristeza que sei da possibilidade da dissolução deste projeto extraordinário. Como chegámos aqui? A ideia de ver tantos profissionais de excelência sem o espaço que merecem para exercer a sua vocação, é um golpe duro, não só para eles mas também para todos nós, os seus leitores. Porque quando uma voz como a da VISÃO se cala, todos ficamos mais pobres, mais vulneráveis, mais sós. Mas não quero escrever apenas com tristeza! Quero, acima de tudo, deixar uma mensagem de esperança. Acredito, e quero acreditar, que ainda é possível reverter este caminho. Que ainda há mãos e vontades capazes de salvar a Visão. Que o jornalismo de qualidade, feito com alma, ainda tem lugar e valos neste país. Que a confiança dos leitores, construída ao longo de décadas, pode ser uma força mobilizadora! Sei que não depende apenas de nós, leitores. Mas também sei que o nosso silêncio seria uma forma de desistência. E eu não desisto! Não da Visão não de tudo aquilo que ela representa. Aos que fazem esta revista, o meu mais mais profundo respeito e agradecimento. E a certeza de que, aconteça o que acontecer, a vossa marca permanece e permanecerá em cada um de nós, leitores! Com carinho e esperança
Maria de Fátima de O.G. Moreira Paulo
Olá a todos os que resistem. Quero , uma vez mais , manifestar o meu total apoio à GRANDE luta e resistência que alguns jornalistas da “nossa” VISÃO estão a levar a cabo para que a revista se mantenha firme , independente e continue a ter o seu merecido lugar nas bancas . Porque uma banca de venda de jornais e revistas sem a VISÃO ficaria muito pobre. Tenho consciência de que não é o momento para destacar este ou aquele artigo/texto ou algum jornalista , mas não posso deixar de mencionar o claro, objetivo, excelente texto da jornalista Margarida Davim “O que nós mudámos em 58 anos “, publicado na VISÃO 1690 de 24 julho. Grande abraço de amizade ( desculpem mas já vos considero meus amigos ) “ousar lutar, ousar vencer”
Luís Filipe Mesquita
Caros trabalhadores da VISÃO,
Em nossa casa, a VISÃOé assunto que atravessa, e une, gerações. A minha mãe, Isabel, acompanha-a desde a fundação, como creio que antes fazia com O Jornal. Eu, sendo um pouco mais nova do que a revista, leio-a desde a adolescência. E se, em eu criança, minha mãe comprava a VISÃO Júniorpara lermos em conjunto, na idade adulta passei a interessar-me, como ela, pela VISÃO História, de que temos alguns números guardados (não tantos como gostaria, eu que desejaria a coleção completa) – certos exemplares serviram-me inclusivamente como material de pesquisa e apoio por ocasião de um ou outro trabalho universitário. (…) Tão-pouco sou a única a debruçar-me sobre números antigos da Visão. A minha mãe fá-lo ocasionalmente, e há ainda a minha avó (paterna), a quem vamos semanalmente dando os números anteriores, para que leia e se distraia um pouco. A VISÃOtem, assim, acompanhado a minha vida, como a da minha mãe, e a nossa existência familiar. Ao longo dos anos, o elo em torno da revista configurou-se na partilha do interesse por determinados artigos ou entrevistas, com eventual leitura em voz alta de partes dos mesmos (…). Desde que se reformou, a minha mãe abraçou a rotina de, todas as quintas-feiras, sair de manhã para tomar café e comprar a VISÃONas últimas semanas, tal ritual tem sido assombrado pela incerteza quanto à permanência da revista, a que se segue uma sensação de alívio e alegria por a encontrar na papelaria e a poder trazer para casa. (…) Espero sinceramente que a vossa (nossa) causa saia vencedora, que a minha mãe possa continuar a comprar a VISÃOtodas as quintas-feiras e, eu, a colecionar artigos e VISÕES História. Que, nas chamadas telefónicas, também elas semanais, em que o meu pai, do trabalho, pergunta se a VISÃO“ainda saiu” e a comprámos, possamos continuar a responder sim. Os hábitos são importantes, e a VISÃO é um hábito nosso. Gostaria de pensar que de todo o País. Ainda se assim não for, a resistência perante o fim, de molde a adiá-lo quanto possível, a certeza de que se tentou quanto se podia por uma causa perdida, ou recusando que ela o fosse, tudo isso é supremamente comovente e louvável. Também por isso vos agradeço. Creiam que o vosso esforço e a vossa dedicação não passam despercebidos, sendo reconhecidos e admirados, quero crer, não só na minha, mas em várias casas, por Portugal afora, como aliás se vem comprovando no correio do leitor mais recente. Obrigada.
Com admiração e estima, até à próxima quinta-feira, Sofia Lúcio Sequeira
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Sou assinante da VISÃO e o JL e compro, ao mesmo tempo, as duas publicações em papel. Que mais posso fazer para ajudar a salvar essas revistas? A ainda compro as Biografia e a História. Não podemos cruzar os braços. Um agradecimento muito particular aos que esta semana tomaram em mãos fazer esta revista, apesar de compreendermos ao greve que os outros legitimamente decidiram fazer. Às vezes é por respeito aos que servimos que valores mais altos se levantam. E isto não tem paga. Assim os que tem responsabilidade de salvar o melhor jornalismo respondam depressa e percebam que sem ele não é possível ter uma informação livre.
Um grande abraço a todos nessa redação Heitor Ribeiro
Em relação ao texto ” A VISÃO merece a confiança ” assinada por três jornalistas da VISÃO e saído na revista de 26/06/25 , venho por este meio dar o meu grande apoio à luta que os trabalhadores do grupo Trust in News, nomeadamente da VISÃO, estão a encetar para a viabilidade e continuação da publicação da “nossa” revista. O possível desaparecimento da VISÃO seria mais uma machadada no setor da comunicação social independente, nomeadamente a escrita. Sou leitor da VISÃO praticamente desde o primeiro número. Naturalmente que tenho algumas críticas a fazer , não concordo com tudo o que é escrito ou com algumas partes da revista. Mas, no essencial , a minha opinião é positiva e far-me-ia muita falta se a VISÃO deixasse de aparecer nas bancas. Poderia assinar a VISÃO e recebê-la em casa, mas o ritual de ir, quinta-feira de manhã, a uma banca ou quiosque comprar a revista é, para mim, um prazer. Tenho muita esperança que a vossa vontade, força e luta vá dar os frutos que muita gente, que ainda acredita na verdade , anseia e que é a continuação da VISÃO. Há dois órgãos de comunicação social (VISÃO e Público) que, se desaparecessem, estávamos “tramados”! O meu grande desejo é que o desfecho da vossa “luta” seja bem sucedido .Um grande abraço de solidariedade.
Luís Filipe Mesquita
Trabalho em produção de telenovelas há vários anos e foi nos estúdios de gravação, onde é possível ver tudo o que não aparece nas televisões, que comecei a fotografar os ambientes por detrás das gravações. Gosto das fotografias de contraluz, de ver as perches com os microfones e as câmaras e todo o cenário, incluindo os operadores e maquilhadores, para além dos atores.
Acho que as fotografias têm vindo a melhorar e, com alguma pena minha, não posso ainda divulgar as últimas que tirei de uma novela que só irá estrear-se no final deste ano. Foram essas fotografias, aliás, que motivaram a apresentação deste portefólio nas páginas da VISÃO, e também vários pedidos de muitos atores para ficarem com elas, porque é um registo diferente do que são normalmente as fotos de cena.
A minha visão e o trabalho que faço, seja na música, na fotografia ou até em vídeo (que aqui não é possível partilhar), tem tudo que ver com estética e o olhar diferente, daí apresentar-me como compositor, mais do que cantor, músico ou escritor e ainda menos fotógrafo. O que faço são composições, com a minha visão das coisas, seja de imagens, de sons e silêncios, de palavras e melodias, de objetos, paisagens e pessoas.
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Tito Ribeiro
Sou compositor, escrevo poemas (sobretudo para canções), escrevo músicas, canto, toco e produzo grande parte dos discos que tenho editados. Faço uns desenhos e gosto de tirar umas fotografias
Instagram @tito_mesquita_ribeiro
Em 2023, Adam Conover afirmou: “Não pretendíamos defender-nos contra a tecnologia, mas sim contra os humanos no outro lado da mesa, que tentam lixar-nos todos os dias.” A frase foi proferida após ser finalmente alcançado um acordo entre os argumentistas e os representantes dos estúdios de Hollywood, na sequência de uma greve que parou a produção de séries e filmes. O tema central da disputa era a utilização sem regras do ChatGPT e de ferramentas semelhantes pelos estúdios. Conover parafraseou Thomas Hobbes: “O homem é o lobo do homem.” Ou seja, sem leis, o homem vive em permanente conflito, com um desejo de poder para garantir a sua própria sobrevivência. No “contrato social”, os cidadãos abdicam de parte da sua liberdade, conferindo ao Estado o poder de legislar e a autoridade para fazer respeitar as leis.
