Esta é a história do Luís, mas podia ser da Ana, do António ou do João. É a história de como a cada setembro encaixamos professores como se encaixam peças de puzzles, desarrumando vidas. É a história de uma profissão que durante anos aprendemos a odiar, vítima das piores caricaturas, até percebermos que precisamos deles como do chão que pisamos, porque sem eles nada floresce. Porque os professores são tudo: educadores, assistentes sociais, amigos, psicólogos. Só lhes falta terem rodas.
O Luís deixou de ser professor na altura em que a Troika assentou arraiais em Portugal. As horas das disciplinas que dava tinham sido reduzidas, os horários completos escasseavam e o que pagavam não dava para as despesas. Fez-se à estrada. Literalmente. Foi trabalhar como motorista.
Quase dez anos depois, o cenário parecia melhor e concorreu. Ficou com um horário quase completo e voltou aonde sempre quis estar. As coisas pareciam encaminhar-se e, no ano passado, conseguiu entrar para os quadros através de uma coisa chamada “vinculação dinâmica”. Estava a poucas dezenas de quilómetros de casa. Em contrapartida, este ano ficava obrigado a concorrer ao país todo. Resultado? Ficou colocado em Lisboa, a centenas de quilómetros da casa que está a pagar ao banco e onde estão os dois filhos pequenos.
Desesperado com os preços dos quartos em Lisboa, Luís ouviu de uma amiga a solução que agora lhe parece ser a única. Vai fazer ida e volta entre Lisboa e Coimbra todos os dias. A amiga faz o mesmo entre Coimbra e Amadora há um ano. Fizeram os dois as contas e chegaram à conclusão de que quase 400 euros em autocarros por mês e duas horas de viagem por dia de trabalho compensam.
“Vou aproveitar as viagens para ler e trabalhar”, diz-me, ainda sem saber bem como será esta aventura. “Vai ser complicado. Vai ser difícil. Não tenho dúvidas. Mas as pessoas habituam-se a praticamente tudo”.
Como professor, o Luís já está há muito habituado a “praticamente tudo”, embora ainda lhe faça confusão o facto de, já depois de colocado, terem aparecido quase 400 novos horários a norte, quase todos em escolas muito mais próximas de casa do que aquela que lhe calhou, que irão agora provavelmente para docentes com menos anos de serviço do que tem. “Porque é que estes horários só aparecem agora?”, exaspera-se.
E não pode receber os tais 200 euros de ajudas de custo que compensam ter ficado tão longe? “Não tenho direito. A minha escola não tem falta de professores”, responde-me, num tom a meio caminho entre a indignação e a ironia que, isto já se sabe, uma pessoa habitua-se “a praticamente tudo”.
Os professores já estão habituados a acabar agosto com o coração nas mãos e as malas à porta, numa migração interna que em Portugal é capaz de só ter comparação com aquela que, até aos anos 70, levava milhares de camponeses rumarem da Beira Alta para o Alentejo para ceifar. Eram conhecidos como os “ratinhos”, porque, diziam os do sul, iam para lá “roer o nosso pão”. Os professores de agora parecem, porém, condenados a comer apenas o pão que o diabo amassou.
São criaturas estranhas, que falam em siglas incompreensíveis. QZP, TEIP e outras de um eduquês tão difícil de decifrar que me lembro de, nos primeiros meses como jornalista de Educação, ter feito num caderninho uma espécie de dicionário só para conseguir acompanhar as conferências de imprensa. Conhecem o país de norte a sul, apanham com as modas dos miúdos e as mudanças sociais dos pais. E estão cansados. Estão muito cansados. Mas, por algum motivo, resistem. Seja porque não sabem fazer outra coisa, seja porque há profissões que se nos colam à pele e não as conseguimos deixar sem perder um pedaço de nós.
Penso nos professores que tive. Sou capaz de ter tido dos maus, mas só me lembro dos bons. Da D. Clara, que me ensinou as primeiras letras. Da D. Rosete, que me fez ganhar confiança e gosto pela escola. Da Prof. Ana Amaro, que me apresentou ao Gil Vicente e me fez gostar de Teatro. Da Prof. Helena Castro, que me fez apaixonar-me pelo Camões, sorrir com o Eça e encantar-me com o Cesário Verde. Da Prof. Olga, que me fez entender o Kant como se fosse uma coisa simples. E de tantos e tantos outros, que este texto não chegava nem para nomear muito menos para agradecer tudo o que fizeram por mim.
Para que as escolas não sejam depósitos de alunos, mas lugares de construção de cidadãos, é preciso que lá estejam professores felizes, estáveis, com condições materiais. Escrevo o óbvio. Mas preciso de escrever o óbvio, porque não há maneira de isto se resolver. Talvez se lhes puserem rodas…