A Lágrima de Ulisses – Regimes da Cultura Literária é um desses livros que, sendo ensaio, pertencendo à categoria storobinskiana do ensaísmo como ponderação, exame e análise, surpreende quer pela aguda penetração do seu autor, quer pelo modo como essa agudeza, essa finura de análise, se faz dum estilo claríssimo, absolutamente ao serviço de um ideal, hoje raro, que todo o ensaísta deveria perseguir: chegar, o mais possível, ao leitor não especializado. Isso requer, para além da clareza quanto aos conceitos em presença – cibercultura, sobremodernidade, hipertextualidade, eis alguns – uma autêntica consciência pedagógica, sendo justamente esta palavra – pedagogia! – o que releva, em grau mais alto, da leitura deste conjunto de ensaios de Manuel Frias Martins (MFM).
Importa, pois, vincar essa dimensão pedagógica, posto que A Lágrima de Ulisses (inspiradíssimo título, diga-se) se nos nos oferece como exercício ativo de cidadania por parte dum académico que, em livros anteriores (lembro, por exemplo, As trevas Inocentes ou Em Teoria) nunca caiu naquela ilegibilidade e hermetismo que, mais do que esclarecer e seduzir, tornam opaca qualquer veiculação da mensagem e com isso impossível o horizonte da cidadania e da educação quando o problema é pensar a literatura. Teórico de formação, ensaísta e crítico sagaz, sobre que coordenadas MFM organizou este seu volume? Quais as questões urgentes que este livro coloca a quantos, dentro e fora da Universidade, mas leitores da literatura, pensam que lugar, o que pode – e como pode! – ser e fazer a literatura em que os regimes de verdade se reconfiguraram?
Creio que é em torno de quatro grandes eixos que podemos fruir este livro axial para os estudos literários e culturais. O primeiro será o que considera a literatura como “cidadania praticável”, opondo-se a um conceito que, no nosso tempo, por via de novas teorias neoconservadoras, marca no campo cultural a própria ação política: o conceito de etnicidade. Trata-se, para o autor, de conceber e compreender a literatura como um marcador diferencial, uma prova de humanismo, porquanto à etnicidade o ensaísta veicule a ideia de uma literatura que, para além de objeto cultural e praxis estética, não dispensa uma função social. Se os regimes de verdade do literário mudaram no tempo da pós-verdade, MFM declara que é precisamente por no tempo da cibercultura e de novos regimes artísticos moldarem a paisagem político-cultural que é possível uma nova reinvenção da linguagem.
Tal significa que, podendo-se falar de uma literatura hipertextual, ou da existência de uma literatura digital, o progresso tecnológico não anula a essência clássica da literatura, a saber: literatura é um código ancorado na ambiguidade e na indeterminação, fenómenos que resultam do labor criativo sobre a linguagem “mas também do cruzamento da experiência de vida representada no texto com a experiência individual do leitor” (p.48), razão pela qual o ensaísta não encontra, no digital, seja na criação, seja na receção do livro, a não linearidade “ou uma multilinearidade” que desfaçam a “tutela tradicional do autor” a um ponto em que o leitor se transforme em ator soberano.
Da soft poetry a outras criações online (o romance hipertextual em que a comunidade leitora contribui para o engendramento da ficção), nada se compara à laboriosa construção do artista literário, aquele que, ciente do seu fazer, sabe que nunca o hipertexto será o edifício da imaginação, mas tão-só uma rede. São as relações entre a cultura digital e a literatura, hoje óbvias, desde o e-book às práticas hipertextuais-digitais, que conduzem a outra coordenada fundamental deste ensaio: a relação da literatura com o livro impresso.
À própria hipótese de uma ciberliteratura que altera os modos de receção leitora do literário, soma-se a mudança da produção. Diz MFM: “Neste quadro de referência, a literatura começou a ser inevitavelmente encarada por algo derivado de um excesso de possibilidades da própria tecnologia.” (p.42) E é face à agonia da poesia – género que coloca como sublimação máxima da criação linguística, arte propriamente dita – que se coloca a questão premente: como fazer e ler literatura? Que lugar para o livro impresso? São questões indissociáveis e que, na terceira fase da sobremodernidade em que nos encontramos – a fase pragmática em que livro tradicional e formas eletrónicas convivem – levam a que possamos falar da urgência de uma biblioteca nacional digital, esboço desse sonho da República das Letras, assim fortalecendo os laços de cidadania.