Mas e se os cidadãos já não confiarem no “contrato social” das sociedades modernas? Se uma parte crescente da população entender que o Estado não zela pelos seus interesses?
A crise das sociedades democráticas ocidentais é exacerbada pelo algoritmo, que fomenta a polarização e impede o diálogo. Mas por que motivo discursos extremistas, violentos e desumanos apelam a tantos?
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O filosofo Michael Sandel, no livro A Tirania do Mérito, procura encontrar a resposta. Embora a sua análise se foque na sociedade americana, o seu pensamento é relevante para as sociedades ocidentais em geral e, sobretudo, para os desafios que ora se colocam com o advento da Inteligência Artificial.
A promessa de que a riqueza gerada pela globalização permitiria, a todos, maior conforto económico não se cumpriu. Em quatro décadas, a China elevou da pobreza 800 milhões de pessoas, mas nos EUA a riqueza gerada com a globalização foi capturada por apenas 20% da população. Os salários mantiveram-se estagnados e, em 2020, o Departamento de Estatísticas dos EUA divulgou um estudo demonstrando que a desigualdade atingira o nível mais elevado em cinco décadas. À desigualdade social soma-se a arrogância dos vencedores. O discurso dominante é de que quem venceu o fez pelo seu mérito exclusivo. Que tudo deve à sua inteligência e ao seu esforço e, como tal, os seus rendimentos não só são merecidos, mas justos. No entanto, tal implica também afirmar que os outros falharam por sua única e exclusiva responsabilidade, porque não estudaram, não trabalharam. Às agruras das dificuldades económicas alia-se a humilhação. Naturalmente, este é um discurso perverso, não nascemos todos com os mesmos dons, com famílias idênticas e oportunidades iguais. Mas não é somente o facto de, na corrida da vida, não partirmos todos da mesma linha e de no percurso termos apoios distintos, é também o facto de que a sociedade, em cada momento, valoriza talentos muito diferentes. Finalmente, e provavelmente mais relevante para a polarização atual, a sociedade ocidental faz coincidir o contributo de cada um para o bem comum com o valor da remuneração auferida, numa perversão social que ficou a nu na pandemia de Covid-19. Os denominados “trabalhadores essenciais” eram aqueles que desempenham as funções mais mal pagas – quem recolhe o lixo, colhe a fruta, cuida de idosos…
O trabalho não é apenas um meio para a obtenção de um rendimento. Não somos indiferentes à estima e ao respeito que geramos. Numa sociedade desigual que desvaloriza o contributo de tantos, começa-se a adivinhar porque o discurso contra os “estrangeiros” – que afirmam vir “usurpar” trabalhos e rendimentos – encontra ouvintes, e porque se afirmam contra “elites”, “privilegiados”, “políticos do sistema”.
Se este foi o status que resultou da globalização, como será quando o “estrangeiro” for um exército de agentes artificiais, que nunca dormem e tudo sabem? Quando a riqueza se concentrar numa clique ainda mais reduzida de donos de Big Tech e o trabalho cognitivo diminuir exponencialmente? Devemos a nós e às próximas gerações um debate sobre que sociedade e contrato social desejamos. Tal envolve refletir em alternativas à tributação do trabalho, capital e heranças. Reforçar a discussão destes temas na escola, na disciplina de Filosofia ou, para os mais jovens, Ética, e regular a introdução de sistemas de Inteligência Artificial na economia.
O polvo é aquele animal extraordinário que fascina mergulhadores experientes, por ser capaz de reconhecer caras de pessoas e de abrir frascos sem dificuldade. Mas é nos seus tentáculos, muito eficientes a envolver as presas num abraço longo e asfixiante, que primeiro pensamos. Não admira, por isso, que a imagem de um polvo seja tantas vezes usada para descrever as redes de malfeitores poderosos.
No dia em que Donald Trump a puxou para si, apalpando-lhe rapidamente as mamas, a cintura e o rabo, Stacey Williams pensou num polvo. A top model, então com 25 anos, nunca tinha estado antes com o conhecido empresário, que era grande amigo do seu namorado, Jeffrey Epstein.
“Senti-me definitivamente como um pedaço de carne entregue naquele escritório, numa espécie de jogo”, diria Williams no ano passado ao The New York Times, ao recordar essa ida à Trump Tower, em 1993.
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Dois anos depois, Maria Farmer, uma estudante de Arte que se mudara de Phoenix para Nova Iorque para apostar na carreira de pintora, e tinha então também 25 anos, seria apresentada a Trump, num escritório de Epstein em Manhattan. Nesse encontro, o empresário olhou-a tão fixamente que o seu suposto mecenas avisou: “Ela não é para ti.”
No ano seguinte, a sua irmã mais nova, Annie Farmer, de apenas 16 anos, aceitou o convite para passar um fim de semana no rancho de Epstein no Novo México, depois de o financeiro ter prometido ajudar a pagar-lhe os estudos. A mãe da miúda, que falou com ele por telefone, acreditou nas suas boas intenções e sentiu-se segura porque também lá estaria uma sua ex-namorada, a socialite britânica Ghislaine Maxwell.
Cúmplices De namorada, Ghislaine evoluiria para melhor amiga e recrutadora de raparigas para Jeffrey (foto divulgada no seu julgamento, em 2021)
Logo na primeira noite, Maxwell massajou-lhe as mamas nuas e Epstein subiu para a sua cama.
Ghislaine Maxwell ensinava as adolescentes a satisfazer sexualmente Epstein (que “precisava” de três orgasmos por dia). “O treino começava imediatamente”, contou Virginia Giuffre. “Tudo se resumia a como fazer sexo oral, ser subserviente, dar ao Jeffrey o que ele queria”
Quando Annie regressou e contou o que se passara, Maria admitiu que Epstein tentara igualmente seduzi-la, meses antes. A mãe de ambas quis ir atrás dele “de todas as maneiras”, confessaria, no início de 2003, à revista Vanity Fair, mas os amigos aconselharam-na a não fazer nada. “Ele é tão rico que pode lutar contigo e pode magoar as tuas filhas”, ouviu.
A marquesa portátil
O editor da Vanity Fair decidiria cortar essas acusações de agressão sexual do megaperfil de Epstein que a revista publicou na edição de março desse ano, por não estarem judicialmente fundamentadas.
Exatamente dois anos depois – e todas estas datas são importantes –, uma adolescente de 14 anos e os seus pais relataram na polícia de Palm Beach, na Flórida, que o financeiro a molestara sexualmente. Segundo a miúda, uma colega de turma na Royal Palm Beach High School tinha-a levado a sua casa para lhe fazer uma massagem em troca de dinheiro.
Nas primeiras buscas à mansão de Epstein, ainda em 2005, foram logo encontrados no lixo recibos de mensagens com vários nomes e números de telefone. Os abusos haviam de acontecer também em Little Saint James, a sua ilha privada que faz parte das Ilhas Virgens Americanas, no mar das Caraíbas, de que vimos dezenas de imagens, desde a casa principal e a sua piscina às praias e ao grande relógio de sol, passando pelo enigmático Templo Hilltop. Mas tudo terá começado nessa sua casa à beira-mar de que conhecemos sobretudo a entrada principal, na El Brillo Way.
As descrições das vítimas dão para perceber como era, mas melhor ainda é ver o vídeo de quase meia hora feito pela polícia durante as buscas realizadas há 20 anos (e revelado em agosto de 2019).
Os agentes entraram pela mesma porta lateral usada habitualmente pelas suas vítimas, que atravessavam a cozinha e eram conduzidas ao primeiro andar, por uma escada coberta por alcatifa cor-de-rosa. No rés do chão, havia uma garagem, naquele dia com três dos seus 22 carros, e uma grande sala de estar com área de escritório, decorada com esculturas, muitos quadros e ainda mais fotografias de Epstein ao lado de famosos.
No andar de cima, o vídeo mostra uma repetição de salas, mais um escritório e seis quartos, todos com camas de casal e casas de banho adjacentes, revestidas a mármore. Numa das casas de banho, havia uma cadeira típica de clínica de estética, com um espelho de aumentar acoplado. Não vemos nenhuma marquesa de massagem, o que faz sentido – Ghislaine costumava montar uma portátil no quarto principal.
A decoração não era requintada, mas o jardim e a grande piscina seriam suficientes para impressionar uma miúda pouco habituada a luxos.
