-Senti a sua falta, Rosa.
– Diz sempre isso, minha Senhora, sempre que regresso do fim-de-semana.
– Mas desta vez, pediu a sexta à tarde e foi mais cedo embora.
– Pois foi. Mas queria muito ir à palesta da escola da minha filha, sobre violência no namoro. A gente tem de as acompanhar; a miúda botou corpo de repente e eu e o pai estamos preocupados. Mais o pai. Anda aflito com a possibilidade dela namorar. Mas é para aí que vai. Não é por ser minha, mas o raio da miúda é uma mulher bem bonita. E se o coração não me mente, já anda mouro na costa. Sabe como é, Senhora Dona Natália, somos mães, sabemos essas coisas. Eu só quero é que o rapaz a trate bem. Afligem-me tanto as notícias da violência doméstica e, agora, até com os miúdos, no namoro. O meu homem, nunca me pousou um dedo e tomara eu a mesma sorte para a minha Sandra.
-Isso não é só sorte, Rosa. Isso é uma opção. Ficamos ou não ficamos quietas no mesmo lugar, num sofrimento que cava fundo, em nome de um amor, ou do que julgamos ser amor. Olhe para mim, Rosa. Continuo quieta e com medo e considero um grande avanço conseguir dizer, em voz alta que não amo o meu marido. Mas não consigo dizer mais nada. Muito menos fazer.
Apanhei pela primeira vez, andava grávida da minha filha mais velha. Como chamar a um homem que bate numa mulher grávida, Rosa? Depois, vieram mais cinco filhos. E eu continuei onde estou. Vejo as notícias, consolo-me com as denúncias feitas pelas outras mulheres. Rezo por elas, para que não desistam de ser felizes. Identifico-me com o sofrimento anunciado pelas suas vozes retorcidas, com o grito silencioso por detrás das máscaras brancas, e parece-me que sou eu que grito, que qualquer coisa começa a sarar cá dentro. Mas não sara, Rosa. É só um fingimento. Como a vida que escolhi levar. Fui eu que escolhi, Rosa. Primeiro era o amor. Era mesmo o amor, Rosa. Depois a vergonha. Naquele tempo uma mulher divorciada não era ninguém. E eu não me imaginava a dar esse desgosto à minha mãe, mas principalmente a mim mesma.
A minha irmã, também nunca me apoiou para que me separasse. Antiga, ainda hoje me diz “comeu-te a carne, agora que te roa os ossos”, eu fui ficando, ficando até conseguir ouvir claramente o desabrochar dos gerânios na varanda, o barulho lento das malvas a crescer nos vasos. Fui sempre arranjando desculpas para ficar onde estou. Desculpas e falsas etapas. Fico só mais até os filhos casarem; fico só mais até os netos nascerem; fico só mais até não restar mais ninguém a não ser eu. E agora, Rosa, é uma solidão do tamanho do deserto. Não cabe na casa, não cabe na cidade, não cabe em lado nenhum.
A casa foi-se esvaziando, como as minhas forças se vão esgotando. É por isso Rosa, que ponho a televisão nas alturas, para não ouvir o desertar da minha valentia física e as dores que há em mim. Dores às camadas, como as etapas que inventei e queimei sem agir. Tudo junto, uma só dor que não passa, nem com mil analgésicos. E é por isso que gosto de ouvir as notícias sobre violência doméstica, gosto muito Rosa. Ouço-as indignada e contente.
Indignada, por mim e por outras como eu, por continuarmos a viver com medo. Todas as empregadas que tive, Rosa, foram mais felizes no casamento do que eu e muitas, nem imaginavam que isso pudesse ser verdade. As aparências sempre iludiram, Rosa. E eu ajudei. Contente, por todas as mulheres capazes de fugirem ao sofrimento e ao medo. Por terem coragem, por serem capazes de perceber a tempo, que os filhos são mais felizes, quando nós gostamos de nós, em primeiro lugar.