Poucas alterações legislativas no setor vitivinícola português suscitaram tanta atenção como o Decreto-Lei n.º 106/2025, que aprovou o novo Estatuto das Denominações de Origem e IG da Região Demarcada do Douro. Entre as novidades, destaca-se a eliminação da obrigação de “volume mínimo de existências” para comerciantes de vinho do Porto: o célebre stock mínimo.
A decisão divide opiniões. Para uns, é uma libertação de uma regra anacrónica que funcionava como barreira à entrada. Para outros, é a queda de um dos travões que protegiam a reputação de um dos vinhos mais prestigiados do mundo.
Breve fio histórico
Desde a demarcação pombalina de 1756, o Douro vive sob mecanismos de regulação próprios. O marquês de Pombal criou a Companhia Geral e instituiu instrumentos inéditos de disciplina. Entre eles, três marcaram o setor:
– O benefício, que limita a quantidade anual de mosto a fortificar;
– A lei do terço, que relaciona vendas e existências;
– O stock mínimo, exigência de capacidade de armazenagem como condição de acesso ao mercado.
Durante o século XX, diversos diplomas consolidaram este modelo. O DL 166/86 abriu o comércio à produção. O DL 173/2009 estabilizou o regime e a Portaria 40/2019 fixou o stock mínimo em 75 000 litros, reduzindo o valor histórico de 150 000. Hoje, o DL 106/2025 elimina essa exigência.
O que era e porque caiu
O stock mínimo funcionava como teste de solidez financeira e de capacidade de envelhecimento: só podia ser comerciante quem tivesse reservas significativas em cave.
A sua extinção justifica-se por três razões:
– Coerência europeia: podia ser visto como barreira desproporcionada face ao mercado interno da UE;
– Redundância: já existem mecanismos de disciplina como o benefício e a lei do terço;
– Acesso ao mercado: excluía quintas e pequenos produtores, perpetuando concentração.
As duas visões em confronto
Os tradicionalistas defendiam que o Porto exige disciplina rigorosa. O stock mínimo era uma “almofada estrutural” que garantia reputação, tempo e consistência. Sem ele, arrisca-se a corrida a vinhos jovens, volatilidade de preços e fragilidade na imagem secular do vinho.
Os críticos veem nele uma barreira de exclusão. Grandes casas beneficiavam das reservas históricas, enquanto pequenos operadores ficavam afastados. Para estes, qualidade não depende de litros parados, mas do rigor da certificação, dos tempos mínimos de estágio e da fiscalização do IVDP.
Concorrência europeia
Juristas alertavam que o stock mínimo podia colidir com o direito da concorrência da UE, ao limitar o livre acesso ao mercado. Os defensores contra-argumentavam que a singularidade do Porto justificava medidas excecionais. O Governo optou pela liberalização, reduzindo riscos de litígio em Bruxelas.
A lei do terço como travão
Com o fim do stock mínimo, ganha relevo a lei do terço. Este mecanismo limita as vendas em função das existências e permite adquirir capacidade via compras à produção, garantindo guarda em cave e evitando excessos. A disciplina mantém-se, mas num modelo mais dinâmico e menos patrimonialista.
Vantagens:
– Abertura de mercado a pequenos e médios produtores;
– Maior eficiência financeira, sem capital imobilizado;
– Alinhamento europeu;
– Dinamismo e inovação, com mais operadores e diversidade de marcas.
Riscos:
– Volatilidade de preços e baixa de preços se houver excesso de Portos jovens;
– Impacto na remuneração das uvas, já baixa e com tendência sustentada nesse sentido;
– Dúvidas sobre consistência de lotes;
– Abertura de operadores e produtos, exigindo maior vigilância do IVDP.
O fim do stock mínimo é um marco histórico que representa a passagem de uma disciplina rígida e patrimonial para uma disciplina dinâmica e interprofissional. Os defensores da abertura celebram a democratização e a inovação. Os tradicionalistas receiam perder um travão simbólico que assegurava solidez ao sistema.
No fundo, a questão é de confiança: serão o IVDP e o Conselho Interprofissional capazes para gerir o setor com equilíbrio entre liberdade e disciplina? Se a aposta resultar, será um passo em frente para a sustentabilidade e a projeção internacional da mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo. Se falhar, poderá revelar-se uma fragilidade estrutural numa região que já por si há décadas luta para sobreviver.
Só o tempo e o mercado darão a resposta…
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