É difícil passar eficazmente uma mensagem em jeito de homenagem que faça justiça a Fernanda Lapa. Tentei fazê-lo nestes últimos dias, mas estava demasiado próxima para ser capaz.
Agora que se despediu de nós, solto aqui algumas palavras sobre esta Mulher Maior que nos impressionou ao longo da sua vida pelo seu inegável exemplo de coragem, pela luta por direitos iguais entre homens e mulheres, pelo grande amor ao teatro, pela luta por melhores condições de trabalho no campo das artes, pela valorização da cultura, pela criatividade, pela sua inteligência, pela sua imaginação, encenando o que poucos ousariam sobre o que nos seduz e agarra.
Não vou transcrever o percurso da Fernanda Lapa, porque já todos conhecem e não caberia no espaço deste texto. Fernanda Lapa foi atriz, encenadora, professora de teatro, mulher de lutas artísticas, políticas e sociais, revolucionária, antifascista, determinada. Nunca calou a voz. Íntegra!
Dedicou a sua vida ao teatro, a sua grande paixão. Fundou a Casa da Comédia, depois a Escola de Mulheres-Oficina de Teatro, estrutura a que dedicou os últimos 25 anos da sua vida. Fez, cinema, televisão, marcou presença em colóquios e outros encontros no território nacional e internacional com as suas sempre pertinentes comunicações, próprias de quem tudo sabia de teatro. Premiada com o Sete de Ouro para Melhor Encenação com o espetáculo Medeia é Bom Rapaz e o Globo de Ouro de Melhor Espetáculo para A Mais Velha Profissão, foi ainda distinguida com a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura e coordenou as comemorações do Centenário do Dramaturgo Bernardo Santareno. Que feliz estava por homenagear o seu amigo inseparável!
Cruzei-me com a Fernanda Lapa em 1995, quando fui assistir ao belíssimo espetáculo As Bacantes na Fundação Calouste Gulbenkian. Esta extraordinária encenação de Fernanda Lapa no ano em que nasceu a Escola de Mulheres ficou-me para sempre gravada na memória. No ano seguinte, por obra do acaso, colaborei num espetáculo no Porto que contava com a sua encenação. Um privilégio aprender com esta enorme criadora que rompia, desde logo, com uma questão de valor crucial: a valorização das mulheres nas artes. No processo criativo, a empatia foi imediata e, desde aí, cresceu uma linda e forte amizade que durou até à sua morte. Essa empatia anunciou, desde logo, uma vontade recíproca na celebração de possíveis parcerias. Realizámos coproduções como Maria Callas – O Mito Absoluto para a Expo-98 e, no ano seguinte, levámos à cena o espetáculo Coco Chanel, ambas com encenação da Fernanda. Mais tarde, quando assumi a direção artística do Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, a convite do Dr. Guilherme Pinto, presidente da Câmara nessa altura, convidei a Fernanda Lapa para assinar a encenação do espetáculo de abertura do teatro. Refiro-me ao Sétimo Céu, para o qual propus uma coprodução entre o município e a Escola de Mulheres.
Tive a enorme honra de contar com a Fernanda Lapa enquanto atriz em espetáculos que encenei: Mil Olhos de Vidro, Chavela e O Filho Pródigo (que reunia no elenco reclusos e reclusas dos dois estabelecimentos prisionais de Santa Cruz do Bispo), e por último, em 2019, na longa-metragem O Filho Pródigo-Filme Concerto, com o mesmo elenco.
Recordo o dia em que convidei a Fernanda para estes dois projetos com objetivos artísticos/sociais: aceitou sem pestanejar. Lá estava a Fernanda mais uma vez a assumir este “lugar do humano”, com toda a sua generosidade, profissionalismo, criatividade, sensibilidade e afetividade, ao lado de pessoas que carregam consigo um estigma que os impede de uma reinserção social no futuro. Lá estava a Fernanda, solidária, generosa, a contribuir para esse desejo de uma possível transformação pessoal nos reclusos/as participantes e transformação social no público assistente. A propósito deste projeto, a Fernanda disse à jornalista do Público, Mariana Correia Pinto, que aprendera muito com estes não-atores. E a Mariana comentou: “Sei que não o disse por dizer: a grandeza dela estaria também nessa capacidade de saber aprender sempre e com todos. Se todos o soubéssemos, o mundo seria certamente um lugar melhor.”
A propósito de “um lugar melhor”, recordo as palavras que a Fernanda Lapa me escreveu a propósito da estreia de uma encenação da minha autoria que ocorreu no dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher: “Durante milénios, a mulher foi adorada como a Grande Deusa Criadora – a Vida brotava do seu corpo num mistério inexplicável, até que o embuste foi descoberto… afinal os homens participavam desse milagre! De adorada passou a dominada, durante milénios os seus sonhos criadores sufocaram nos seus desejos sufocados. O mundo foi avançando com a vanguarda da força masculina – viril, guerreiro, racional, vingativo. Mas quando uma mulher sonha e o seu sonho se transforma em força criadora, o mundo fica mais rico e a Humanidade mais completa. É assim que a desejamos!”
