Quem sobe frequentemente a Rua de São Pedro de Alcântara, em direção ao Jardim do Príncipe Real, em Lisboa, terá reparado que na fachada do antigo Palácio dos Condes de Tomar, onde em tempos se situava a Hemeroteca Municipal de Lisboa, lê-se agora a palavra Brotéria. Os mais atentos, ou rotineiros, terão também dado conta que o facto não é propriamente novo.
A Brotéria, secular revista científica da Companhia de Jesus, que costumava ocupar um palacete na Lapa, já mudou de casa há quatro anos. A mudança, porém, foi muito maior do que uma simples alteração de código postal. Se, na Lapa, cruzar a porta de entrada era conquista reservada a muito poucos, no Chiado o convite é feito, efusivamente, a qualquer um que passe.
Às primeiras horas da manhã, Gonçalo Sarávia, que podemos definir como uma espécie de mestre de cerimónias, já está na “frente de casa” pronto a dar as boas vindas aos que sabem ao que vão e aos que entraram para tentar descobrir o que é se passa aqui.
A enorme escadaria de mármore atrás de si, a escultura de Rui Chafes junto dela, o polo da Livraria Snob, logo à entrada, com estantes repletas de livros sobre arte, política, ciência e religião, e o trabalho minucioso de decoração dos tetos e do chão chamam, efetivamente, à atenção deste segundo grupo. Mesmo sem saber o que irão encontrar no interior, dirigem-se para as portas abertas, aventurando-se pelo palacete, de entrada completamente gratuita.
Há quem siga diretamente para o café que serve brunch e almoços no interior e no jardim das traseiras, talvez sem reparar que, à esquerda, acabou de passar por uma galeria de arte onde, ao longo do ano, vão sendo apresentadas exposições de artistas nacionais e internacionais.
No cimo das escadas, dezenas de estudantes começam ainda a encher as mesas das salas de co-work, de utilização livre. Enfim, um dia inicia-se como em qualquer outra casa da cidade. Só que os habitantes desta são seis padres, que vivem no último andar e com quem é habitual os visitantes cruzarem-se pelos corredores.
Há quatro anos que é assim, que a Companhia de Jesus pegou numa revista e numa biblioteca e transformou-as num projeto maior. A galeria de arte, a cargo de João Sarmento sj, a biblioteca, coordenada por Ana Maria Silva, a revista, dirigida por José Frazão Correia sj, o café, as salas de estudo, a Snob ou o jardim são apenas a ponta do iceberg.
Engane-se quem achar que, ao atravessar a porta, entrará numa espécie de centro cultural compartimentado por áreas. Os diversos espaços, bem como a programação que os anima, funcionam como os quartos, a casa de jantar e a sala de estar da casa de qualquer um.
Não é o que se faz em cada divisão que define a casa, mas a filosofia de vida de quem a habita. “Recebemos na Brotéria como se recebe em casa.
As portas abrem-se como se abrem numa casa, a nossa equipa trata as pessoas como se trata numa casa, há este desejo de receber sem à partida colocar condições sobre quem é que as pessoas são, sem bilhetes, sem afiliações partidárias, religiosas, morais”, assegura Francisco Sassetti da Mota sj (FSM), antigo diretor geral da Brotéria, atualmente visiting fellow no Institute for Advanced Jesuit Studies do Boston College.
Não é o que se faz, mas como se faz
De facto, o que não falta em Lisboa são museus, galerias, salas de espetáculos e centros culturais que programem exposições, façam subir ao palco músicos, cómicos e oradores ou organizem debates.
O que os jesuítas querem promover, assegura a comunidade que vive nesta “casa de reflexão teológica e estética, com uma linguagem contemporânea”, é um lugar que dê voz às preocupações das pessoas, e mostrar, através das atividades dinamizadas, o que significa viver à luz de Cristo, abertos para o Mundo, atentos às necessidades dos outros, numa postura de acolhimento e de incentivo ao diálogo, seja através de exposições, conferências, oficinas de escrita, cursos de História, Literatura, oração ou meditação, visitas guiadas ou sessões de cinema.
