A minha avó era produtora de vinho e lembro-me de, num Setembro já velho (teria eu uns sete anos) olhar para os meus pés roxos de pixar uvas e pensar “esta estória do vinho deve ter uma razão qualquer de ser que me ultrapassa agora mas que descobrirei mais tarde”. E tinha razão.
Com muitos anos, muitas viagens e muitos copos, apercebi-me de que a busca de realidades tenuamente deturpadas pela etilização é um assunto que interessa a uma fatia considerável da humanidade. E as formas como o fazemos são alegremente variadas.
Dos portugueses, é o vinho. De nacionalismo, acho que só temos o orgulho na idade provecta da nossa nação. Aceitamos toda a casta de novidades e de intrusões, desde que vindas de fora. Acho que a época áurea das Descobertas deixou na nossa maneira de ser a capacidade de aceitação quase instantânea da novidade e do diferente – aceitamos como aceitável todas as boas coisas vindas de fora. Excepto o vinho. Com o vinho não se brinca. Um português que compre um vinho espanhol é um traidor que se deve agarrar pelo cachaço e arrastar até à beira de uma janela alta, já se sabe para fazer o quê. Somos umas esponjas, mas criteriosos.
Na América, bebi principalmente cerveja, em festas de imberbes teenagers quando era teenager imberbe. Comprávamos barris que levávamos, no final do Verão, para o interior da floresta na esperança de não sermos apanhados. O frio era tanto que só se conseguia motivar a cerveja a fluir acendendo-lhe uma fogueira por debaixo. Depois a polícia aparecia, com um ar feroz, e fugíamos ainda mais para dentro da floresta, copos de plástico a salpicar a roupa, a rir desalmadamente. E os polícias divertiam-se connosco, neste jogo inócuo de gato e rato.
Na Bélgica, aprendi duas lições preciosas de um empregado de mesa num restaurante voltado ao Mar do Norte: como verter no copo uma cerveja trapista para que a proporção de espuma seja perfeita, e que a vida é curta e que por isso não se devem deixar coisas boas por fazer (ele estava ali como empregado de mesa por mais um mês, a juntar dinheiro para ir viajar pelo mundo porque lhe tinha sido diagnosticada uma doença terminal e os médicos davam-lhe mais uns seis meses de vida). Na Bélgica a cerveja bebe-se ininterruptamente em pequenos golinhos ao longo de todo do dia, mantendo um estado de muito ligeira inebriação que ajuda a perspectivar o quotidiando até tombar a cabeça na almofada.
Na Noruega… bem… é preciso começar por explicar que tenho – pelo mundo fora – feito amigos para a vida partilhando um copo. Por aqui a coisa é um bocadinho mais complicada; quando os noruegueses bebem ficam meridionalmente felizes ao segundo copo – de repente, a camadinha de gelo nórdica derrete e por debaixo revela-se uma pessoa genial, carregada de bonomia, boa-vontade e humor. Um norueguês com os copos é das coisas mais divertidas que há. Mas no dia seguinte não se lembra de nada, não se lembra do que aconteceu, do que disse, não se lembra de com quem falou, nada. Eu sei porque – como bom português – no dia seguinte continuo carregado de bonomia-boa-vontade-e-humor, mas a reacção que encontro é mais de “por favor desaparece, vai ali para o fundo morrer num sítio qualquer onde eu não te veja nem te oiça”, ou então pura e simplesmente não me reconhecem e não percebem porque razão estou a sorrir e a falar com eles sobre eventos que aconteceram ao seu irmão ou irmã gémeo(a) que não vêem há mais de 12 anos. Sair à noite na Noruega é um bocado como ver um daqueles filmes de ficção em que no dia seguinte volta tudo outra vez à estaca zero. Por isso, por um lado é divertido, porque sempre que saio à noite conheço gente genial e carregada de bonomia, boa-vontade e humor, que se tornam meus amigos para toda a vida; por outro lado, a vez seguinte que sair à noite, já sei que vou encontrar exactamente as mesmas pessoas, igualmente cheias de bonomia, boa-vontade e humor mas que não fazem ideia de quem eu seja.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: cerca de 30.
Nas notícias por aqui: O Ronaldo, que não se sabe bem se vai ou se fica.
Um número surpreendente: O consumo de álcool per capita (parâmetro, litros de álcool puro) na Noruega é de 7,7 l. A média europeia é de 10,9 l de álcool puro per capita. A média portuguesa é de 12,9 l de álcool puro per capita.