Músico, poeta, artista visual, Arnaldo Antunes, 64 anos, é uma das figuras de primeira linha da cultura urbana brasileira. A sua faceta mais visível é, sem dúvida, a de músico. Começou por formar os Titãs, banda que marcou o rock brasileiro a partir dos anos 80, com músicas como ‘Polícia’, ‘Pulso’ e ‘Miséria’.
Depois, lançou-se numa carreira a solo, em que a palavra sempre foi um aspeto preponderante. Pelo caminho teve o enorme sucesso do projeto Tribalistas, em que se juntou a Marisa Monte e Carlinhos Brown para dois discos e vários espetáculos.
Ao longo de todo este tempo desenvolveu paralelamente um percurso de poeta, com vários livros publicados, em edição cuidadas por si próprio, com alguma tendência para a poesia gráfica, mas tendo sempre a palavra com elemento primordial.
Quase Tudo, editado na coleção Plural, da Imprensa Nacional / Casa da Moeda, dirigida por Jorge Reis Sá, reúne a sua obra poética, em que, além das palavras, Arnaldo Antunes transpôs a linguagem gráfica de cada volume para este novo objeto.
Ao mesmo tempo, o músico, que foi o homenageado este ano da “Escritaria”, em Penafiel, anda em digressão, apresentando a versão ao vivo de Lágrimas no Mar, em parceira com o jovem pianista Vítor Araújo. Sempre à procura, como diz numa das suas mais conhecidas canções, de “qualquer coisa que se sinta”.
Na Bíblia diz-se que no princípio era o verbo. E no seu caso: o que apareceu primeiro, a palavra ou a música?
Arnaldo Antunes: Apareceu tudo junto. Na mesma época em que comecei a interessar-me por poesia estava a ter aulas de violão com desejo de compor. A minha formação na adolescência foi de confluência entre a poesia e a música popular. O Brasil tem uma tradição de música popular sofisticada enquanto poesia cantada.
Era o momento em que se vivia o encontro do Tropicália com a poesia concreta. Havia poetas que também faziam canções, como o Vinicius de Moraes, o Torquato Neto, Wally Salomão, o Paulo Leminski ou o António Cícero, que recentemente perdemos. A coisa da poesia visual e da canção veio junto, mas tudo motivado pelo trabalho com a palavra, seja ela cantada ou ligada à materialidade gráfica.
Quando tem uma ideia para um poema, como sabe se vai resultar em algo apenas escrito ou numa letra de canção?
Geralmente, ao fazer já tenho o destino traçado, um pressentimento daquilo que vai ser. Contudo, as exceções foram-se tornando mais frequentes. Há poemas que fiz e acabaram por ser musicados por alguém, ou letras de canções que acabei por lhes dar uma forma gráfica. Há muito trânsito entre essas áreas.
Apesar de ser um músico, a sua poesia nem sempre contempla a oralidade, alguns dos textos só fazem sentido no papel, até pelo trabalho visual envolvido…
Predominantemente os poemas em livros foram feitos apenas para ser lidos. Há uma escrita para o papel ou visual, em que transformo as coisas em página de forma a fazer um sentido gráfico.
Há de facto uma grande preocupação gráfica com os seus livros, com os seus poemas. É um quebra-cabeças para os editores?
Desde o começo sou que faço a arte gráfica dos meus próprios livros. Aliás, também fiz muitas capas de discos. De certa forma a minha poesia é pensada com uma materialidade gráfica. O meu primeiro livro, que não está incluído neste volume, porque era uma reprodução impossível, era feito de papéis soltos numa pasta.
Sempre fui apaixonado pelo grafismo. Uma coisa que começou quando ainda não havia impressão digital, então acompanhava todo o processo, a fotocomposição, os fotolitos. Era preciso entregar os negativos e dois dias depois via-se o resultado… Hoje basta apertar um botão na tela e já está.
O reportório de recursos ampliou-se muito com a evolução tecnológica. Agora os efeitos de computador criam desafios para respostas de linguagem.
