A morte de Elza Soares precisa de chamar a atenção dos teólogos e de todos os crentes porque prova tragicamente que deuses também morrem. A ferocidade sagrada de Elza sucumbiu à hora da plenitude solar, exatamente a chamada Hora de Deus, como se simplesmente voltasse a ser luz. A carne mais barata do mercado foi revista por sua luta e hoje ela mudou bastante de preço. Hoje, ela tem fala, tem voz, acumulou Machado de Assis e Carolina de Jesus, acumulou Cartola ou Milton Santos. Podemos verificar a sua constante opressão, mas também podemos identificar sua luta e o quanto agora é sem regresso. O mercado não vai mais conseguir vender a carne negra. Ela está apenas à mercê da dignidade.
Minhas conversas com Elza Soares foram breves e poucas mas intensas e cúmplices. Eu declarei profunda admiração, meu fascínio por aquela voz única e inconfundível, mas foi sempre importante debater a questão negra, o quanto ela se fez guerreira e heroína de uma comunidade relegada para as periferias e perseguida por todo o preconceito. Elza era bem a pérola negra, essa cintilante presença que perdurava além de todos os carnavais. Ela que dizia que seu choro era apenas carnaval, e havia mesmo um folclore perfeito em seu jeito. Era toda para a cena, uma estrela em todos os detalhes, não possibilitava normalidade nenhuma, estava como sobre-humana, super-humana, sapiente, inesgotável. Quem chegava junto estava como abaixo de um promontório. Lá no alto, observando desde o clarão, era ela, apenas ela, inteira e em mistério. Por isso não se dava conta de ser deusa. Dizia que cantava sobretudo porque precisava de emprego, queria pagar contas, sobreviver. Ela cantava para sobreviver.
A bravura de Elza Soares está toda na capacidade de ser vigente, ocupar a música do novo mundo, acompanhando com folia e fúria a mudança do som, das condições de produção, da frontalidade cada vez mais urgente das mensagens a defender. Foi, de verdade, a mais incansável cantora de protesto, debaixo de uma amorosidade intensa mas sem claudicar na reclamação da paridade entre mulheres e homens, negros e brancos, pobres e ricos. A sua voz foi das mais atentas e inteligentes deste novo século. Erguida numa certa vanguarda, esquecida de um lado mais folclórico e castiço onde a pensavam arrumada e confortável, a sua reinvenção é marcada pela promessa de não se conformar.
Mesmo que sedutora e, por vezes, derramando afetos, o lugar de Elza Soares passou a ser definido por uma qualquer perigosidade, uma rebelação contra qualquer menoridade à sua condição e à condição da vastidão de admiradores. Algo na sua identidade se libertou de vez para sempre e sem possibilidade de regresso. Passou a ser figura mãe, central, guru, desafiadora e protetora. Debaixo de sua palavra, de sua voz, uma legião abrigou e aprendeu também a lutar.
Não são pequenos os elogios que o mundo tem para fazer a Elza Soares, mas eu diria que tudo começa nessa natureza indomável que lhe domina o grito, o rugido, a dimensão animal que lhe junta qualidade de diva e onça, gente e bicho na voz. O seu esplendor vem da voz extrema, algo que se excetua no cômputo das pessoas e suscita a incredulidade em quem escuta. Poderosíssima e irrepetível, ela é uma trégua entre o milagre e a realidade.
Tenho passado o tempo a ouvir os discos dos últimos 20 anos, os incendiados de ganas, urbaníssimos, políticos. Lembro do que me dizia o grande José Miguel Wisnik, que Elza ia erguer sempre a voz, mesmo que ninguém soubesse bem sua idade e pudesse já ter toda a idade do mundo. Ela cantava porque tinha de acabar com o medo, não era mais para ter emprego. Era para toda a gente tivesse emprego. Então, não dava para calar.
A morte de Elza Soares* é agora um absurdo com o qual lidaremos sem completa convicção. Diremos suas canções por prece. Deusas merecem orações. As dela estão perfeitamente definidas. J*NR: Elza Soares morreu no passado dia 20, no Rio de Janeiro, com 91 anos de idade
Elza era bem a pérola negra, essa cintilante presença que perdurava além de todos os carnavais. Era toda para a cena, uma estrela em todos os detalhes
Elza Soares “Ela cantava porque tinha de acabar com o medo, E para que toda a gente tivesse emprego. Então, não dava para calar”