Em 2021, a propriedade seria comprada por um promotor imobiliário e prontamente demolida para dar lugar a uma nova mansão sem história. “Palm Beach ficará muito feliz com o seu desaparecimento”, disse, então, Todd Michael Glaser, depois de desembolsar 18 milhões de dólares (cerca de 15,6 milhões de euros) pelos seus 1 300 metros quadrados.
Ao fim de uma hora de festa, em que estavam 28 raparigas lindíssimas, só havia mais um convidado: Epstein. “Perguntei: ‘Donald, onde estão os tais tipos VIP? O que está a acontecer aqui?’ e ele respondeu: ‘Bem, é isto.’ Percebi que era uma festa para ele e para o Jeff Epstein, basicamente”
O “manual da casa”, esse, sim, impressionava pelas múltiplas proibições. Os empregados não podiam comer, beber nem mascar pastilha elástica na presença de Epstein, Maxwell ou dos seus convidados. Eram aconselhados a “evitar o uso de perfume forte ou aftershave, pois poderiam causar uma reação alérgica” e tinham uma lista de palavras “que não se dizem”, incluindo expressões informais como “yeah”, “sure”, “no problem”, “you bet”, “gotcha”, “right” ou “I dunno”. Eram ainda instruídos para não andar com objetos volumosos nos bolsos.
Além de entrevistarem mais raparigas, os investigadores ouviram os mordomos que lhes contaram que ele recebia visitas frequentes de miúdas de liceu, a várias horas do dia, mais do que uma vez por dia.
Em julho de 2006, o FBI, pressionado pelo chefe de polícia de Palm Beach, abriu uma investigação federal e começou a recolher os depoimentos de alegadas vítimas também em Nova Iorque e no Novo México, onde o financeiro tinha um rancho de três mil hectares, a que chamara Zorro. Michael Reiter queria travar a poderosa equipa jurídica de Epstein que já andava a tentar negociar um acordo com o Ministério Público.
“Não se tratava de uma situação do tipo ‘ele disse, ela disse’”, recordaria Reiter ao Miami Herald. “Foram 50 e tal ‘raparigas’ e um ‘ele’ – e todas contavam a mesma história.”
Cada miúda, quase sempre menor de idade, de origem humilde e com pais desatentos, recrutava as seguintes, num esquema de pirâmide. Quem já tinha lá estado em casa sabia que a tarefa raramente se resumiria a uma simples massagem – Epstein coagia-as a praticar atos sexuais, a troco de uma quantia variável, entre os 300 e os mil dólares.
Uma das vítimas, Courtney Wild, diria em tribunal que foi apresentada a Epstein em 2002, aos 14 anos. “Quando tinha 16 anos, provavelmente já lhe levara 70 a 80 raparigas, todas de 14 e 15 anos.”
A felicidade de Trump O empresário foi um dos principais patrocinadores do concurso Look of the Year da Elite em 1991, que se realizou no seu hotel Plaza
“O acordo do século”
Ghislaine Maxwell tinha um papel importante no recrutamento, como se viria a provar, mas, há duas décadas, ele não era claro para a polícia. Só mais tarde se saberia que ensinava as adolescentes a satisfazer sexualmente o seu amigo (que alegadamente “precisava” de ter orgasmos três vezes por dia), além de muitas vezes participar em orgias com elas.
Virginia Roberts Giuffre, uma das principais acusadoras, recrutada por Maxwell quando tinha 16 anos e trabalhava no spa de Mar-a-Lago (propriedade de Trump), contou ao Miami Herald que grande parte dos seus cuidados com a aparência vinham da “ex” de Epstein. “E o treino começou imediatamente”, explicou, numa entrevista registada em vídeo. “Tudo se resumia a como fazer um sexo oral, como estar quieta, ser subserviente, dar ao Jeffrey o que ele queria.”
Sr. Professor Epstein daria aulas de Matemática e Física na escola privada Dalton, em Nova Iorque, entre 1974 e 1976. Os antigos colegas lembram-se de o ver com um longo casaco de pele e de camisa aberta
Em 2008, o procurador federal Alexander Acosta (nomeado Secretário do Trabalho na primeira administração Trump, em 2017) fez um acordo de não acusação que pôs fim à investigação do FBI sobre a existência de mais vítimas ou de cúmplices, que assim escapariam às acusações de tráfico sexual. O Miami Herald descreve-o como “o acordo do século”.
Condenado apenas por duas solicitações de prostituição, uma delas com uma menor, o financeiro recebeu uma sentença de 18 meses de prisão, podendo passar 12 horas por dia no seu escritório, seis dias por semana (além de manter todos os seus bens). Quanto aos nomes de homens poderosos mencionados pelas vítimas ao longo da curta investigação, eles não poderiam sair dos documentos selados por força do acordo.
Epstein continuou aparentemente com o seu modus operandi, como se nunca tivesse sido apanhado.
“Não sou um predador sexual, sou um delinquente”, disse numa rara entrevista, ao New York Post, em 2011. “É a diferença entre um assassino e uma pessoa que rouba um pãozinho.”
Em 2018, numa ocasião em que recebeu em casa um jornalista do The New York Times, para falar em off sobre a Tesla (dizia-se que estaria implicado num negócio com Musk), levou a conversa para o sexo com menores, “bem aceite na Antiguidade”, no fundo “apenas uma questão cultural”.
Sossegado e “nerd”
Quem era afinal esse homem que parecia um Ralph Lauren mais alto e mais novo, desde o cabelo prateado do designer de moda aos seus mocassins?
Jeffrey Edward Epstein nasceu a 20 de janeiro de 1953, em Brooklyn, Nova Iorque, neto de imigrantes e filho de Paula Stolofsky, auxiliar escolar, e de Seymour George Epstein, que começara como operário na demolição de casas e conseguira, entretanto, um emprego no Departamento de Parques da Cidade de Nova Iorque, na recolha de lixo. O seu irmão, Mark “Puggy” Lawrence, nasceria no ano seguinte.
O sotaque rouco de Brooklyn traía as suas origens de Coney Island. Nas décadas de 1960 e 1970, cresceu na ponta da península conhecida como Sea Gate, perto do parque de diversões vintage, onde os seus pais são recordados por antigos vizinhos, ouvidos pelo site The Daily Beast, como “as pessoas mais simples” do mundo.
Aos 5 anos, começou a aprender a tocar piano, uma paixão que manteria ao longo da sua vida. Em adolescente era “sossegado”, tão bom a Matemática que pertencia à grupeta dos “nerds” da escola.
Os amigos chamavam-lhe “Bear” (urso) ou “Eppy” e recordam-no “gordinho, com cabelo encaracolado e uma gargalhada aguda”, lê-se no livro Filthy Rich (podre de rico), de James Patterson, John Connolly e Tim Malloy, publicado em 2017 e entretanto adaptado pela Netflix numa série documental.
Belo “trolanço Dias antes de Trump visitar o Reino Unido, já as paragens de autocarro tinham “anúncios” especiais, cortesia do movimento Everybody Hates Elon
Considerado inteligente, terminaria o Secundário aos 16 anos, seguindo para a Cooper Union, em Manhattan, onde frequentou algumas aulas de Física, e depois para o Instituto Courant de Ciências Matemáticas da Universidade de Nova Iorque, saindo de ambas as instituições de Ensino Superior sem qualquer diploma.
Conseguiria, ainda assim, ser contratado para dar aulas de Matemática e Física na escola privada Dalton, no chique Upper East Side, onde antigos colegas se lembram de o ver com um longo casaco de pele e de camisa aberta, deixando entrever uma corrente de ouro. Mesmo nos anos 70, arriscava um estilo extravagante num colégio tão conservador que recentemente passara a aceitar t-shirts e ténis, mas ainda proibia que os rapazes usassem o cabelo comprido.
“Jeff era brilhante”
Os alunos e as famílias da Dalton provêm das famílias mais ricas dos Estados Unidos. Em meados da década de 1970, a mensalidade era de cerca de 3 200 dólares para alunos do ensino médio (cerca de 2 800 euros).
No anuário relativo a 1974-75, Epstein escreveu: “Vou dar aulas a um bando de miúdos mimados no próximo ano.” A piada passaria sem espinhas – afinal, Jeff, como todos o tratavam, conquistara-os com os seus recitais de piano e o seu método de ensino meio desorganizado, alicerçado, segundo o jornal The Daltonian, numa “filosofia única de integrar exercícios físicos com estímulos espirituais e matemáticos”.