A Fernanda assim fez: apostou em textos que ninguém arriscava, promoveu e divulgou novas dramaturgias de escrita feminina, agitou consciências, incentivou a criação de redes de debate e reflexão e, através da criatividade e inteligência, contribuiu para um “fazer teatral” pautado em oportunidades iguais para as mulheres. No entanto, importa salientar que, apesar de privilegiar nas suas propostas, questões relacionadas com o feminino, a sua companhia Escola de Mulheres sempre contou com colaborações masculinas nas várias disciplinas que constituem o Teatro: atores, músicos, cenógrafos, figurinistas, aderecistas técnicos, sonoplastas, entre outros.
Nunca é demais sublinhar o seu inegável exemplo de coragem.
Quando perdeu a sua filha Mónica (bailarina e coreógrafa) e pouco tempo depois a sua neta, sobreviveu a uma dor inimaginável, superou o insuperável com uma dignidade ímpar. Engoliu o choro! Nessa altura apenas me disse: “Está tudo ao contrário.” Voltou a engolir o choro! Não parou de trabalhar! Nunca se vitimizou! Sempre digna!
E sobre a dignidade desta Mulher Maior, deixo outro exemplo. Quando a partida da sua querida filha Mónica se aproximava, a Fernanda encontrava-se a gravar a série O Processo dos Távoras. Num desses dias malditos de profundo sofrimento, a Fernanda – que interpretava o papel de Leonor Távora – tinha de gravar a cena da morte dos filhos. O ator que desempenhava o papel de um dos filhos (já não me lembro quem) proferiu uma frase da personagem: “Mãe, eu não quero morrer”. Perante o que a Fernanda estava a viver, foi como se aquela frase me arrancasse o coração. A tensão da cena a que assistíamos, num cruzamento absolutamente perturbador entre a realidade e a ficção, naquele espaço/tempo de representação, não me saiu da cabeça durante anos. A Fernanda fez a cena de forma sublime! Naquele momento, perguntei-me como era possível, em tal contexto, separar o corpo real da atriz Fernanda Lapa do corpo real fictício. Ainda hoje me pergunto.
A vida da Fernanda dava um filme onde cabiam todos os géneros. Da tragédia à comédia. Nos momentos mais trágicos tentava sempre aligeirar a coisa. Quando me ligou para me dar a notícia da sua doença, disse-o, primeiro, com a frontalidade que lhe era característica, e terminou com uma piada: “ Olha Luisinha, tudo tem um fim, só a salsicha é que tem dois!” Engoli o choro e acabei por rir com ela! Sei que também deu a mesma notícia à Cucha Carvalheiro e terminou com a mesma piada. Quando nos encontrámos, a Cucha e eu partilhámos essa história da Fernanda, mas dessa vez não conseguimos engolir o choro, nem tão pouco conseguimos rir. Nesse dia, a Fernanda já não estava connosco.
Tal como eu, muitos amigos que privaram com a Fernanda dizem que a olhavam como um ser imortal, eterno. Talvez seja pela energia contagiante que trazia consigo. Talvez porque a Fernanda não tinha idade, tinha ideias, e era um pecado desperdiçá-las.
Nestes pensamentos soltos, recordo o ano em que perdi a minha mãe quando estava grávida, mas também perdi o bebé com uma gravidez avançada. A palavra “mãe” desapareceu do meu vocabulário no espaço de quatro meses. A Fernanda segurou a minha mão e nunca me deixou cair! Nunca! Foi aí que passou a ser a minha segunda mãe.
Recordo também o amor que a Fernanda tinha pela sua cadela Medeia. A cadela mais famosa da classe artística. Durante o tempo de vida da Medeia, penso que 12 anos, a Fernanda não deixava a sua fiel companheira por nada. Antes de aceitar qualquer trabalho ou assinar qualquer contrato, o que estava em cima da mesa, em primeiro lugar, era a questão Medeia. Ou a Medeia teria autorização para entrar nos espaços acompanhando-a no trabalho, ou não havia Fernanda Lapa. A Medeia assistia aos ensaios e às gravações com um comportamento exemplar, respeitando os silêncios e as falas. Até nisso a Fernanda foi pioneira transformando mentalidades relacionadas com estas questões.
Obrigada Fernanda!
Nem sempre este País soube reconhecer esta figura ímpar do teatro em Portugal! Importa então agora não esquecer o legado que nos deixou, reconhecer o património artístico da Escola de Mulheres, assim como a importância vital no seu campo de atuação. A melhor homenagem que podemos fazer a Fernanda Lapa é apoiar e contribuir para que esta companhia, pela excelência do seu trabalho, prossiga com as condições desejadas para a materialização das suas propostas. Conheço bem o trabalho da Marta Lapa, filha e sócia da companhia, com provas dadas na sua linha de atuação artística, assim como conheço o trabalho do Rui Malheiro, para ter a certeza de que a Escola de Mulheres nos oferecerá muito boa criação e programação. Sei de que fibra são feitos estes dois atuais diretores/criadores.
Agora só para ti querida Fernanda: todos os que te eram queridos, que te amaram (são muitos e eu incluo-me nesse número) tivemos a boa sorte de poder cruzar as nossas vidas com a tua. Esse é um privilégio de que não me esquecerei, nunca. Quiseste tu despedir-te de nós em agosto! Talvez porque foi mês da partida da Mónica! Por cá, ficam as tuas amadas filhas, Ana Mafalda Lapa e Marta Lapa, extraordinárias, inexcedíveis no amor e dedicação à mãe! Que bela obra fizeste querida Fernanda!
Obrigada!
Matosinhos, 13 de agosto de 2020