Escritora com colaborações nos jornais, nascida em 1988 e formada em Filosofia, Giulia Caminito já tem dois romances anteriores no currículo, em que as famílias ocupavam um lugar de destaque. Mas nenhum tem a ferocidade deste A Água do Lago Nunca é Doce (Lua de Papel, 304 págs., €17,90), romance da dureza extrema dos que vivem à sombra da belíssima monumentalidade de Roma. A jovem italiana escreveu um hino às classes trabalhadoras desfavorecidas cujos sonhos são sempre afogados – ou explorados. A luta por uma casa digna, e pelo direito a sonhar, atravessam estas páginas, despidas da luz onírica de Fellini, do humor saltitante de Totò ou de glamour Mastroianni: a jovem Gaia e a sua mãe, Antonia Colombo, dão o corpo feminino ao manifesto, para acabarem cheias de nódoas negras. Giulia Caminito inspirou-se em geografias, casos e pessoas reais. E entre a ternura e a tragédia, deste romance e desta Itália ninguém sai vivo da mesma forma.
“Eu nunca visitei o Coliseu, a Capela Sistina, o Vaticano, a Villa Borghese, a Piazza del Popolo”, diz Gaia. A Roma de A Água do Lago Nunca é Doce é muito diferente da cidade do postal. Os pobres perderam direito à sua cidade?
Desejei mostrar uma outra parte da cidade, aquela que é normal para nós [italianos]. Existe a Roma monumental, turística, mas há muitos outros bairros e comunidades que aí vivem. Roma é uma cidade difícil de ser narrada, porque existem muitas realidades distintas. E quis colocar esta família em cenários diferentes: na primeira parte do livro, os Colombo vivem numa zona muito periférica, San Basilio, de onde demoram uma hora no trânsito a chegar ao centro da cidade. Mas porque hão de ir até lá? É ruidoso, é caro, está cheio de multidões, e não mostra nenhuma bondade por eles. Atualmente, muitos romanos não estão a desfrutar da sua cidade: é como se os bairros históricos de Roma fossem uma outra cidade, é frustrante. E a grande maioria, que vive com dificuldades económicas, tem de escolher viver em subúrbios como o de Anguillara, para onde se muda depois a família de Gaia.
Mudam-se de uma divisão minúscula, com chão de cimento cheio de baratas e seringas, num “bairro popular de heroinómanos e velhos moribundos”. A casa é a metáfora desta nova realidade?
Sim. Temos, hoje, um enorme problema de habitação em Roma, mas há imensos edifícios vazios que poderiam ser usados para a habitação social. Porém, estão a construir-se cada vez mais villas e, até nas zonas periféricas mais verdes, nascem condomínios muito cool apenas para quem tem muito dinheiro. É uma realidade complicada para os estudantes, para a classe trabalhadora, para as jovens famílias… As pessoas da minha geração têm imensas dificuldades para arrendar ou comprar casa própria. A menos que herdem uma casa da avó…
Em Lisboa, atribuem-se as culpas aos turistas e aos residentes estrangeiros. Em Roma, a culpa é do turismo ou da luta de classes?
O turismo sempre fez parte de Roma, é uma cidade que nasceu sobrelotada. Claro que, agora, os B&B [alojamentos locais] estão a transformar tudo, há grandes alterações na estrutura social, na maneira como percecionamos o nosso dinheiro, a nossa casa… Vivo no centro da cidade, e muita gente me tem dito: “Sai da tua casa durante o Jubileu e vai para fora de Roma, aluga-a. Vais fazer imenso dinheiro!” Não, um investimento é outra coisa, não é prescindir da minha própria casa. Mas muitos prédios, como aquele onde vivo e que era habitação social durante o fascismo, estão cheios de alojamentos locais. As famílias pobres saíram por causa dos preços. O que vai acontecer-nos? Todos estes bairros vão ficar vazios daqui a alguns anos? Não existe uma comunidade, e isso é assustador.
A perda de solidariedade social é consequência dessa alteração?
Sim. A dada altura, a família de Gaia deixa San Basilio porque lhe foi atribuída uma casa no distrito financeiro de Roma, muito perto da Villa Borghese, onde encontra zero de solidariedade. Eles chegam e são as “pessoas pobres”, os “perigosos”, que fazem barulho…
É uma vizinha alemã a queixar-se. Foi uma vingança mediterrânica?
[Risos] Bem, essa história é verdadeira. Eles chegaram lá e uma alemã gritou com toda a gente: “Estas crianças pobres que estragam a água da fonte do jardim!” O facto é que é impossível criar uma comunidade se não se toma conta de toda a gente. Antonia Colombo é pobre e tem uma consciência profunda sobre o que é o espaço público, o que pertence a todos. E, hoje, é difícil imaginar alguém ter esta consciência.
É comovente “escutar” esta mulher humilde que diz à filha para não estragar os livros da biblioteca ou as flores dos passeios públicos, porque “pertencem a todos”.