Desde 2020, a Brotéria já organizou dezenas de exposições com obras de artistas como Diogo Evangelista, Sérgio Carronha, Alberto Carneiro, José Leonilson, Tomás Cunha Ferreira, Luísa Jacinto, Cristina Lamas ou Vasco Futscher, além de ser usufrutuária de uma coleção de arte contemporânea permanente com obras de Rui Chafes, João Penalva e Lourdes de Castro, entre outros.
Não temos uma programação cultural que funciona para encher calendário. Há uma busca obsessiva por aquilo que faz bem ao Mundo e que nos faz bem a nós
francisco sassetti da mota sj.
Debaixo do limoeiro do jardim, nas salas do 1º andar ou nas mesas do café, moderados por membros da equipa e, às vezes, por um dos padres da comunidade, têm-se realizado debates com temas tão díspares quanto a arte e a cultura das tatuagens, com o sociólogo Vitor Sérgio Ferreira e o diretor do Festival Iminente Tiago Silva, a relação entre verdade e beleza, com o maestro Martim Sousa Tavares, a questão da produção desenfreada de lixo, com Francisco Ferreira da Associação Zero, a convivência entre economia e cultura, com Sara do Ó, a viabilidade de um Futuro para os moradores do Bairro Alto, com membros da Associação de Moradores da Freguesia da Misericórdia, o metaverso, algoritmos e blockchain, com o diretor criativo João Seabra, ou ainda questões sobre a prática artística e a curadoria, com Rui Chafes e Paulo Pires do Vale.
“Não temos uma programação cultural que funciona para encher calendário. Há uma busca obsessiva por aquilo que faz bem ao Mundo e que nos faz bem a nós, uma vez que a cultura tem uma dimensão vocacional e não de entretenimento, serve para nos tornarmos melhores pessoas, melhores sociedades e também melhor Igreja”, defende FSM.
Um projeto de tal envergadura não se levanta sozinho. “A riqueza da Brotéria advém das pessoas que nela trabalham e da sua multidisciplinaridade. Temos uma série de pessoas com formações diferentes que decidiram, em vez de trabalhar cada uma especializada na sua coisa, trabalharem em equipa e dedicarem-se a temas que interessam a todos”, sublinha o atual diretor-geral da Brotéria, Manuel Cardoso sj (MC).
Ao longo dos últimos anos, à equipa original de padres, da qual Manuel e Francisco faziam parte, foram-se juntando outros padres e leigos, que preencheram funções essenciais e intervieram “no desenvolvimento estratégico da casa”.
Por exemplo, duas bibliotecárias, há quase 30 anos na Brotéria, uma editora da revista, uma diretora de comunicação, uma assistente da galeria, um relações públicas, uma designer, um responsável pela comunicação, uma diretora financeiro, seis funcionários no café, três na segurança e duas nas limpezas. E ainda numerosos voluntários que, juntamente com “o grande apoio da Santa Casa da Misericórdia”, tornam o projeto viável.
“Nunca ninguém imaginou que isto que fazemos agora era o que íamos fazer. Nos anos 80 e 90 havia o desejo de ter uma relação com a Cultura um bocadinho diferente, mas não imaginávamos que viesse a ser isto”, confessa FSM.
Entre os anos 1930 e 1990, a Brotéria estava instalada num palacete, na Lapa, e era reservada a professores jesuítas, investigadores e alguns académicos
Tudo começou em 2013. FSM e MC encontravam-se em Moçambique, um em Maputo e outro na Beira, a trabalhar na Universidade Católica, quando Alberto Brito sj os desafiou a regressarem a Lisboa e a replicar na Brotéria, desde 1930 localizada num palacete na Lapa, parte do que estavam a fazer em África.
Porque, como aponta MC, “a Companhia de Jesus tem uma tradição de aproveitar os talentos de cada um”, os jovens padres voltaram para Portugal. Na Lapa encontraram, longe do projeto atual, aquilo que FSM define como “uma revista com uma biblioteca”.
