A morte de Odair Moniz continua a dar que falar. Nos últimos dias, soube-se que a investigação da PJ e do Ministério Público aponta para que o auto da notícia não foi escrito pelo agente da PSP que baleou a vítima, avançou a CNN Portugal. O Expresso confirmou que a PJ suspeita que tenha havido manipulação de provas, pois o imigrante cabo-verdiano teria consigo, dentro de uma bolsa, uma faca, mas a arma branca acabou por ser encontrada no chão, junto ao seu corpo.
O primeiro comunicado da PSP referia que Odair Moniz, 43 anos, tinha tentado agredir os dois agentes “com recurso a arma branca”, versão que seria negada, pelos polícias envolvidos, no primeiro interrogatório, no âmbito da investigação conduzida pela PJ – as declarações não contaram com a presença de magistrado ou advogado (podem ser nulas em tribunal). O relatório da PSP também garantia que a vítima tinha sido “prontamente assistida no local”, mas um vídeo, divulgado pela VISÃO, mostra que, após os disparos, e durante vários minutos, nenhum dos polícias se aproximou do corpo de Odair Moniz para qualquer manobra de salvamento. Apenas, após alguma insistência dos homens que estão a filmar a cena do alto de um prédio, os agentes verificam o pulso da vítima.
O polícia que disparou os dois tiros fatais para Odair Monniz – constituído arguido pelo crime de homicídio simples – foi interrogado, na passada quarta-feira, pela procuradora Patrícia Agostinho, só que, desta vez, escolheu permanecer em silêncio. Recorde, aqui, o artigo, publicado na edição de 31 de outubro da VISÃO, que conta a história de Odair Moniz, e o que aconteceu na madrugada do dia 21 de outubro:
Odair Moniz não era anjo nem demónio. O purgatório em que viveu, durante 43 anos, não é diferente do habitado pelas gerações antes dele, nem daquele em que, hoje, resistem as quase seis mil almas que moram no bairro do Zambujal, concelho da Amadora. A vida e morte de Odair pôs Portugal a falar deste “país invisível”, mais pobre, mais vulnerável, mas também mais jovem, que continua a crescer, silenciosamente, às portas da capital – nos bairros a norte e a sul do Tejo vivem perto de meio milhão de pessoas.
Ao subirmos a rua até à casa que era de Odair, não é possível ignorar o estado de degradação dos edifícios, os buracos nas estradas e passeios, o lixo acumulado nas bermas. Pelo caminho, rostos tristes e desconfiados lamentam terem sido “abandonados pelo Estado”, denunciam o “racismo” e a “violência policial” constantes, confessam “ter medo”, mas demonstram “esperança” que a morte de “um filho do bairro”, “que gostava de dar gomas às crianças”, “conversar com os mais velhos”, “amigo de africanos” e “respeitado por ciganos [um terço dos habitantes do bairro]”, não tenha sido em vão. “Os tiros da polícia levaram o Odair, mas, naquela noite, podia ter sido qualquer um de nós. Desta vez, não nos vamos calar”, garante o bairro do Zambujal.
O crescimento de Odair
A “dor” e a “revolta” explicam-se porque “[Odair] era quem era”, resume, à VISÃO, uma familiar do imigrante cabo-verdiano, chegado a Portugal há 26 anos, que tinha mulher, dois filhos, “pai” de uma sobrinha, que cometeu erros, pagou por eles, e hoje era cozinheiro e empresário, explorava um pequeno café, situado a apenas 200 metros da sua morada. “Era onde a família e os amigos se reuniam”, faziam por esquecer a dureza do quotidiano, ao sabor da cachupa, do grogue ou simplesmente numa partida de cartas ou dominó, contra “os mais velhos, autênticos profissionais”, recorda um antigo cliente, perdido a olhar as flores e velas que enfeitam a porta fechada do estabelecimento. “É uma pena, já não deve reabrir”, solta, num pensado falado, que revela lágrimas na voz.
Quem era Odair? O homem cuja memória foi atirada para segundo plano pelo ruído provocado por declarações políticas, motins e comunicados da polícia, pintado “bandido” e “mártir”, quando ainda corre a primeira fase da investigação sobre o que aconteceu na madrugada de 21 de outubro.