As letras de canções não couberam neste livro. Porquê?
Seria outro tipo de livro. Gostaria de fazer uma antologia de letras de canções. Acho interessante, porque algumas lidas ganham um novo sentido. Mas este é o conjunto de livros de poesia que publiquei no Brasil, que nunca tinha juntado num só volume. Nome ou o ET Eu Tu não estão completos, devidos devido a questões gráficas. Os outros estão lá com uma adaptação das artes gráficas originais, o que me deu muito trabalho mas também muito prazer.
Mas de alguma forma fazem parte da mesma matéria?
Sim. Acabo por fazer performances de poesia, em festivais, com os poemas que têm essa dimensão sonora. Aliás, um dos livros incluía um CD com versões sonorizadas dos poemas. Sempre fiz isso muito sozinho. Algo que tem musicalidade, mas não é canção. Neste show com Vítor Araújo é a primeira vez que junto as duas coisas no mesmo espetáculo.
A essência é a palavra?
As palavras na poesia são diferentes das do uso corriqueiro do dia-a-dia. Nas outras atividades as palavras têm uma certa transparência, servem apenas para apontar para os caminhos enunciados. Na poesia parece que a palavra cria uma opacidade, coisifica o que está apontando, não está apenas dizendo as coisas, mas sendo o que se diz, enquanto experiência de linguagem. Porque em vez de estar intermediando as nossas relações com os objetos do mundo, ela está a criar uma via de acesso mais direto ao mundo, incorporando os seus sentidos corporalmente.
Em tudo isto há um sentido lúdico…
Tenho uma coisa muito material no processo de trabalho. Faço muitas versões, imprimo, anoto, volto para o computador… Faço uma decantação. Às vezes escrevo muito e depois tiro apenas um pedacinho, que resulta numa outra coisa.
A criação poética parte de uma ideia, de uma fagulha, e depois, a partir do processo de criação, chego a uma ideia diferente e mais interessante daquela de onde parti. Para compor é igual.
Gravo vários caminhos melódicos até descobrir o que melhor serve para aquela letra. É um exercício muito material e lúdico. Gosto de explorar os limites da linguagem, subverter gramaticalmente a língua, para criar uma nova perceção estética.
Tudo isto com uma cumplicidade com outras artes… Alguns livros contam com fotografia ou ilustração…
Sinto-me sempre um intruso. O que é faço não são artes visuais, mas poesia visual. O que faço não é música instrumental, mas palavra cantada. Sempre tem a poesia por trás de tudo. Mas o desejo de renovação da linguagem leva-me a suportes, a materiais, a escalas diferentes.
Por isso flui levado para o circuito das artes. Agora mesmo, está patente uma exposição em São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea, com os meus rascunhos. Há uns anos fiz uma exposição itinerante que abrangia vídeos, objetos, instalações. Gosto de me aventurar em direção a essas outras linguagens.
Isto também é uma adaptação aos tempos em que vivemos, em que no mesmo instrumento temos várias linguagens: música, instrumentais, fotografias, desenho, animação, vídeo.
Voltando aos livros… Muitos dos livros têm um conceito. Ele é criado à partida ou a posteriori?
É difícil ter um conceito anterior. Em alguns casos, comecei a escrever com uma certa ideia. Foi o caso de As Coisas , comecei a fazer uns textos em tom de descoberta do mundo, como se fosse um compêndio das coisas, dentro de um a linguagem original, em que tentava ver as coisas de ângulo muito diferente.
Então eu pedi à minha filha, que tinha três anos, para o ilustrar. Mas o que acontece, regra geral, é que estou sempre rabiscando, produzindo coisas, ando sempre com o meu caderninho anotando coisas. Quando sinto que há um corpo de poemas que daria para pensar na semente de um futuro livro, começo a organizar, a fazer o projeto gráfico e acabo por criar muitos poemas novos em função daquele grupo de poemas que já existia. Isso acaba trazendo uma coesão ao livro. É um processo muito vivo.