Entre 2013 e 2015, juntamente com Rui Fernandes sj, João Norton sj, Vasco Pinto de Magalhães sj, António Vaz Pinto sj e António Júlio Trigueiros sj, começaram a delinear a “lufada de ar fresco” que acabaria por dar origem à casa de Cultura onde conversamos nesta manhã de 2024.
É que, entre os anos 1930 e os anos 1990, a casa da Lapa tinha sido uma espécie de “fortificação”, que funcionava à porta fechada, reservada a jesuítas professores, investigadores ou colaboradores de revistas técnicas, abrindo as portas, mas sempre devagar, a um público muito selecionado constituído por doutorandos e investigadores, dos finais do século XX até 2019.
“Há dois textos de que eu gosto imenso, um do Bénard da Costa e outro da Sophia, a dizerem que as condições da Lapa eram absolutamente surreais. A Sophia até diz que “os frades inventaram a beleza e os padres deram cabo dela”. De facto, não tínhamos boas condições e há muitos anos que havia uma vontade de procurá-las”, comenta MC.
“Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”, dizia Pessoa. Neste caso, a par do Homem, sonhou também a Santa Casa da Misericórdia que propôs aos jesuítas que as instalações da Brotéria mudassem de morada para o antigo Palácio dos Condes de Tomar. Começava-se a desenhar um projeto mais amplo e ambicioso que, além de uma revista e uma biblioteca, contemplaria outras propostas culturais e uma maior abertura a Lisboa.
Atualmente, o projeto da Brotéria compreende, além da revista e da biblioteca, um espaço cultural com programação aberta a toda a gente
“Era fundamental garantir que este sítio tinha uma relação de portas abertas com a cidade, na qual a cidade sabe o aqui acontece, pode falar das suas necessidades e inquietações enquanto nós escutamos, da mesma forma que podemos falar das nossas enquanto ela escuta. Por isso, além da revista e da biblioteca, quisemos acrescentar uma dimensão de relação com as artes e com os artistas, dar atenção ao fenómeno cultural e desenvolver uma programação onde tudo isto estivesse presente”, resume FSM.
O projeto acabaria por abrir portas a 23 de janeiro de 2020, com uma exposição onde o passado e o presente se cruzaram através de uma leitura artística de elementos da Natureza, homenagem à génese original da publicação que deu origem a tudo.
Ao som de música e com a boca adocicada por miniaturas de bolos “jesuítas”, o convite foi feito a “todos, todos, todos” e as portas não voltaram a fechar, nem mesmo durante a pandemia, durante qual o espaço funcionou digitalmente, assegurando uma programação composta por debates e conversas online.
Da Beira Baixa para o Chiado em 122 anos
Apesar de hoje em dia se encontrar no coração da capital, sob a forma de casa, além da de revista, a Brotéria nasceu na Beira Baixa, dentro dos muros do Colégio de São Fiel, enquanto publicação científica. Corria o ano de 1902, a monarquia tinha já os dias contados e os movimentos laicistas republicanos atacavam cada vez mais abertamente a Igreja.
O ambiente político, as acusações de obscurantismo e anti-cientismo de que eram alvo, mas também “a razão puramente pedagógica de terem crianças numa sala de aula aborrecidas a aprender ciências”, conta FSM, levaram um grupo de jesuítas a dedicarem-se, cada vez mais à investigação científica.
“Levavam os alunos para o campo, para recolher folhas e musgo que depois estudavam dentro da sala de aula e começaram a investir na taxonomia e na classificação dos diferentes elementos que tinham à sua volta”, continua o jesuíta.
Inicialmente apenas científica, a Brotéria surge do encontro entre a necessidade pedagógica e o investimento cada vez maior na investigação, transformando-se, em pouco tempo, numa publicação que contemplava também a zoologia e a botânica e tornava acessível à população em geral as descobertas que iam sendo feitas pelos jesuítas do Colégio de São Fiel.
Cento e vinte e dois anos mais tarde, a Brotéria mantém o mesmo espírito e nunca deixou de ser publicada, nem mesmo entre 1910 e 1923, quando a Companhia de Jesus foi expulsa do país, refugiando-se em Espanha e no Brasil. Porém, se há 100 anos o conhecimento veiculado centrava-se na ciência, hoje dão-se a conhecer as investigações de jesuítas, e não só, em áreas que vão da política à religião, sociologia, filosofia e arte.