Odair Moniz nasceu na Praia, capital de Cabo Verde, em 1981. Era um jovem adulto, a sentir o sabor dos 18 anos, quando abandonou a terra natal, para tentar a sua sorte em Portugal. A primeira casa – se assim se pode chamar – foi no bairro 6 de Maio, na Damaia, “aldeia” de barracas compacta e labiríntica, com locais onde o Sol não entrava, ruelas que não permitiam sequer abrir um guarda-chuva. O bairro, plantado na terra batida, foi erguido, desde a década de 1970, por quem antes deixara o arquipélago crioulo. O 6 de Maio serviu de primeiro lar da família de Dah, alcunha pela qual Odair era conhecido; Mónica manteve-se ao seu lado, numa fase de pouco trabalho e dinheiro.
Os “fura-vidas” habitavam paredes-meias. O primeiro filho de Odair acabara de nascer, mas este já decidira arriscar pelos (maus) caminhos dos outros. Era, então, um jovem de apenas 23 anos, quando resolveu assaltar um taxista. Não compensou. No dia 16 de junho de 2004, deu entrada na cadeia, condenado a quatro anos e três meses de prisão. Enquanto esteve preso, foi ainda julgado pelo crime de recetação, no âmbito de um processo de 2003, sendo condenado a mais 40 dias de cela. Recuperou a liberdade apenas em outubro de 2007, prometendo a si mesmo não insistir nos mesmos erros.
À sua espera, tinha uma casa nova. O 6 de Maio era para “ir abaixo” (as últimas casas foram demolidas em 2021), e a família conseguira um apartamento no bairro do Zambujal, freguesia de Alfragide, a menos de cinco quilómetros da antiga morada. O bairro do Zambujal começou a ganhar forma nos finais da década de 1970, com apenas três blocos. Durante quatro décadas, o bairro não parou de crescer, recebendo a comunidade africana, portugueses de etnia cigana, mas também sul-americanos e asiáticos. Depois de instalada, a população é como se fosse esquecida, as paredes não voltam a ser pintadas, os vidros partidos não são repostos, os intercomunicadores não são substituídos quando deixam de funcionar, nada é trocado. “As pessoas lá fora não confiam em nós, não contam connosco. Aprendemos a depender apenas dos nossos”, afirma, à VISÃO, um morador. “Por isso, é que é excelente viver no bairro [do Zambujal], não trocava este lugar por nenhum outro no mundo”, sublinha.
António Brito Guterres, assistente social e investigador na área de Estudos Urbanos, tem sido uma das vozes destas comunidades, conhecedor como poucos da realidade nos bairros da Grande Lisboa. À VISÃO, desdramatiza “os caixotes do lixo e os autocarros queimados” – nas noites de maior tensão e violência, após a morte de Odair – e alerta que “as coisas [nos bairros] não vão acalmar, porque [nos bairros] a vida nunca é calma”. “Estas pessoas levam uma vida dura, saem de casa para trabalhar, ainda é madrugada, e só regressam quando a noite já caiu, não conseguem acompanhar os filhos, orientá-los, apoiá-los… E depois não têm o essencial, existe uma falta de recursos, como o reduzido acesso destas populações à educação, saúde, cultura, etc…”, lamenta.
O bairro do Zambujal permitiu a Odair dedicar-se à paixão pela cozinha, passando a trabalhar em restaurantes de Lisboa, onde chegou a servir uma refeição a Marcelo Rebelo de Sousa, com quem tirou uma selfie, registo que não deixou de partilhar na sua página de Facebook, numa das suas últimas publicações naquela rede social. A vida corria-lhe melhor do que nunca.
Nos tempos livres, gostava de reunir com os amigos, não só os do Zambujal, mas muitos outros que viviam em bairros vizinhos. A natureza “amiga”, “sincera” e “generosa”, como é descrito, fazia de Odair “uma figura popular”, “querida na comunidade cabo-verdiana”. “Entrava em todos os bairros, todos o conheciam, recebiam-no de braços abertos, todos gostavam dele”, enumera um homem, que convivia com Dah.
Nesses serões, não faltava música, e também os comes e bebes. Por vezes, havia excessos “naturais”, contam. Foi o último problema de Odair com a justiça portuguesa, apanhado pelas autoridades a conduzir embriagado, o que lhe valeu o castigo de, durante 13 meses (entre abril de 2015 e maio de 2016), ir dormir à cadeia todos os fins de semana – num regime de prisão por dias livres, à data permitido por lei.