Crimes públicos As histórias das vítimas eram tão poderosas que a investigação jornalística rapidamente se transformou numa missão A jornalista Julie K. Brown, do Miami Herald, andava à procura de um mistério sobre o qual escrever quando quis perceber por que razão Epstein conseguira escapar com uma pena tão leve, em 2008. O vantajoso acordo de não acusação, que o financeiro obtivera, parecia-lhe mal explicado. Decidiu, então, procurar as vítimas, entretanto mulheres adultas, e começar a entrevistá-las. Desde o seu primeiro artigo-bomba de 2018, muito do que tem sido publicado é à boleia do Miami Herald.
Certo é que, algures a meio do segundo ano letivo, Jeffrey confessou ao pai de um aluno que não tinha vocação para ser professor. Imaginava-se em Wall Street. “Esse pai ficou tão impressionado que disse ao meu pai: ‘Tem de contratar este rapaz’”, recordou ao Miami Herald Lynne Koeppel, filha de Alan “Ace” Greenberg, que era um executivo do banco de investimento Bear Stearns. “Deem crédito ao Jeff. Ele era brilhante.”
“Ace” Greenberg também ficou impressionado com Epstein, então com 23 anos, sobretudo ao saber que ele havia abandonado a universidade duas vezes e era filho de um humilde funcionário municipal. O próprio Greenberg era filho do dono de uma loja de roupa em Oklahoma City e ascendera de empregado do Bear Stearns a CEO. Tinha, por isso, uma natural afinidade com os funcionários a que chamava de “PSD” – acrónimo em inglês de pobres, inteligentes e desesperados para ficar ricos.
“Solteiro do mês”
Passados apenas quatro anos, a 1 de agosto de 1980, o Bear Stearns publicou um anúncio no The Wall Street Journal onde constavam todos os que se tinham tornado recentemente sócios comanditários (um escalão abaixo do sócio de pleno direito), incluindo Jeffrey E. Epstein. A notícia já correra nos mentideros da Bolsa de Nova Iorque, porque em julho ele tinha aparecido como o “solteiro do mês” da Cosmopolitan.
O anúncio na revista feminina incluía uma fotografia sua de fato e gravata e retratava-o como um “dínamo nova-iorquino”, de 27 anos. Estaria à procura de uma “rapariga texana gira” e dizia apenas falar com pessoas que ganhavam mais de um milhão de dólares por ano.
Debaixo da asa de Greenberg e do diretor-executivo, James Cayne, o jovem Epstein iria angariar a sua própria carteira de clientes em poucos anos.
Amizade antiga Donald Trump com Ghislaine Maxwell em 1997 e em 2000, em eventos ligados à moda. Na imagem em baixo, os dois estão com Melania, a ex-modelo de origem eslovena que se tornaria sra. Trump em 2005
“Ele não era um corretor convencional que dizia ‘Compre IBM’ ou ‘Venda Xerox’”, recordou Cayne à revista New York, em 2002. “Dada a sua formação matemática, colocámo-lo na nossa divisão de produtos especiais, onde aconselhava os nossos clientes mais ricos sobre as implicações fiscais das suas carteiras. Recomendava determinadas transações com vantagens fiscais. É um tipo muito inteligente e tornou-se também um cliente muito importante para a empresa.”
Foi, por isso, com algum espanto que no Bear Stearns receberam a sua decisão de sair da empresa, logo em 1981. Queria gerir o seu próprio negócio, segundo disse à Vanity Fair, no tal megaperfil publicado em 2003.
Em 1982, criou a Epstein and Co, com uma premissa simples: só aceitava gerir fortunas individuais e familiares de mil milhões de dólares ou mais. E com um senão que nem todos os potenciais clientes aceitavam: cobrava uma taxa fixa e assumia o controlo total do dinheiro, graças a uma procuração para fazer o que achasse necessário.
A entrada de Ghislaine
“A partir daí, os pormenores tornam-se obscuros”, lemos na VF, como introito à ligação de Epstein a Steven Jude Hoffenberg, o autor de um dos maiores esquemas Ponzi de sempre, que conhecera na década de 1980, em Londres. Além de ambos serem de Brooklyn, eram inteligentes e obcecados em ganhar dinheiro.
Os anos 1980 seriam a década de ouro na vida profissional do financeiro, mas, quanto maior era a sua carteira de clientes e o volume das transações que fazia com ou para Hoffenberg, mais discreto se fazia.
Um das primeiras vezes que os jornalistas repararam em Epstein foi só em novembro de 1992, quando acompanhou Ghislaine numa viagem a Londres. Aos 30 anos, a socialite britânica andava debaixo d’olho dos tabloides ingleses, deliciados com a vida outra vez em festa da filha de Robert Maxwell. Exatamente um ano antes, o magnata dos média e antigo deputado tinha sido encontrado morto, nu, a boiar no oceano Atlântico, perto das Canárias, depois de ter caído do seu iate de 50 metros.
Nascido Ján Ludvík Hyman Binyamin Hoch, de uma família judia da antiga Checoslováquia, Robert fora uns dias antes acusado de desviar fundos e falsificar documentos para manter o seu império. A bordo do Lady Ghislaine, o empresário tinha por hábito fazer chichi da amurada para o mar, a meio da noite. O inquérito oficial concluiu que morreu de ataque cardíaco, combinado com afogamento acidental.
Em 2002, Trump contou que conhecia Jeff há 15 anos: “É um tipo fantástico. É muito divertido estar com ele. Diz-se até que gosta tanto de mulheres bonitas como eu, e muitas delas são mais jovens. Não há dúvida nenhuma – Jeffrey gosta da sua vida social”
Após a morte do pai, Ghislaine iria tentar reinventar-se, tal como ele fizera durante e após a II Guerra Mundial. Poucos meses depois de se mudar para um pequeno apartamento em Nova Iorque, onde confidenciaria à Vanity Fair estar “falida” e “a sobreviver, apenas”, conheceu Epstein.
O financeiro ainda não tinha 40 anos, mas o Mail on Sunday descreveu o “namorado secreto” da socialite como “um empresário americano grisalho, rechonchudo e de meia-idade que conseguiu escapar aos fotógrafos”, perguntando: “Mas o que é ele – promotor imobiliário, pianista concertista, professor de Matemática, caçador de tesouros corporativos, corretor da bolsa, banqueiro ou empresário viajante?”
Graças à sua relação com Ghislaine, que evoluiria de namoro para amizade, a década seguinte seria passada já debaixo dos flashes dos média. E, até pelo menos 2004, ano em que se zangaram por causa da compra de uma casa em Palm Beach, era frequentemente visto na companhia de Trump.
Trump e as modelos
Melania chegou a Nova Iorque em 1996, pela mão do agente de modelos Paolo Zampolli. Foi ele quem patrocinou o seu visto “Eistein” e que dois anos depois a apresentou a Trump. Zampolli trabalhava com o influente John Casablancas, fundador da agência de modelos Elite, e eram ambos amigos de Epstein e de Trump.
Uma investigação do The Guardian, em 2020, revelou que o concurso Look of the Year, da Elite, foi usado por Casablancas e outros para manter relacionamentos sexuais com modelos jovens e vulneráveis. “Algumas destas alegações equivalem a assédio sexual, abuso ou exploração de adolescentes; outras são mais precisamente descritas como violação”, lemos.
Segundo o jornal, Trump foi um dos principais patrocinadores da edição de 1991, reinaugurando o Plaza, o seu luxuoso hotel com vista para o Central Park, em Nova Iorque, transformado no local principal do evento. Trump foi também um dos dez jurados (existe online um vídeo em que o vemos a apreciar miúdas em fato de banho, numa sala do Plaza) e, no ano seguinte, voltou a acolher o concurso e as modelos.
A amizade entre os dois homens vinha de trás. Patty Owen, antiga estrela de capa da Elle e da Cosmopolitan, recorda-se de ter visto Trump em festas da Elite já em 1982. E, em declarações ao The Guardian, quatro ex-modelos disseram que, no final dos anos 80, quando eram adolescentes, a agência exigia que comparecessem a jantares privados com Trump, Casablancas e, por vezes, vários outros homens.
Presas fáceis
Um desses homens poderia ser Epstein. De acordo com um processo movido em dezembro de 2019, Casablancas enviou em 1990 uma modelo de 15 anos para um casting numa mansão na Upper East Side. O suposto fotógrafo era, afinal, o financeiro, que a mandou despir-se para as fotografias, empurrando-a contra uma parede e abusando sexualmente dela.
As jovens aspirantes a modelo eram presas fáceis para Epstein. Em documentos divulgados em 2019, no âmbito do processo contra Ghislaine Maxwell, a vítima Virginia Giuffre alegou que Jean-Luc Brunel, então gerente da Karin, uma grande agência de modelos francesa, “entregou” várias adolescentes ao financeiro e a outras pessoas, para fins sexuais.
