A identidade nacional é geralmente edificada em oposição ao outro. A História de Portugal escolheu duas forças de oposição para fortalecer a liturgia nacionalista portuguesa: os espanhóis (ou “castelhanos”) e os árabes (“mouros”, “berberes” ou “mouriscos”). Ainda hoje é surpreendente a falta de interesse da população portuguesa por Espanha e a falta de conhecimento sobre a contribuição dos árabes para a civilização ocidental, seja como impulsionadores do Renascimento seja como os promotores de práticas de medicina, astronomia, arquitetura ou náutica que usamos na atualidade. Infelizmente, vários outros povos tocados pelos árabes – de gregos a italianos, passando por espanhóis – insistem em sepultar, numa vala comum sem lápide, a importância desta civilização. Nos últimos cinquenta anos, o ostracismo escalou, motivado pelo fundamentalismo muçulmano e por ataques terroristas. Fora do seu espaço de conforto, o Norte de África e o Médio Oriente, os árabes são, muitas vezes, inseridos numa escala entre o desdém e a mera tolerância.
Estou a ler uma obra intitulada The Messenger: The Meanings of the Life of Muhammad (O Mensageiro: o Significado da Vida de Maomé). Referências à América Latina em livros sobre árabes ou muçulmanos são praticamente inexistentes. Mas talvez seja nesta região, com exceção do Oriente Médio e Norte de África, que os árabes mais notoriedade têm atingido. Fugidos à opressão do Império Otomano e ao recrutamento para as trincheiras da guerra, milhões de árabes, oriundos da Palestina, Síria e Líbano refugiaram-se um pouco por toda a América Latina, no final do século XIX. São cerca de 40 milhões de pessoas com ascendência árabe, atingindo quase 10% da população em países como a Argentina, México e Brasil. Quem vive neste lado do Atlântico sente, todos os dias, a forte influência árabe na política, na economia ou na gastronomia. Em tempos recentes, três presidentes do Equador (Julio Teodoro Salem, Abdalá Bucaram e Jamil Mahuad), um presidente da Argentina (Carlos Menem), um presidente da Colômbia (Julio Turbay) e vice-presidentes do Uruguai e do Brasil (Alberto Abdala e Michel Temer) têm origem árabe. No México, empresários como Carlos Slim ou Alfredo Harp Helú são de origem libanesa. No Chile, a família Yarur, de origem palestina, controla mais de metade do comércio de têxteis do país. Nas ruas do Brasil, esfihas, kibhs, hummus, beirutes e pão sírio são tão populares quanto pão de queijo de Minas Gerais e cachaça de Paraty. Em São Paulo, que abriga as maiores comunidades síria e libanesa do mundo (4 milhões de pessoas), os apelidos árabes são tão comuns quanto os portugueses.
Talvez a América Latina possa oferecer uma contribuição para a regeneração da imagem coletiva dos árabes no mundo. Devidamente tricotados no tecido social local, os descendentes de árabes não se sentem incitados a mobilizar-se como embaixadores globais da comunidade. O esforço terá que vir de fora. É fundamental que os principais protagonistas do espaço árabe – de chefes de Estado do Médio Oriente a instituições como a Qatar Foundation, passando por líderes empresariais do Golfo Pérsico – valorizem e capitalizem a presença árabe na América Latina. Portugal poderia apanhar uma boleia e fazer o mesmo com os árabes que povoaram o seu próprio território.