Há quatro anos, Odair voltou a ser pai. O segundo, que, na prática, é o terceiro, por tudo aquilo que uma sobrinha representava para a família. O filho mais velho estava agora criado. A Covid-19 trouxe complicações, com fechos forçados. Para mais, tinha ainda de lidar com uma lesão, na sequência de um acidente de trabalho, que lhe provocou queimaduras graves, e o obrigou a ficar de baixa por “um período prolongado”, conta um vizinho. Por esta altura, Odair desejava mais. Quando encontrou um espaço livre, na Rua das Galegas, uma zona central no bairro do Zambujal, deu o passo com que sonhava há anos, ter um negócio próprio. Quem pôde, ajudou nas obras. “Ficou tudo arranjadinho”, descreve um antigo cliente. O café de Dah e Mónica estava aberto ao público há poucos meses quando a morte bateu à porta.
Em guerra desde 2006
“Em 2005, tudo mudou.” A frase é de uma fonte da polícia, ouvida pela VISÃO. Naquele ano, a tragédia bateu à porta da PSP, em apenas dois meses: o agente Irineu Dinis foi morto a tiro em fevereiro, na Cova da Moura; os agentes Paulo Alves e António Abrantes perderam a vida em março, abatidos junto a um bar na Amadora – os assassinos foram apanhados, condenados e cumpriram pena, mas governo e PSP queriam mais para garantir a segurança das autoridades. No ano seguinte, seria introduzida a diretiva que criou as chamadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), locais associados à prática de crimes, de maior risco, onde a polícia deve ter cuidados redobrados. “A polícia entra no bairro [do Zambujal] de cara tapada, shotgun apontada, com uma postura agressiva, violenta mesmo. Não me dizem ‘boa noite’, não me perguntam pelos documentos. Dizem-me ‘encosta-te à parede’, ‘afasta as mãos e as pernas’, chamam-me nomes”, descreve um morador.
À VISÃO, um polícia da força de intervenção, que não quer dar o nome, confirma esta descrição, mas explica que isso só acontece porque “há riscos reais, armas naqueles locais”. “A polícia, ali, também está em perigo. Veja-se o que aconteceu em 2005, por exemplo”, defende.
Os municípios com maior taxa de criminalidade geral no País são Albufeira, Mourão e Loulé, segundo números de 2022 da Direção-Geral da Política de Justiça, nenhum destes municípios tem ZUS, designação que fica reservada para os bairros da Grande Lisboa e Grande Porto. O “carimbo” tem sido muito contestado, por vezes apontado como “um problema e não uma solução”. Joana Cabral, dirigente da SOS Racismo, considera a designação “preconceituosa”, capaz de motivar ações policiais “marcadas pelo assédio, perseguição e, muitas vezes, pelo abuso e violência sem qualquer justificação”. “As pessoas são muitas vezes abordadas violentamente, sem terem qualquer comportamento suspeito, apenas porque andam nas ruas com a cor da sua pele. Há pessoas dos bairros que sabem que não podem olhar os polícias nos olhos, que não podem circular em determinados locais, a determinadas horas…. Isto, hoje, é conhecido, está documentado, não apenas através de quem tem a coragem de testemunhar, mas em relatórios internacionais, como os da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA) ou do Comité Contra a Tortura das Nações Unidas”, afirma a psicóloga e docente universitária.
O Zambujal não escapa ao “carimbo” ZUS. Ponto de partida de Ré, internacional português de futsal, que passou pelo Benfica, e atualmente representa o Leões de Porto Salvo, do modelo internacional Cláudio Gonçalves, de alcunha Tibunga, nome que veste marcas como Louis Vuitton, Prada ou Hermès ou ainda do cantor 2Much, com milhões de seguidores nas plataformas, o bairro, encostado ao IC19, tornou-se palco mediático por maus motivos. Dah tinha “carimbo” ZUS.
A família “não fala”, está de luto, a sofrer, mas também “zangada” com “a polícia” e “os jornalistas que inventam coisas”. “O Odair era uma boa pessoa, superamiga e supertrabalhadora”, concluem dois amigos, à porta daquele que, agora, é o único café à vista.
António Brito Guterres acredita que “o contexto explica a morte de Odair”. Joana Cabral vai mais longe, dizendo que os contornos do caso “são demasiado semelhantes com situações passadas”. “Pelo que se sabe, a arma de fogo parece não ter sido usada com proporcionalidade pela polícia”, acusa. Já Catarina Morais, advogada da família de Odair, ligada à associação Vida Justa – que organizou a manifestação de sábado, 26 –, pede que seja “minuciosamente investigado” tudo o que se passou naquela noite. “E que, desta vez, a Justiça funcione”, apela.