Sim, ela sabe que tem de se cuidar, por exemplo, dos parques infantis para as crianças pequenas tal como cuidamos do nosso próprio jardim. Antonia ensinou-me isto: temos de cuidar daquilo que pertence a todos. A comunidade é um espaço de relações, de proteção, de solidariedade com os outros. E, hoje, é mais importante do que nunca.
A escolha dos nomes Gaia e Colombo é intencional: Colombo por descobrirmos um mundo escondido, Gaia pelo eco ambiental?…
Gaia foi uma escolha intencional: porque é a Mãe-Terra, e porque, em Itália, significa felicidade, e esta personagem exibe essa contradição: não é solar, tem uma raiva dentro dela. E o romance é sobre a forma como definimos a nossa identidade, e como esta é condicionada pela maneira como os outros nos veem. E eu queria explorar uma personagem feminina violenta, sair do estereótipo do homem violento. Já o apelido Colombo, escolhi-o a pensar num romance novo em que os pombos são importantes [em italiano, pomba diz-se colomba].
Lemos que Antonia “não tem religião, abandonou o partido, [tinha] uma tenaz fixação pelas coisas justas”. É a utopia que nos sobra?
Não me sinto representada por forças ou partidos políticos, e essa ausência de representação é também a da minha geração. Para Antonia, a política é uma ilusão, portanto ela decidiu que o melhor é ser ela a cuidar dos seus, a lutar pela sua versão de justiça. Isto é o que, hoje, podemos chamar bom senso. E o bom senso é uma ferramenta muito importante nestes dias difíceis que vivemos em Itália, nos EUA, na Alemanha, na Europa…
Antonia é uma exceção num mundo em que muitos, incluindo a sua geração, parecem estar a desistir…
Sim, a minha geração é mais passiva por uma série de razões, em Itália, mas não só. E queria abordar essa questão de os adolescentes serem tão apolíticos: Gaia não quer saber do que acontece no mundo. Quando eu era adolescente, também não havia grandes conversas sobre política, economia, temas sociais. Ao contrário da geração dos meus pais, que eram politizados, liam muito, participaram em movimentos sociais. O que é que nos aconteceu? Acredito que Berlusconi desempenhou aí um grande papel, com a sua maneira de pensar sobre política, shows de televisão, média, dinheiro, mulheres… Foram 20 anos deste espetáculo, que influenciaram a formação da maioria dos jovens italianos.
Itália teve Berlusconi, agora tem Meloni. O que mudou?
Pensei nisso ao ver as publicações nas redes sociais de Trump, aterrorizadoras. E a diferença é que Meloni não tem dinheiro como Berlusconi ou Trump, donos de edifícios, empresas, investimentos. Eles vieram desse mundo e depois decidiram entrar na política. Quando se tem essa quantidade enorme de dinheiro e essa visão [do mundo], é outro nível de perigo político. Giorgia Meloni não vem de uma família rica, as suas origens estão num bairro humilde, e conseguiu chegar aqui através da militância partidária. Ela é perigosa em termos políticos, mas não em termos sociais como Berlusconi. Ele tinha jornais, uma televisão, poder sobre a informação. E Trump é o mesmo perigo. Não precisa do dinheiro dos outros, vê o país e a presidência como um empresário: Trump apenas pensa em quanto dinheiro faz.
A única maneira de resistir é permanecer em comunidade. Não somos controlados por nenhum partido nem à esquerda nem à direita: somos escritores livres e a nossa única lealdade é para com o antifascismo e a nossa consciência
O que responde a quem diz que, nesta crise internacional, Giorgia Meloni não está a ser tão má como receavam?
Bem, é possível… Há um fator importante que é ela ser uma mulher. É claro que Meloni não é uma feminista nem está a fazer boas políticas nesse campo. Mas, pela primeira vez, há uma mulher na posição de primeiro-ministro, e isso é irreversível e um ponto positivo no nosso país, porque Itália é ainda completamente patriarcal. Mas, como disse, a sua personalidade é muito diferente dos governantes que vieram antes, como Berlusconi, que ia para compromissos internacionais, de bandana na cabeça, com vinho e champanhe e mulheres. Quem tem dinheiro não tem limites. Meloni sabe que tem de governar dentro de determinados limites – e mais ainda quando está fora do país. Em Itália, todos os dias há algo terrível feito pelo seu governo. Mas fora do país, ela sabe que tem de se comportar dentro de determinadas regras.
Meloni mudou diretores estrangeiros de instituições culturais por italianos. Como é que o tecido cultural reage a isto?
Não concordamos com isto. Mas ela e o seu partido estão a fazer algo ainda mais grave: estão a substituir estes profissionais por pessoas leais ao partido. Por exemplo, tivemos muitos problemas com a Feira de Frankfurt em 2024 [Itália foi o convidado de honra], porque houve escritores que não foram convidados para integrar a comitiva [como o autor de Gomorra, Roberto Saviano, feroz crítico de Meloni], autores perseguidos devido às opiniões expressadas em entrevistas e no Instagram. A atmosfera cultural que se vive não é a melhor. Mas a única maneira de resistir a isto é permanecer em comunidade. Expressámos o nosso descontentamento [mais de 40 autores assinaram uma carta aberta denunciando a exclusão de Saviano como censura] e mostrámos que não somos controlados por nenhum partido, nem à esquerda nem à direita: somos escritores livres e a nossa única lealdade é para com o antifascismo, a nossa consciência e as nossas editoras, que foram fundadas no pós-guerra também num espírito antifascista.