Banido da Karin, Brunel fundou uma outra agência, a Mc2, com sede na Europa e em Miami. Segundo o Miami Herald, várias testemunhas relataram que Epstein detinha uma participação na Mc2, usando-a como veículo para recrutar jovens para as suas festas. Em 2021, foram descobertas fotografias do francês com o financeiro e Maxwell. No ano seguinte, Brunel suicidou-se na prisão.
Ainda de acordo com a citada investigação do The Guardian, George Houraney, empresário cujo concurso de beleza American Dream Calendar Girls se realizava nos casinos de Las Vegas desde 1978, recorda-se de ter encontrado Epstein em Mar-a-Lago, a conhecida propriedade de Trump, em janeiro de 1993.
Ao jornal, Houraney contou que Trump lhe pediu para organizar uma festa nesse mês com algumas das finalistas do concurso, prometendo convidar diretores de agências de modelos e possíveis patrocinadores para o seu concurso. Mas, ao fim de uma hora de festa, em que estavam 28 raparigas lindíssimas, só havia mais um convidado: Epstein. “Perguntei: ‘Donald, onde estão os tais tipos VIP? O que está a acontecer aqui?’ e ele respondeu: ‘Bem, é isto.’ Percebi que era uma festa para ele e para o Jeff Epstein, basicamente.”
Em 1995, Trump assinou com a Elite o contrato da sua filha Ivanka, então com 14 anos. Em 2002, Casablancas foi acusado de violação de uma rapariga de 15 anos, engravidando-a e levando-a a abortar. Ele e Gérard Marie, chefe da divisão europeia da Elite, eram conhecidos por competir por sexo com modelos jovens.
O príncipe André, filho da então rainha de Inglaterra, foi um dos homens acusados por Virginia Giuffre de manter relações sexuais com ela, em 2000, sabendo que tinha apenas 17 anos (o que ele sempre negou, chegando a um acordo em 2022)
“Como um tabuleiro de fruta”
O Miami Herald nunca mais largaria o caso, numa investigação que ainda hoje é liderada pela jornalista Julie K. Brown. Nos anos seguintes, foi juntando testemunhos e entrevistas, e, em 2018, publicou um artigo-bomba que levou à demissão de Acosta.
No dia 6 de julho de 2019, quando Jeffrey Epstein foi detido no Aeroporto de Teterboro, em Nova Jersey, onde havia chegado de Paris num jato particular, a acusação alegava que havia recrutado ao longo de muitos anos dezenas de adolescentes para se envolverem em atos sexuais com ele em Palm Beach, em Nova Iorque, no seu rancho e na sua ilha privada.
Com a prisão de Epstein, as atenções viraram-se para os seus amigos e associados. Entre eles, Ghislaine Maxwell, claro, mas também para o agente de modelos francês Jean-Luc Brunel, Donald Trump e o príncipe André de Inglaterra.
As adolescentes seriam vítimas de uma rede de tráfico sexual encabeçada por Epstein. Virginia Roberts Giuffre (que se suicidaria em abril deste ano) disse ter sido “passada de um lado para o outro, como um tabuleiro de fruta” e abusada por predadores ricos e poderosos. O filho da então rainha de Inglaterra foi um dos acusados por Giuffre de manter relações sexuais com ela, em 2000, sabendo que tinha apenas 17 anos (o que sempre negou, chegando a um acordo em 2022).
Epstein estaria preso apenas 36 dias – a 10 de agosto, foi encontrado morto, enforcado num lençol. O foco passou, então, naturalmente, para Ghislaine Maxwell, que seria detida em julho do ano seguinte, sob a acusação de ter ajudado o antigo namorado a abusar de menores.
Em dezembro de 2021, a antiga socialite britânica foi considerada culpada de cinco das seis acusações, incluindo a de tráfico sexual de uma menor, sendo condenada a passar 20 anos atrás das grades. Após a sua condenação, Maxwell mostrou-se arrependida. “Sinto muito pela dor que sofreram”, disse, dirigindo-se às vítimas, no tribunal. “Espero que a minha prisão vos traga um desfecho.”
O perdão de Trump
Três anos depois, diz-se que é Ghislaine quem está agora a mexer os cordelinhos para incriminar Trump e, de caminho, obter um perdão.
Os seus advogados já recorreram para o Supremo Tribunal, no sentido de anular a condenação de 2021, argumentando que o acordo judicial celebrado em 2008 com Epstein a protegia de acusações criminais futuras.
Tratava-se de um acordo vinculativo de não acusação que incluía “quaisquer potenciais cúmplices”, uma categoria na qual Maxwell se enquadra perfeitamente, especificou o líder da equipa jurídica, David Oscar Markus. “E estamos a apelar não apenas para o Supremo Tribunal, mas para o próprio Presidente.”
De visita à Escócia, Trump sugeriu a hipótese de vir a perdoar-lhe, não se sabe se em breve. “É-me permitido conceder-lhe perdão”, lembrou.
Essa hipótese assusta naturalmente as suas vítimas. “Ghislaine é tão responsável, se não mais, como Jeffrey”, disse uma delas, Sarah Ransome. Quero Ghislaine atrás das grades para o resto da vida. Simplesmente porque está doente. As pessoas não estão seguras com ela na rua.”
Mas os advogados da antiga socialite, hoje com 63 anos, insistem que Trump deve reconhecer quão “injusto” é “usar Ghislaine Maxwell como bode expiatório pelos crimes de Epstein”.
A carta obscena
Para cima da mesa das negociações foi atirada, nada subtilmente, uma carta que o atual Presidente dos EUA terá escrito ao seu então grande amigo Jeff, por ocasião dos seus 50 anos, em 2003.
A carta fará parte de um livro, organizado em 1993 por Ghislaine e agora revelado pelo The Wall Street Journal. Consta do esboço de uma mulher nua, com um texto escrito a computador que termina com a frase “que cada dia seja um segredo maravilhoso” e tem a assinatura “Donald” no lugar dos pelos púbicos.
Trump diz que a carta é “falsa” e processou o WSJ, por difamação. Bradley Edwards, um advogado que representou mais de 200 vítimas do financeiro (50 delas então com menos de 18 anos, sendo a mais nova de 14) afirma que a existência do livro é um “facto absoluto” e que está no espólio de Epstein na Flórida.
Nas redes sociais, ressurgiu um depoimento gravado em vídeo, em 2010, em que Epstein se escusa a dizer se socializara com Trump na presença de mulheres menores de 18 anos: “Embora queira responder a esta questão, pelo menos hoje terei de fazer valer os meus direitos garantidos pela Quinta, Sexta e 14ª Emendas.”
É mais uma acha para a fogueira em que está a arder o Presidente por causa da sua amizade com Epstein.
Em 2002, Trump contou à New York Magazine que conhecia Jeff há 15 anos e fez a sua apologia de uma maneira que, hoje, impressiona negativamente: “É um tipo fantástico. É muito divertido estar com ele. Diz-se até que gosta tanto de mulheres bonitas como eu, e muitas delas são mais jovens. Não há dúvida nenhuma – Jeffrey gosta da sua vida social.”
Em 2025, quando inimigos políticos e até partidários clamam pela “libertação” dos ficheiros de Epstein, Trump acusou Barack Obama de traição, suspendeu o Congresso para impedir uma votação sobre a sua divulgação e levou o seu próprio advogado à prisão para oferecer a Ghislaine um acordo de imunidade.
effrey Epstein estaria preso apenas 36 dias – na manhã de 10 de agosto de 2019, foi encontrado enforcado num lençol. Na noite anterior, disse aos guardas que ia telefonar à sua mãe, que tinha morrido em 2004, e terá ligado à namorada, Karyna Shuliak
Uma vez que estas manobras não surtiram efeito, tem disparado para todos os lados, dando tiros no pé, uns a seguir aos outros.
Nos últimos dias, já o ouvimos dizer que nunca teve “o privilégio” de ir à ilha de Epstein. Sim, leu bem, caro leitor, o suposto privilégio de visitar um dos locais onde o financeiro – e, tudo indica, vários seus amigos – perpetraram abusos sexuais de menores. E será tão grande o receio de o seu nome constar dos ficheiros que também já pôs a hipótese de ele poder ter sido “plantado deliberadamente”.
É como se Donald Trump não tivesse ido a inúmeras festas na ilha privada de Epstein ou na sua casa nova-iorquina, situada no bairro Lenox Hill, no Upper East Side, que ainda continua de pé, embora tenha passado entretanto por uma remodelação completa, “física e espiritualmente”, como prometeu Michael D. Daffey, antigo executivo da Goldman Sachs, ao comprá-la, em 2021. (Os lucros da venda reverteram para o Programa de Compensação às Vítimas de Epstein.)