A VISÃO sabe que o tiro que matou Odair foi disparado por um jovem polícia, de apenas 21 anos, que tinha concluído o penúltimo concurso para entrada na PSP, e se encontrava ao serviço há pouco mais de um ano. Paulo Santos, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Policia (ASPP/PSP), “lamenta muito” este episódio, mas não deixa de apontar que o mesmo já estaria esclarecido “caso os polícias usassem bodycams e tasers [apenas usados por algumas equipas do corpo de intervenção]”, equipamentos que considera “determinantes”. “Agora, as pessoas percebem o impacto negativo da falta de investimento na polícia por parte do Estado português, nos recursos humanos, nos meios, na formação”, diz.
Uma semana de dor e revolta
Os momentos que antecederam a morte de Odair continuam envoltos em contradições e incongruências. A PJ investiga. O agente da PSP que disparou meteu férias. Os incidentes que se seguiram provocaram um ferido grave
Perseguição e morte
Na madrugada de 21 de outubro, Odair Moniz tornou-se “suspeito” depois de, alegadamente, ter pisado um traço contínuo, quando conduzia na Avenida da República, na Amadora. A primeira descrição dos acontecimentos surge, logo pela manhã desse dia, através do comunicado da PSP: Odair não respeitou a ordem para parar da polícia e “encetou fuga”. No interior do bairro da Cova da Moura, o “suspeito” perdeu o controlo e embateu em viaturas ali estacionadas. Pelas 05h43, os dois polícias procederam “à interceção” de Odair, mas este terá resistido à detenção e tentou agredi-los “com recurso a arma branca”. Depois de “esgotados outros meios e esforços”, um dos polícias recorreu “à arma de fogo e atingido o suspeito” (com dois tiros). Odair faleceu, pelas 06h20, no Hospital São Francisco Xavier.
Comunicado polémico
A primeira notícia sobre o caso descrevia Odair como “suspeito de furto de viatura”, mas a informação seria desmentida, horas depois, pela VISÃO, que confirmou que o homem seguia ao volante “do próprio carro”. Nos dias seguintes, contradições e incongruências colocaram em causa a versão da PSP: os dois polícias, ouvidos pela Polícia Judiciária (PJ), confirmaram que Odair resistiu à prisão, mas negaram que este tivesse na posse de uma arma branca (a faca que o “suspeito” transportava estaria no interior de uma bolsa). A VISÃO publicou ainda um vídeo, filmado por testemunhas, nos momentos que se seguiram aos disparos, que mostra não ter sido prestada “pronta assistência médica” a Odair, como garantira a polícia; nenhum dos polícias se aproximou da vítima ou efetuou manobras de salvamento.
PJ lidera investigação
A investigação do caso passou para as mãos da PJ. Depois de prestar declarações, o agente da PSP que matou Odair foi constituído arguido. O jovem polícia, de apenas 21 anos – e com apenas um ano de serviço – entregou a arma aos investigadores, e foi posto em liberdade. Está a receber acompanhamento psicológico e meteu um período de férias, alegadamente por ordem superior. O Ministério da Administração Interna determinou à Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) a abertura de um inquérito “com caráter de urgente” para apurar o que aconteceu naquela noite. A PSP também anunciou uma investigação interna para apurar as circunstâncias do caso.
A voz dos bairros
Logo na noite seguinte à morte de Odair, a revolta saiu à rua no bairro do Zambujal. Os motins viriam a alastrar-se a outros bairros da Área Metropolitana de Lisboa. No meio do caos, com dezenas de caixotes do lixo e viaturas a arder, surgiu nova polémica, com a família de Odair a acusar elementos da PSP de terem arrombado a porta da casa da família, situação que a polícia negou. Uma carrinha da PSP chegou a ser baleada, mas a situação mais dramática aconteceu em Santo António dos Cavaleiros, Loures, depois de um autocarro da Carris Metropolitana ter sido atingido por cocktails molotov, que provocaram queimaduras graves a um motorista de 41 anos. O homem mantém-se internado no Hospital de Santa Maria, em situação estável, não correndo perigo de vida.
Uma história de violência
O nome de Odair Moniz entra para uma (longa e infame) lista de mortes em Portugal às mãos da polícia. Em casos semelhantes, os tribunais têm optado por penas leves para quem dispara, a maioria dos réus foi mesmo absolvida
O caso de Romão Monteiro tem duas décadas. O homem, de etnia cigana, com 33 anos em junho de 1994, tinha sido detido e levado para a esquadra de Matosinhos. Dentro daquelas instalações, foi atingido fatalmente por uma bala disparada pela arma do agente Domingos Antunes. Logo no dia seguinte, a PSP explicou, em comunicado, que a vítima se tinha apropriado da arma do polícia, e cometido suicídio. O relato seria, no entanto, contrariado pela autópsia, e também por testemunhas que confirmaram que a vítima estaria algemada, com as mãos atrás das costas. A PSP alterou a versão para tiro “acidental”, mas não se livrou das críticas. O episódio provocou ondas de choque, destapando uma aparente cultura de corporativismo policial e encobrimento nas forças de segurança.