O livro impresso, informa o autor, continua, apesar do advento das tecnologias, a ser preferido, ainda que haja a noção de que podemos estar no limiar de uma narratologia cibertextual. Uma das teses centrais será, pois, esta, com consequências ao nível da receção literária, da prática de leitura e da produção do objecto-livro: “É possível continuar a equacionar os novos produtos literários e culturais com as mesmas ferramentas intelectuais, isto é, com os conceitos teóricos e as categorias de análise, oriundas do estudo crítico da literatura convencional.” (p.57).
No limite, o que MFM coloca na agenda com esta espécie de guião do literário para os novos tempos, é a possibilidade de, como num filme de 1990, o Total Recall, qualquer leitor poder, num futuro ideal, mas que as tecnologias apresentam já como realidade concretizável, viver a ficção que lê. Tal implicaria, naquele que é um dos nós desafiante de deslindar deste ensaio, e não solucionado, o desaparecimento do autor tradicional porque certos textos, certas ficções engendradas pelo leitor hipertextual, o dispensariam.
A realidade virtual transformada em literatura, ou a literatura transformada em realidade virtual, essa é a terceira grande operação hermenêutica que MFM, um cético-otimista por definição, nos apresenta. Todavia, há uma ressalva nuclear: a literatura, como arte da memória (a poesia, di-lo Yates), não pode sucumbir àquele excesso da tecnociência, paradigma que tem diluído justamente, por perda da aura simbólica da literatura, valores como os de tolerância e de cidadania. Frias Martins combate, portanto, um paradoxo axial da nossa cultura: sabemos que a literatura é, como peça essencial da formação cultural do indivíduo, “envolvimento ético da cidadania”, mas sabemos também que só existe literatura quando ela, enquanto prática artística, se afirma heterodoxa, imaginativa.
Esta contradição abre para o quarto e último aspeto que é, quanto a mim, orientador na nossa receção de A Lágrima de Ulisses: o papel do escritor, a relevância do autor. Na verdade, se já depois de Curtius e do comparatismo foi possível conceber a literatura como terreno comum onde se constrói um destino comum europeu, o problema que hoje temos de ver sob perspetiva pós-comparatista diz respeito, precisamente, ao autor, ao escritor que opera num quadro transnacional. “A questão literária aponta obrigatoriamente para experiências sociais e ideológicas mais profundas do que se pensar no que diz respeito às oscilações do gosto e aos consequentes padrões de consumo.” (p.193). As editoras, receosas da falência da literatura, cedem ao mercado do kitsch, diz o ensaísta, e é nesse campo em que o lucro impede a comercialização da literatura como arte que o escritor deve procurar, a reboque, por exemplo, da importância dada pela União Europeia (UE), à literatura como arte geradora da convivialidade entre as nações, transformar a sua língua particular numa língua universal.
Em bom rigor, depreende-se, no capítulo “Compreender a Europa e as Razões da Literatura”, qual seja a função de quem escreve hoje: produzir uma obra que, equacionando esteticamente o mundo em que existimos, compreenda que a literatura não pode eximir-se ao cruzamento com a tradição, ainda que a finalidade da obra de arte literária, hoje, obedeça a um único fim: fazer dinheiro. Mas aqui, como noutros pontos deste magnífico e útil ensaio, MFM ainda que subtilmente se reserve à constatação dos factos (estamos mergulhados na cultura do entretenimento global, a literatura observa, por isso, a mesma homogeneização e uniformização culturais), convida-nos a ter, sobre os escombros do paradigma tradicional que vingou até aos anos de 1980, um olhar compreensivo e aberto: é o hibridismo cultural que, na atualidade, pode originar diversas bolsas de resistência onde, à luz dum projeto cultural não discriminatório, como defende a UE, à política de cortes na cultura se opõe uma prática rica, diversificada.
É essa literatura vinda da resistência à formatação que Manuel Frias Martins diz participar desse princípio de convivialidade que caracteriza a Europa. Isso é consequência daquilo mesmo que a literatura guarda e transmite a quem a lê: a memória: “Reitero, por isso, a ideia de que […] é nos objetivos e prática da UE que podemos encontrar algumas das principais preocupações éticas relacionadas com aquilo que a literatura é enquanto manifestação da diversidade humana”. E neste particular destaca a tradução como trabalho edificador dessa consciência da diversidade. Livro, portanto, indispensável para investigadores, professores, leitores. E para políticos também.