A casa entraria oficialmente na carteira imobiliária de Epstein só em 2011, mas em 1996 o financeiro já se referia a ela como sendo sua, comentando ao The New York Times: “Les não passou lá mais de dois meses.” Les é o bilionário Leslie H. Wexner, fundador da L Brands, empresa-mãe da Victoria’s Secret com sede em Columbus, Ohio, e seu grande amigo e mentor, que a tinha comprado a um colégio em 1989, convertendo-a numa residência privada.
“Os visitantes descreveram uma casa de banho que fazia lembrar os filmes de James Bond: escondida debaixo de uma escada, revestida com chumbo para proteger de ataques e equipada com ecrãs de circuito fechado de televisão e um telefone, ambos escondidos num armário por baixo do lavatório”, lemos no artigo do NYT que traz mais um bombom: “À frente da casa, o passeio está aquecido [eletricamente], um luxo que explica porque é que, enquanto a neve cobre o resto da Costa Leste, a entrada da casa dos Wexner (e a da casa de Bill Cosby, do outro lado da rua) permanece opulentamente livre de neve, para gáudio dos cães do bairro.”
A referência ao vizinho ilustre teria hoje outro destaque, uma vez que o ator querido dos americanos foi entretanto alvo de múltiplas acusações – e condenações – por abusos sexuais, tendo admitido usar álcool e sedativos para ter relações sexuais com mulheres e adolescentes, sem o seu consentimento nem o seu conhecimento.
Um outro vizinho ilustre de Epstein era Woody Allen, acusado em 1992 de ter abusado sexualmente da sua filha adotiva, Dylan Farrow, então com 7 anos. O realizador, que negou sempre as acusações e continua a morar na Rua 70, em plena “Millionaires’ Row”, encontrava-se frequentemente com o financeiro, mesmo depois da sua primeira prisão.
No final de 2002, a jornalista Vicky Ward visitou “a joia da coroa das casas residenciais da cidade” quando estava a preparar o já referido perfil da Vanity Fair a que daria o título O Talentoso Sr. Epstein, a lembrar o romance de suspense psicológico homónimo de Patricia Highsmith, em que Tom Ripley conta o seu percurso até à classe alta através da fraude e da mentira.
Ward descreveu um hall de entrada coberto de filas de molduras com globos oculares artificiais, feitos em Inglaterra para soldados feridos. Subindo por uma escada em espiral até ao andar de cima, Epstein chamou a sua atenção para uma secretária dourada que teria pertencido ao banqueiro J. P. Morgan, uns armários portugueses do século XVIII lacados a preto, um Steinway “D” grande e um tapete persa “tão imenso que deve ter vindo de uma mesquita”.
“Apesar da sua excentricidade, a casa é curiosamente impessoal, a afirmação de alguém que quer ser conhecido pela escala das suas posses”, escreveu Ward, que visitou apenas uma pequena parte dos seus 51 mil metros quadrados. Epstein tinha então 50 anos e admitia aos seus amigos que gostava quando as pessoas pensavam nele dessa forma.
Mas gostaria sobretudo de lembrar quem mandava, notava a jornalista. Dissonante da decoração em grande parte decidida pelo conhecido decorador francês de origem marroquina Alberto Pinto, havia um caniche preto empalhado, em cima do piano de cauda de concerto. Uma escolha que só podia ser sua, para chocar.
Esse perfil seria publicado na mesma altura em que Jeffrey Epstein começou a recrutar raparigas menores de idade para esta sua mansão nova-iorquina, segundo a acusação revelada a 8 de julho de 2019. Quando os agentes forçaram a entrada, com um pé-de-cabra, junto à campainha lá estavam as suas iniciais, em latão amarelo, que pareciam ter saltado diretamente de uma camisa de alfaiate. Bastava uma pessoa olhar a porta da rua, de carvalho e com 4,5 metros de altura, para se sentir minúscula.
No outono de 2002, quando o editor da Vanity Fair, Graydon Carter, lhe deu a incumbência de escrever o megaperfil de um misterioso financeiro à la Gatsby, Ward apenas sabia que o Presidente Bill Clinton e os atores Kevin Spacey e Chris Tucker tinham ido numa digressão a África no seu Boeing 727-100, em setembro.
Em outubro, a revista New York reservara seis páginas para um artigo que começava com a frase: “Tem dinheiro para queimar, uma frota de aviões e um olhar atento para as mulheres” [além do jato comercial personalizado, entretanto conhecido como “Lolita Express”, Epstein tinha um Gulfstream preto e um Cessna 421 para viagens mais curtas, e um helicóptero Sikorsky S-76, para o transportar a si e aos seus convidados para a ilha]. Logo no parágrafo seguinte, o jornalista confessava a sua perplexidade: “É uma vida cheia de pontos de interrogação, ninguém parece saber o que raio anda ele a fazer.”
Epstein estaria horrorizado com a onda de atenção gerada pela digressão por África. “Se o meu objetivo final era manter a privacidade, viajar com Clinton foi uma má jogada no tabuleiro de xadrez. Reconheço-o agora”, disse a um amigo. “Mas sabes que mais? Até o Kasparov as faz. É preciso seguir em frente.”
Ponzi também no dinheiro?
O perfil da Vanity Fair arranca com vários parágrafos sobre a excêntrica casa de Epstein que Ward pensou poder ajudar a perceber quem era o seu proprietário – um super-rico que vivia “como um marajá moderno”, dizia um amigo, e, ao mesmo tempo, se comportava de uma maneira obsessivamente privada, analisava ela.
Num tempo em que ainda se usavam listas telefónicas, o seu número aparecia com um pseudónimo. Raramente o apanhavam em casamentos ou funerais. E dizia que comer em restaurantes era “como comer no metro” – isto é, algo que nunca faria.
Sobre a fonte oculta da sua fortuna, a jornalista lembrava que a Bloomberg não referia as suas transações e citava a estranheza de um gestor de investimento de alto nível: “As mesas de negociações parecem não o conhecer. É invulgar que animais tão grandes não deixem pegadas na neve.”
A explicação do próprio era simples e vaga: geria o dinheiro de bilionários (no meio, falava-se num total de 15 mil milhões de dólares) que dependiam dele para serem discretos. Mas, “tal como aconteceu com Jay Gatsby, há mitos e rumores em torno de Epstein”, escrevia Ward.
Encabeçaria ele um esquema Ponzi? A jornalista não escreve isso preto no branco, mas lembra que o seu verdadeiro mentor não tinha sido Wexner, mas sim Steven Jude Hoffenberg, o fundador e presidente da Towers Financial Corporation, uma agência de cobrança de dívidas que em 1993 fora considerada um dos maiores esquemas de pirâmide financeira da História dos EUA (milhares de investidores foram enganados em mais de 450 milhões de dólares).
No final da década de 1980, Hoffenberg contratou Epstein como consultor, por 25 mil dólares por mês. A partir daí, levava-o para todo o lado, no seu avião. Quando o esquema implodiu, só ele se declarou culpado, sendo condenado a 20 anos de prisão de que cumpriria 18, mas em 2016 interpôs uma ação judicial contra Epstein, alegando que tinha sido coautor da gigantesca fraude.
Até que, em janeiro de 2015, estalou o escândalo do príncipe André e Ward foi inundada por pedidos de entrevistas por causa do perfil em que detalhara os pormenores mais obscuros das suas atividades comerciais, primeiro na Bear Stearns e depois na Towers Financial Corporation, escrevendo pelo meio coisas como “Epstein é encantador, mas não deixa que o encanto passe para os seus olhos. São de aço e calculistas, dando a entender o constante zumbido da maquinaria que funciona por detrás deles” ou frases que retrospetivamente nos parecem mensagens muito claras.
“É conhecido como um homem que adora mulheres – muitas delas maioritariamente jovens”, sublinhava. “Já se ouviu modelos dizerem que estão gratas a Epstein por as levar a passear, e ele é uma cara familiar para muitas raparigas da Victoria’s Secret.”
Em 2003, uma jovem contava de ter sido “convocada” por Ghislaine Maxwell para um concerto na casa nova-iorquina, onde as mulheres pareciam ser em muito maior número do que os homens. “Não eram mulheres que se vissem nos jantares do Upper East Side”, recordava.
Essa mesma jovem tinha ido a um cocktail organizado por Maxwell, onde também estava o príncipe André, a abarrotar de jovens modelos russas.
Quando a repórter soube das irmãs Farmer, confrontou Epstein, que negou tudo “e entrou em pânico”. “Ligou-me várias vezes e ao Graydon. Disse: ‘Só a menção a uma rapariga de 16 anos… dá a impressão errada.’”