“Somos herdeiros diretos da versão da Brotéria que surgiu nos anos 30, quando se percebeu a importância de contemplar uma dimensão mais cultural, criando-se a série Ciências e Letras”, explica FSM, sublinhando que a abordagem atual resgata ainda a ideia original, de 1922, de “simplificar” o conhecimento científico, transportando-a agora para o domínio da cultura.
Uma casa de Cultura da Igreja ao serviço de todos
A hospitalidade, a verdade e a beleza, que tanto FSM como MC afirmam ser linhas guia da missão da Brotéria, refletem-se no facto de, ao entrarmos na casa de Cultura da Companhia de Jesus, sentirmos que pertencemos verdadeiramente ao dia-a-dia da casa. A presença é algo que caracteriza profundamente o grupo de jesuítas que vive na Brotéria.
Para Manuel Cardoso sj, João Norton sj, Vasco Pinto Magalhães sj, José Frazão sj, Júlio Trigueiros sj e João Sarmento sj, estar presente é muito mais do que descer, de vez em quando, à zona “pública” da Brotéria, é viver o dia-a-dia aos olhos de todos da mesma forma que fariam se estivessem sozinhos, colocando-se a si a ao lugar onde vivem ao serviço de quem passa.
Há um interesse deliberado da Igreja Católica e da Companhia de Jesus em ter um espaço de Cultura que, sendo da Igreja, é aberto a todos. […] uma casa de cultura da Igreja aberta a toda a gente
manuel cardoso sj
Como resume José Frazão sj, diretor da revista, na edição comemorativa dos 120 anos da mesma, esta é “uma comunidade de vida e trabalho, formada por jesuítas e colaboradores com diferentes formações, bastante jovens na maioria, anima um edifício histórico, abrindo-o à cidade, a quem a habita ou simplesmente passa”.
“Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão” que a Brotéria assume, acrescenta José Frazão sj no mesmo texto. Este encontro, assegura MC, é bilateral. “Ao mesmo tempo que somos uma casa de cultura da Igreja, há imensos temas da sociedade e que não são da esfera católica que, por nosso intermédio, também entram na Igreja”.
Promover e implicar-se no encontro e no diálogo entre fé cristã e as culturas urbanas contemporâneas é a missão”
josé frazão sj
Num tempo em que o número de padres católicos tem vindo a diminuir significativamente, poder-se-á perguntar, porém, por que razão este grupo de seis jesuítas decidiu dedicar-se a um ministério que não é estritamente de celebração eucarística.
“Há um interesse deliberado da Igreja Católica e da Companhia de Jesus em ter um espaço de Cultura que, sendo da Igreja, é aberto a todos. Daí fazer-nos todo o sentido esta aposta em estarmos num espaço social que não é uma capelania dos artistas católicos, mas uma casa de cultura da Igreja aberta a toda a gente”, explica Manuel Cardoso sj.
Tal como o jovem poeta de Rilke, Manuel, Francisco, Vasco, José, António Júlio, João Norton e João Sarmento parecem ter respondido “preciso” no momento em que se questionaram se precisavam da Brotéria e da forma que encontraram de olhar para a Cultura, tornando as suas vidas “até na hora mais indiferente e limitada, um sinal e um testemunho para esse ímpeto”.
PROGRAMAÇÃO BROTÉRIA – SETEMBRO 2024
7 set, 11h-12h30
Visita à exposição Rémiges Cansadas com o artista Samuel Silva
5 set, 19h-20h30
Conferência A democracia precisa da cultura e a cultura precisa da democracia
10, 17 e 24 set, 16h-17h
Clube de leitura Poesia no Bairro
10 set, 19h-20h
Seminário sobre educação Tzvetan Todorov: o que pode a Literatura?
14 set, 10h30-12h
Visita à Brotéria guiada por João Norton sj
19 set
Inauguração da exposição densidade.memória com Carlos Nogueira