Bem dizia o Emídio Rangel, em tempos, que a televisão podia “vender” um Presidente da República. E não foi isso que aconteceu com o atual? Só que Marcelo Rebelo de Sousa tinha atrás de si toda uma carreira política e o País conhecia o seu pensamento.
Se, por um lado, Gouveia e Melo tem a virtude de surgir de fora do universo partidário, numa altura em que os partidos políticos estão algo desacreditados aos olhos do cidadão comum, o grande óbice será a aura sebastianista que o cobre, em linha com a tradição mística portuguesa.
Afinal, o que tornou conhecido o homem dos submarinos foi o plano de vacinação contra a Covid-19. A questão é que isso não chega para assumir a presidência dum país. O militar criou uma persona a partir daquela bem-sucedida missão, mas cujo mérito não pode ser atribuído a um só homem. Como se sabe a task force contou com milhares de elementos, civis e militares e a atenção e empenho permanentes do governo, autarquias e presidência. Afinal, o mérito estará também e sobretudo no comando militar que o nomeou para essa missão.
Cada vez é mais evidente que as pessoas andam à procura de heróis. É uma necessidade popular. Mas os verdadeiros heróis são os cidadãos que criam os filhos com sacrifícios e imensas privações, sobrevivendo neste país com o salário mínimo. Heróis são as mulheres dos subúrbios das grandes cidades que se levantam de madrugada para gastar horas nos transportes a caminho de empregos miseravelmente pagos, e no final do dia voltarem a casa derreadas no corpo e na alma.
O que Portugal precisa em Belém não é de um militar austero, sisudo e com fama de competente, mas sim de alguém que conheça o País, as suas forças e fraquezas, virtudes e defeitos, e saiba compreender as oportunidades que estão à sua frente. O episódio Eanes teve um tempo próprio e adequado que já lá vai, e apesar da sua impreparação política na época, Eanes soube honrar a confiança dos portugueses. Mas Gouveia não é Eanes porque este tem pensamento próprio. E não precisamos de um homem providencial, um dom sebastião ou um salvador da pátria, como querem as viúvas de Salazar, pois esse tipo de solução acaba sempre por correr mal.
A imagem de disciplina e autoridade não chegam para fazer um país. O discurso nacionalista pode agradar muito à extrema-direita mas não basta. Nem isso nem o facto de envergar um camuflado. É necessário ter pensamento político e um projeto próprio. Eu disse autoridade, não autoritarismo. Não nos esqueçamos da sua controversa atuação durante o incidente da tripulação dos militares da marinha na Madeira.
Por outro lado, voltarmos a ter um militar à frente do País, num estado de direito democrático é esquisito e perigoso. É andar para trás. E o último almirante em Belém só suscita más memórias.
Mas um dos maiores óbices a esta candidatura é o apoio oportunista do Chega. O apoio dos populistas da direita radical é razão mais do que suficiente para não a apoiar por uma questão de princípio. No momento em que se candidatar Gouveia e Melo tem que vir dizer se está à vontade com tal apoio político. Além disso, como vai ele lidar com o apoio dos negacionistas anti-vacinas que pululam no CH, quando em plena campanha de vacinação em massa, durante a pandemia, foi insultado e alvo de tentativa de boicote por parte de alguns deles?
A mais que provável candidatura de Gouveia e Melo a Belém resulta de um equívoco. Nada se sabe sobre as ideias políticas do almirante para o País, e mesmo assim o militar é apontado como favorito, graças à comunicação social que o tem vindo a levar ao colo há muito.
Claro que qualquer cidadão português com mais de trinta e cinco anos se pode candidatar, mas sejamos sérios, o País necessita de uma figura com experiência política em Belém, e de preferência que saiba o que é a governação. Já nos bastam uns quantos burgessos que temos como deputados municipais, no parlamento e nas assessorias políticas.
Além do mais, Portugal, apesar de já ter andado debaixo de água, ainda não é um submarino. E esperemos que nunca o seja.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR:
+ As mulheres sempre estiveram na frente
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.