Nas notas finais, sublinha os factos reais usados no livro e a importância do femicídio. Porquê?
Toda a gente em Itália está obcecada com a questão do femicídio, mas eu não estou interessada em usar uma primeira pessoa e ser lida como “a minha história”. Gaia não sou eu: eu tomo uma posição sobre o tema, muito importante para mim, através da personagem. Cruzei-me com muitas histórias [de violência, de femicídio] e não as evoco sempre de forma clara no romance… Mas há casos reais descritos de forma direta: é o caso da história terrível da Rádio do Vaticano [em 2017, o Papa Francisco desligou a maior parte das antenas da Rádio Vaticana, acusadas de terem provocado o aumento de tumores malignos e leucemias entre as crianças das populações circundantes]. Ou da água do lago de Bracciano, para onde Gaia vai viver, que foi sugada pela empresa ACEA de Roma… Os romances usam factos reais, mas digerem-nos.
Os corpos, as aspirações e as amizades femininas dominam este romance, como acontece nos livros de Elena Ferrante. Ela é uma referência ou um obstáculo para as novas escritoras italianas?
Elena Ferrante foi verdadeiramente importante para a cultura italiana porque teve uma repercussão mundial e, depois desta explosão, muitos livros nossos foram traduzidos. Não sei se estaria aqui a dar entrevistas se não tivesse havido uma Ferrante. Por outro lado, todas as escritoras italianas são agora comparadas com Ferrante. Perguntam-nos: “O que é que Ferrante lhe ensinou?” E eu respondo: “Não sei. Li Ferrante, mas ela não é uma das minhas referências literárias principais, há muitas outras escritoras italianas do último século por quem sou apaixonada.” Gosto muito dos seus primeiros três livros, mas sou uma leitora, escritora e pessoa diferente. Não me dedico às histórias das mulheres, quero explorar sempre novos temas, sejam estes dragões, homens ou o que for. Mas as expectativas confrontam-me, por vezes, com essa situação: a minha editora grega decidiu não lançar um dos meus livros, disseram-me que era difícil promover uma autora italiana com temas diferentes…
Aqui, a pobreza das classes trabalhadoras parece insuperável: Antonia defende os estudos como forma de a filha vingar no mundo, mas tal não se cumpre. Chegou ao fim o mito do sucesso inevitável?
Sim. Aliás, regressando a Ferrante, Lenu sai do bairro para ter uma vida melhor, mas a família de Lila não lhe permite estudar [no romance A Amiga Genial]. Esta é a narrativa dominante na nossa cultura. Os meus pais foram os primeiros das suas famílias a estudar [Letras] na universidade, e trabalharam nas bibliotecas públicas toda a vida. Isto já não acontece. Podemos estudar tudo o que quisermos, mas provavelmente não encontraremos oportunidades de trabalho, nem será fácil termos casa, família, projetos. Gaia decide estudar Filosofia, porque não?, e no fim não consegue nada: tem de trabalhar para sustentar a família. A vida real de muitos da minha geração é que, depois de estudarem, têm de trabalhar em restaurantes, ou em alojamentos locais a tratar de check-in e checkout… Isto é tão injusto! Ficam fora da conversação cultural, ao contrário daqueles que têm dinheiro.
A raiva de Gaia é a raiva visível na geração de Greta Thunberg pela luta ecológica, ou, no polo oposto, na que adere à extrema-direita?
A raiva de Gaia é egoísta e apolítica: ela quer apenas ter coisas, integrar-se. Gaia não é Greta Thunberg a usar a indignação para um objetivo. E há muitos partidos de extrema-direita a explorar a raiva e a frustração dessas pessoas apolíticas e individualistas para coisas terríveis. Mas há muitos pobres, mulheres, imigrantes, a votarem nestas forças políticas. Porquê?! Talvez porque sintam a sua raiva representada. Há algo a mexer, não sei. Mas eu tentei criar uma personagem que alguém poderia manipular nesse sentido.
Virá outro “terramoto” quando o Papa Francisco desaparecer?
Não sei. Em Itália, quando um Papa desaparece, é um acontecimento importante. Mas o verdadeiro debate dentro do Vaticano relaciona-se com a luta das mulheres: não é possível continuarem na situação em que não podem votar, expressarem-se sobre a instituição, ainda que sejam fundamentais no seu trabalho. A Igreja precisa de mudar se quiser sobreviver. Mas depois de Francisco, vão continuar as reformas ou retroceder? Esta vai ser uma questão basilar para Itália. E fala-se que o próximo Papa pode ser africano, um Papa negro: isto seria fortíssimo, agora que o debate sobre a imigração está descontrolado. Podia até ser só uma imagem simbólica, mas que imagem poderosa!
