Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
A pandemia despertou o Professor Karamba que há em nós. O espírito de treinador de bancada, normalmente exclusivo do futebol, alagou todas as outras esferas da existência humana: na ponta final do campeonato, cada português tem a receita para a vitória, sendo detentor absoluto da tática e técnica. Hoje, da política à saúde, da economia à sociedade, da cultura à ciência, os assuntos efervescem em debates como aspirinas. Mas por mais que o resultado possa, muitas vezes, ser péssimo, dada a impreparação do cidadão comum para opinar sobre temas que desconhece profundamente, há um lado entusiasmante na mobilização de um país onde o envolvimento cívico é, no habitual, nulo. Se a falar é que a gente se entende e o entendimento é desejável, o diálogo só pode ser positivo. Poderemos estar a cultivar, enquanto comunidade, mais interesse pelo mundo que nos rodeia?
Portugal figura nos últimos lugares do índice europeu que mede a cidadania activa (Measuring Active Citizenship in Europe). Em suma, somos geralmente dos que menos participam, dos que menos se organizam e dos que menos querem saber. Dói, mas é verdade, pelo menos até deixarmos que seja. Em Maio de 2019, por exemplo, Portugal bateu o recorde de abstenção nas eleições para o Parlamento Europeu – só 31 em cada 100 portugueses com direito a fazê-lo foram votar. Passado um ano, estamos todos dependentes da resposta europeia à crise pandémica, que passará pelo mesmo Parlamento. É uma espécie de karma: lembram-se de quando nos tivemos nas tintas para escolher os nossos representantes, porque se estava melhor na Fonte da Telha? Cá estamos. Será de crer que, se as eleições fossem hoje, com a vida por um fio, mais de nós se importariam?
A cidadania activa é o compromisso entre o cidadão e o todo. O coronavírus evidenciou o melhor e o pior desta relação. Participar na sociedade em pleno implica procurar saber, formar opiniões com fundamento e pensar em grupo. Aqui, a solidariedade, a preocupação cívica e ambiental, a politização, a pertença a movimentos, associações e iniciativas cidadãs entram em cena. O facto de que os países mais desenvolvidos são também aqueles onde a comunidade se envolve mais sugerem que a parca participação do nosso nobre povo, nação valente e imortal, pode estar na base dos maiores problemas do país. Se vamos a tempo de mudar isto? Claro. Mas o que saberá a geração mais formada de sempre sobre isto?
Perdoe-me a geração mais escolarizada da História, da qual sou suposto membro, mas temos de falar sobre um flop no nosso currículo: Formação Cívica e Educação para a Cidadania. Os nomes variam para a disciplina onde devíamos ter aprendido tudo e não aprendemos grande coisa. Em matéria de direitos, deveres, como votar, formar opinião ou defender a liberdade constata-se que os jovens portugueses chumbariam em massa e isso é flagrante em cada mesa de café, em cada mural do Facebook. Contra todas as espectativas, a desinformação é gritante nas redes sociais, a impreparação é notória nos debates e os índices comprovam-no: a nossa participação na construção da sociedade é irrisória. Este problema não é obviamente exclusivo dos mais jovens, mas antes geral, e o vírus veio evidenciar isso desde o primeiro segundo, pelo modo como obrigou tanta gente a pensar em tanta coisa na qual nunca tinha pensado. Nesse campo, as manifestações contra a violência policial, o racismo e as políticas da direita autoritária, por exemplo, parecem acender uma luz. Muitas pessoas estão pela primeira vez a pensar nestes problemas de forma séria e esse é o verdadeiro fenómeno. O verdadeiro fenómeno é o debate alargado sobre questões centrais, e não o que um único totó escreveu num cartaz entre dezenas de milhares de pessoas. Discutir a liberdade ou a igualdade com quem nunca pensou nela a fundo é, por vezes, frustrante. Mas lá está. Poderemos estar aqui perante uma viragem?
Regressemos às aulas de Formação Cívica: ambicionando fazer evoluir mentalidades, o Ministério da Educação concebeu um espaço semanal para desenvolver a cidadania nos mais novos, mas parte das escolas pode ter desprezado esta urgência. Isto é mais um palpite do que um estudo científico, mas várias pessoas de distintas idades, geografias, instituições e áreas de formação me confirmaram a suspeita: de modo geral, ninguém sabe bem o que andou a fazer nessa disciplina. Maioritariamente, as aulas de Cidadania foram sessões de fait divers, dos meninos que se andavam a portar mal ou, por exemplo, de matemática, quando a directora de turma era a professora de matemática. Isto é lamentável. Por um lado, será irrealista acreditar que quarenta e cinco minutos por semana chegariam para formar uma geração. Mantenho-me ao lado dos professores na certeza de que a educação também tem de vir de casa, de que as escolas não têm toda a responsabilidade pela má criação de quem fervilha em hormonas e de que há valiosíssimos esforços nesse sentido. Por outro, parece-me que poderíamos ter aproveitado esse tempo para trabalhar o mínimo dos mínimos: conceitos fundamentais, direitos humanos, igualdade, liberdade, justiça, ecologia, sociedade, informação, de forma a garantir que saíamos da escola com a noção de que, sendo todos iguais perante a lei, não somos todos cidadãos iguais. Isto é importante: respirar não chega para se ser cidadão e a nossa “qualidade” vem do nosso envolvimento. Ter tido horas e horas de Formação Cívica e não ir votar, sendo totalmente acrítico em relação ao universo, é como chegar ao 12º ano e passar a português sem saber o abecedário, ou seja, não se compreende. Esta mudança tem de acontecer.
A cidadania tem deveres. Há bons cidadãos e cidadãos medíocres. As opiniões são todas válidas, mas não são todas iguais, nem muito menos valem o mesmo. Não querer saber não é engraçado, é ignorância, e a ignorância é triste e perigosa. É urgente que esta diferença seja clara, em especial num momento em que a gestão de uma crise sem precedentes, com a montanha-russa política que aí vem, obrigará a uma mobilização brutal e a uma atenção astuta da parte de todos. Esperemos que o medo do vírus e a necessidade de reconstrução nos tenha acordado, porque o interesse é de todos. Temos mesmo de poder contar com todos.