A verdade é que, no final de 2002, Vicky Ward não podia imaginar que esse caso era a ponta de um icebergue. E, mesmo cinco anos depois, quando ele foi condenado a uma pena de prisão por supostamente solicitar duas prostitutas, terá acreditado tratar-se de mais uma história isolada.
“Muitas vezes me ocorreu que, se o meu artigo tivesse nomeado as mulheres, o FBI poderia ter ido atrás de Epstein mais cedo e talvez algumas das suas vítimas, supostamente pagas ou com demasiado medo de retaliações para se manifestarem, teriam sido salvas”, escreveu num artigo com o título Tentei Avisá-los sobre o Bilionário Desprezível Jeffrey Epstein em 2003, no The Daily Beast. “Ele tem jeito para assustar. Ou tinha.”
Por chamada telefónica, mensagens de WhatsApp ou e-mail, os responsáveis por levar a cabo esta tentativa de fraude apresentam-se como colaboradores da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e propõem-se ajudar na recuperação de montantes alegadamente perdidos em fraudes anteriores.
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Nauru pode ser um dos países mais pequenos do mundo. Por referência a Portugal é também, sem dúvida, um dos países mais longínquos. No entanto, há um ano atrás, a República de Nauru, situada no Pacífico Sul, com o apoio das Nações Unidas, teve uma iniciativa altamente diferenciadora e digna de destaque, promovendo aquela que hoje é conhecida como a “Declaração de Nauru sobre o Bem-Estar Judicial”. Elaborada por diversas lideranças judiciais e por especialistas de diversos países, entre eles Portugal, a Declaração de Nauru veio estabelecer um conjunto de princípios-chave que visam salientar a necessidade de consciencialização de que o stress em contexto judicial não é um sinónimo de fraqueza, nem deve ser estigmatizado. Ao invés, trata-se de uma problemática que deve ser reconhecida e à qual devem ser dadas respostas pelas instituições judiciárias, com uma forte componente de sensibilização e prevenção.
Ciente da importância desta problemática, a Assembleia Geral das Nações Unidas” instituiu o dia 25 de julho como o “Dia Mundial do Bem-Estar Judicial”, que este ano se celebrou pela primeira vez. A votação foi esmagadora, 160 votos a favor, 3 abstenções (do Haiti, de Madagáscar e da Síria) e um voto contra por parte dos Estados Unidos da América, que invocou que a Declaração de Nauru representava a internacionalização do movimento “self-care”, bem como a sua migração para domínios que não lhe dizem respeito. Esta posição isolada, contudo, não surpreende, tendo em conta, por exemplo, que em fevereiro de 2025, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos havia proibido o uso, entre outras, da expressão “saúde mental”, banindo-a de documentos e comunicações oficiais.
Contudo, a posição norte-americana, na era da atual administração, não evitou o estabelecimento de um verdadeiro marco histórico a nível mundial, que consiste no reconhecimento de que a componente física, emocional e mental de quem tem a incumbência de julgar é uma condição fundamental à preservação da independência, imparcialidade e integridade do sistema judiciário. E a instituição de um Dia Mundial alusivo à questão é também demonstrativo da importância que a mesma tem em tempos de ataques à independência judicial um pouco por todo o mundo.
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Contudo, e apesar da posição progressista manifestada pelas Nações Unidas, a verdade é que o tema nem sempre é objeto de cabal compreensão, muito por força de uma visão desfocada e até populista sobre o mesmo. Efetivamente, falar de bem-estar judicial, não raro, é visto como uma forma de alusão a privilégios atribuídos aos juízes e não como um alerta para a criação de condições tendo em vista a prestação de uma melhor administração da justiça para as pessoas e em nome destas. Esta visão distorcida, aliás, não deixa de encontrar eco, por vezes, no seio das próprias instituições responsáveis pela gestão dos sistemas de justiça, gerando, por via da desvalorização do fenómeno da saúde, do stress e até do burnout, uma maior pressão, manifestamente contraproducente para a desejável eficiência que do sistema se pretende extrair.
Por outro lado, seja no meio judicial, seja no meio empresarial ou no âmbito de quaisquer outras atividades que impliquem uma vertente profissional, a questão da saúde, e em especial da saúde mental, permanece ainda hoje, e de forma generalizada, como um tabu. Os profissionais evitam falar, os responsáveis evitam ouvir, e os sistemas, sobretudo os que assentam os seus pilares fundamentais na componente humana, tendem a perder eficiência enquanto persistirem numa lógica de negação. Na verdade, e no que ao sistema de justiça concerne, não é raro verificar-se a preferência por um deslumbramento estatístico e de mera aparência quantitativa, olvidando-se a componente das concretas condições em que as pessoas se encontram a trabalhar e do que isso pode significar em termos de qualidade decisória. Em geral, as preocupações com estas matérias ficam-se pelas proclamações de circunstância. A prevenção não vai muito além do meramente cosmético e a sensação generalizada que se instala é a de que se vai trabalhando no limite, sem apoio institucional bastante, e em contexto de enorme frustração.
Ora, enquanto a comunidade global avança seriamente no debate sobre a saúde judicial, Portugal persiste enfrentando desafios concretos. Segundo o relatório anual do Conselho Superior da Magistratura relativo a 2024, o número de juízes em efetividade de funções registou a queda mais acentuada nos últimos cinco anos, caindo de 1775 em 2020, para 1716 em 2024, e isto apesar de ali também se constatar que as taxas de resolução dos processos têm tido uma trajetória de evolução favorável. Nesta sequência, o mesmo CSM reconhece que estão identificados riscos psicossociais relevantes associados ao exercício da função judicial, como a sobrecarga de trabalho, a falta de meios, a complexidade dos processos e a pressão dos prazos, com impacto negativo na saúde física e mental dos juízes, ao que acresce “uma cultura profissional que tende a desvalorizar os sinais de exaustão e stress, potenciando situações de burnout.”
Perante esta realidade, e afastando a ilusão de que, descurando as pessoas, tudo se resolve à base da informática ou das novas tecnologias, faz sentido perceber que a data que hoje se assinala insta diretamente os governos, os órgãos de gestão e as sociedades a refletirem sobre políticas permitam promover a saúde e a eficiência do sistema judicial, mediante, no caso de Portugal, e a título de exemplo, o estancamento da sucessiva quebra do número de juízes, o estabelecimento efetivo de um sistema eficaz de assessorias, a apresentação de soluções concretas e efetivas de suporte psicológico e de gestão do stress, bem como a concretização de uma cultura que promova a realização pessoal e profissional de quem serve o sistema.
Tal como na saúde, na educação, nas forças policiais, na aviação civil e em tantas outras áreas em que está em causa a segurança ou a vida concreta das pessoas, nas suas diversas dimensões, também nos tribunais a carga de trabalho pesa sobre a capacidade de decisão, de acerto e de resposta do sistema. Uma magistratura cada vez mais reduzida, e sem uma perspetiva de inflexão no curto prazo, continuará a colocar o sistema num plano de stress crescente por um período de tempo que se afigura indesejavelmente prolongado. Ora, a Declaração de Nauru e o Dia Mundial que hoje se assinala exigem, efetivamente, que o país abrace práticas que tragam segurança física, suporte mental, equilíbrio pessoal e uma gestão humana dos quadros judiciais. Trata-se de um alerta para um compromisso que foi formalizado pela ONU no sentido de se assegurar a proteção de quem tem incumbido o dever de administrar a justiça.
Com as suas virtudes e fragilidades, a justiça consiste numa construção humana. É feita por pessoas, dirige-se a pessoas e é um direito de todos. O bem-estar judicial e a humanização da justiça não se tratam de questões relacionadas apenas com a resiliência individual de cada juiz, mas antes contendem diretamente com a independência, a integridade e a eficiência dos sistemas judiciais, em Portugal como no Mundo. O reconhecimento deste assunto no âmbito das Nações Unidas apenas ocorre por via da compreensão, ao mais alto nível, de como a saúde do judiciário é, também ela, fundamental para a própria democracia, o que jamais podemos perder de vista.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Corria o verão de 1978 quando coloquei, pela primeira vez, uma máscara de mergulho na cara! Entrei dentro de água na Praia do Ouro em Sesimbra, em frente ao destroço do histórico navio couraçado Numancia, e o que vi através daquela janela foi inesquecível! Na água cristalina e calma, as rochas sobre o fundo de areia estavam cobertas de algas e com vastos cardumes de pequenos peixes. Fiquei cativo do mundo submerso para sempre.