Qual a sensação de ver tudo agora compilado neste imenso volume?
É muito gratificante. Dá uma noção mais panorâmica da trajetória. O meu primeiro livro é de 1986. Não há nada que achasse que não deveria estar lá. E agrada-me reproduzir as artes de forma fiel ao original. Cada projeto gráfico tem uma ideia diferente,
Não teve vontade de escrever nada de novo?
Se eu fosse incluir uma parte de inéditos, seria um outro trabalho. Tínhamos pouco tempo.
E de reescrever poemas antigos?
Não. Tenho vontade der reescrever enquanto estou fazendo, depois de estar publicado aquilo deixa de ser meu.
Na música, começou no rock, com os Titãs, que contradiziam a ideia de que no rock há demasiado barulho para se cuidar da palavra.
Eu sempre tive o mesmo cuidado com as letras de canções, seja rock ‘n roll ou uma canção de embalar. É uma responsabilidade e um impulso que vem da tradição sofisticada da canção popular brasileira. Tento sempre dar o meu melhor, mas também, há uma adaptação de linguagem.
No rock, há coisas que eu fazia para serem berradas. Também há canções que canto com a suavidade do acalanto. Seja berrado ou suave, há o mesmo cuidado com o rigor de uma letra de canção, com a adequação ao que está sendo dito, a divisão rítmica das sílabas.
O que acontece muitas vezes com a música é que algo aparentemente banal, ganha uma potência gigante quando cantado. A adequação é muito importante. Um poema belíssimo se for adaptado inadequadamente torna-se uma canção medíocre
A carreira a solo ampliou as possibilidades?
Sim, saí dos Titãs um pouco por isso, para poder exercitar partes da minha criação que não caberiam bem no consenso da banda. Fiquei no Titãs de 1982 a 1992. Tive uma carreira solo toda, e depois os Tribalistas, com dois discos. Há várias fases da minha carreira, em que me sinto à vontade para cantar em diversos registos de voz, experimentar diferentes acompanhamentos musicais, para transitar entre géneros.
O último álbum, Lágrimas no Mar, apresentado ao vivo, com o pianista Vítor Araújo, é muito surpreendente. De onde veio esta ideia?
Vinha de um disco que já se concentrava em sonoridades de instrumentos de corda e piano, quis radicalizar e fazer um show só acompanhado de um piano. Seria o show de O Real Resiste. Fiz um convite ao Vítor, Ensaiámos, mas começou a pandemia e não podemos apresentar o show.
Fomos para estúdio e gravámos o disco, que está agora no fim da tournée. O encontro foi a descoberta de muito sensibilidades. Ele vem da música instrumental, mas tem uma enorme sensibilidade para projetar o discurso cantado. É um deslumbre.
E o seu próximo disco de originais. O que se pode saber?
Está ainda germinando, mas vai estar pronto em março.
No disco anterior, O Real Resiste, há uma forte componente política. Como olha para o mundo atendendo aos acontecimentos recentes? Sobra algum otimismo.
É difícil ser otimista. Estamos a viver num mundo distópico, com o crescimento dessa extrema-direita, estúpida, fascista. Fiz O Real Resiste quando o Bolsonaro foi eleito. Mas continua a ser tudo muito difícil.
Vemos a humanidade na direção de um suicídio coletivo, com o aquecimento global, sem que os responsáveis façam nada para travar algo cujos sintomas já são evidentes. O que falta para se tomarem as medidas necessárias? Que consciência difícil de ser alcançada coletivamente…
Ao mesmo tempo, o avançado do nazifascismo mundial, com as pessoas muito solitárias permeáveis nas redes sociais. É uma visão muito distópica. Mas temos de cultivar as coisas boas, a cultura, a música, a arte, a literatura. Tudo isso é necessário mais do que nunca para contrapor a esse ritmo veloz, violento e destruidor.