Nas férias de verão seguintes, voltei a mergulhar nestas águas dezenas de vezes. Fui conhecendo as espécies de peixe, os seus hábitos, os seus segredos e esconderijos. Mais tarde, com fato de mergulho, conheci toda a costa portuguesa de norte a sul. Com o curso de mergulho fui viajando por outros oceanos além-fronteiras. Mas o meu estúdio, onde experimentava novos equipamentos fotográficos, novas técnicas de iluminação e aprendia sobre ecologia, biologia, oceanografia, sempre foram os fundos entre o cabo Espichel e a Arrábida.
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Na década de 1990, à hora da novela, vestia o fato de mergulho e com as garrafas às costas entrava na água, nadava uns metros e deixava-me cair para o fundo de areia, na mesma praia do batismo. Com o sol deitado atrás da falésia, assistia à metamorfose nas areias. O turno do dia enterrava-se na areia fina, ou escondia-se num recanto seguro, enquanto o turno da noite despertava como zombies do areal. Milhares de estrelas-do-mar, lulas, potas, camarões, caranguejos, entre muitas outras criaturas, começavam a circular na penumbra da noite. O palco era o mesmo, apenas a luz e os atores mudavam em poucos minutos.
Em 1998, com pompa e circunstância, durante a Exposição Mundial em Lisboa ‒ Expo’98 sobre o tema dos Oceanos, foi anunciada a criação do Parque Marinho Prof. Luiz Saldanha. Uma área protegida que se estende desde a Praia da Foz a norte do cabo Espichel até à Praia da Figueirinha às portas de Setúbal.
Esta área classificada abrange cerca de 53 km2 e assenta numa linha de costa de 38 km, essencialmente de falésias altas e praias de areia.
Após a sua criação, só em 2005 foi detalhado o plano de ordenamento com regras e limitações para todos aqueles que usam este espaço.
O território protegido passou a ter zonamentos e condicionamentos, em função da área em causa: proteção total, proteção parcial, ou proteção complementar.
Com importantes comunidades piscatórias (Sesimbra e Setúbal), turismo intenso oriundo da Grande Lisboa e arredores, bem como muitas atividades lúdicas náuticas, não tem sido fácil gerir uma área protegida com estas características.
Aos poucos, ano após ano, começo a registar muitas espécies, em locais onde nunca as tinha visto. Muitos peixes, que apenas os observava com tamanhos juvenis, começo a vê-los em fase adulta avançada e com bom porte. Robalos, douradas, pargos, entre outros peixes, com valor comercial. Os cardumes de várias espécies começam a ser mais numerosos. Algumas zonas da costa da Arrábida parecem aquários, repletos de vida, desde pequenos invertebrados até grandes vertebrados.
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Próximo de Lisboa e do estuário do Sado, o Parque Marinho estende-se ao longo de 38 km da costa sul de Setúbal, entre a serra da Arrábida e o cabo Espichel, desde a Praia da Figueirinha à Praia da Foz.
Área: 52 km² Extensão: 38 km de costa Profundidade máxima: 100 m Região: Lisboa e Vale do Tejo Distrito: Setúbal Concelhos: Palmela, Sesimbra e Setúbal Espécies marinhas: > 1 000
Um dos bons exemplos do incremento das dimensões e variedades de peixe é o recife artificial do River Gurara, um navio nigeriano, com 175 metros, que naufragou em fevereiro de 1989 a sul do cabo Espichel. Hoje, um aglomerado de chapas e outras estruturas são um ex-líbris deste parque marinho e um local de peregrinação regular para centenas de mergulhadores.
Todos os anos, revisito locais, converso com os pescadores de inúmeras artes de pesca que trabalham na zona do parque e nos seus arredores. Falo com vários cientistas de várias universidades e instituições que por ali desenvolvem estudos, pesquisas pormenorizadas, que avaliam desde minúsculos animais do plâncton até grandes predadores de topo. As tecnologias sempre a evoluir, a miniaturizarem-se, a possuir mais autonomia de trabalho, mais capacidade de registar dados, vão revelando informações e conhecimentos verdadeiramente notáveis. E mais não se faz, na área da Ciência, nesta zona por não existirem os investimentos necessários para a sua continuidade ou implementação.
O balanço é positivo, mas ainda há muito por fazer na gestão desta área classificada. Muitas vezes, o saber existe, os processos são conhecidos, mas é necessário implementar no terreno as medidas mais eficazes.
É notório que será necessário dar mais atenção às atividades lúdicas, como, por exemplo, o mergulho. Melhorar os acessos às praias e manter os equipamentos. Aumentar a informação sobre esta zona protegida e, claro, não descurar a fiscalização sobre importante património natural.
A comunidade piscatória é igualmente um elemento importante para conhecer a dinâmica deste território. Ninguém passa mais tempo no mar do que os pescadores, o saber adquirido ao longo de décadas, de gerações, é hoje uma importante ferramenta para compreender o presente, ou mesmo o futuro. Já ouvi histórias muito antigas que pensei que fossem fantasia, ou exageros de pescadores e caçadores do passado.
Quando assisto a determinados fenómenos nos últimos anos, que não imaginava alguma vez presenciar nas águas de Sesimbra, vêm-me à memória relatos antigos de marítimos da “Bela Piscosa” ‒ Os Lusíadas ‒ Canto I.
Baleias e golfinhos
Há séculos que estas criaturas nadam por estas águas, mas durante muito tempo foram quase um segredo bem guardado dos pescadores locais. Hoje, existem várias empresas de observação de cetáceos em Sesimbra que realizam viagens diárias para ver de perto estes mamíferos marinhos. Se os golfinhos-comuns e o roazes são as espécies mais frequentes nestas paragens, todos os anos são ainda avistadas baleias-comuns, baleias-anãs, baleias-piloto, orcas e golfinhos-riscados. No cardápio de registos não faltam algumas espécies de tubarões, e outros megapeixes como atuns e espadartes.
Numa viagem ao largo da costa, não só podemos ver estes belos animais marinhos, mas também muitos deles em interação de caça com aves marinhas.
Para quem gosta de observar aves marinhas, o final do verão será a melhor altura do ano para se maravilhar com a diversidade de espécies que ali ocorrem (cerca de uma vintena).
Mega fauna Não é prática comum, mas o mergulho com tubarões-azuis ao largo da costa de Sesimbra-Cabo Espichel pode ganhar maior fôlego. Curiosamente, nesta zona este do Atlântico, a maioria dos tubarões-azuis observados são fêmeas, como este, que veio, curioso, contemplar os mergulhadores
Cinco mergulhos especiais
> Jardim das Gorgónias
Será um dos mergulhos mais famosos de Sesimbra. A poucas milhas do Porto de Abrigo, este cabeço de rocha, a leste da vila piscatória, tem inúmeras gorgónias e uma diversidade de invertebrados notável. Nalgumas zonas da pedra existem “estações de limpeza” onde grandes e pequenos peixes vêm pedir os serviços de desparasitação aos habitantes mais habilitados para esta tarefa, como pequenas sarguetas ou bodiões.
> Pedra do Leão
Esta pedra icónica de Sesimbra tem na sua base uma arcada muito ampla, apreciada por várias espécies de peixes. Não é difícil encontrar cardumes de centenas de indivíduos à sombra desta rocha em dias de grande calmaria. Um deleite visual, para mergulhadores iniciantes e consagrados.
> “River Gurara”
Com o passar dos anos, toda a estrutura do navio vai colapsando. Mas a criação do Parque Marinho Prof. Luiz Saldanha veio permitir que este recife artificial fosse colonizado por uma diversidade de fauna notável. Não sendo permitido pescar na zona, os grandes peixes encontraram ali um refúgio perfeito para viver durante longos períodos. Com boas condições de mar, é uma imersão inesquecível.
> Ponta da Passagem
Perto do cabo Espichel, e numa zona muito hidrodinâmica, há uma ponta rochosa que tem uma arcada submersa de grande dimensão. No verão, esta área costuma ficar coberta de grandes algas laminárias. E onde há uma frondosa floresta de algas castanhas, há muita vida.
> Batelão
Fica ao “virar da esquina”, na base do molhe de Sesimbra. Do lado de fora da infraestrutura-esporão, existe um destroço de um batelão de ferro. Ao contrário do que se poderia imaginar, esta zona é riquíssima em peixe. E quando as águas estão cristalinas e quentes, é impressionante ver os cardumes a circular na zona. Em setembro e outubro é quase certo o encontro com cardumes de milhares de tainhas em cortejos nupciais.
Luís Quinta Mergulha há mais de 45 anos nas águas do Parque Marinho Prof. Luiz Saldanha – Sesimbra
O multipremiado fotógrafo e realizador de história natural Luís Quinta é colaborador regular da National Geographic Magazine e da revista VISÃO.
Publicou mais de um milhar de artigos e reportagens na imprensa nacional.
Tem diversos artigos e imagens publicadas na imprensa internacional.