Numa decisão inédita, o tribunal condenou Domingos Antunes, por homicídio por negligência, a uma pena de três anos de prisão, suspensos por quatro anos. O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça permitiu-lhe, porém, manter o emprego.
Um (raro) estudo sobre o tema, da antropóloga Ana Rita Alves, indica que, em Portugal, uma pessoa cigana tem 43 vezes mais probabilidades de ser morta pela polícia do que uma pessoa não cigana; uma pessoa negra, 21 vezes mais probabilidades de ser morta do que uma branca.
Já no século XXI, vários episódios suportaram estas estatísticas. Em 2001, Ângelo Semedo, 17 anos, foi abordado por dois polícias, suspeito de ter roubado um carro. Angoi, como era conhecido, pôs-se em fuga, mas seria atingido fatalmente nas costas por um tiro de caçadeira disparado por um agente da PSP.
A morte nunca deixou de rondar os bairros da Grande Lisboa, situados nas denominadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS). A memória recorda Manuel Pereira, o Tony, 24 anos, morto a tiro de espingarda, em Setúbal, Carlos Reis, PTB, 20 anos, baleado na cabeça no bairro do Zambujal, José Vicente, Teti, 16 anos, espancado até à morte no (agora extinto) bairro 6 de Maio, ou ainda o rapper Mc Snake (Nuno Rodrigues), 30 anos, morto com um tiro nas costas no centro da capital.
A lista não caberia toda aqui.A morte de Edson Chaves, Kuku, denuncia a neblina que envolve muitos destes casos: em janeiro de 2009, Kuku, 14 anos, foi cercado pela polícia. A PSP alegou que o adolescente, suspeito de furtos, apontou um arma de fogo aos agentes da PSP, acabando por ser “neutralizado” com um tiro na cabeça. Quando os investigadores chegaram ao local, a pistola estava caída ao lado do cadáver. As conclusões, chocaram: Kuku nunca terá tocado na pistola (que não tinha impressões digitais, apesar da vítima não usar luvas), o tiro que matou Kuku foi disparado a menos de 20 centímetros da sua cabeça. O caso seguiu para os tribunais, que aplicaram a regra: o polícia que disparou acabou absolvido.
Edgar Cabral, Dirigente da Associação de Moradores A Partilha
“As pessoas não confiam na polícia”
Nascido e criado no bairro do Zambujal,Edgar Cabral garante, por outro lado, que a população “acredita na PJ” para apurar “a verdade” sobre a morte de Odair. “Só queremos viver em paz”, diz
Como está, neste momento, o ambiente no bairro do Zambujal?
Continuamos a sentir-nos muito tristes pelo desaparecimento do Odair. Antes desta morte, o bairro estava pacificado. Agora, as pessoas estão muito revoltadas… Querem justiça!
E existe confiança na investigação?
Confiamos muito na PJ. Mas, temos de admitir, tudo isto representa um retrocesso. Ao longo dos anos, a associação [A Partilha] tinha estabelecido várias “pontes”, com diversas entidades, até mesmo com a PSP, mas o que aconteceu volta a deitar “por terra” todo o trabalho feito. As tensões voltaram a crescer.
A PSP não é bem-vinda ao bairro do Zambujal?
Não temos nada contra a PSP, mas queremos que a polícia faça um bom trabalho. As pessoas [do bairro] do Zambujal, neste momento, não confiam na polícia, não acreditam que possa garantir a sua segurança, que seja justa com elas. E acho isso perfeitamente compreensível…
Como explica os incidentes que se seguiram à morte de Odair?
Existe revolta nos bairros. As pessoas identificam-se com o Odair, sentem que podiam estar no lugar dele. Sentem que há racismo na sociedade portuguesa, que ninguém conta com elas, que não as respeitam…
Os incidentes são os sinais dessa revolta.
Agora que as coisas estão mais calmas, o que se segue?
Infelizmente, o Odair já não vai voltar, mas queremos que a verdade seja conhecida, que se faça justiça, com provas verdadeiras. Quem errou tem de ser responsabilizado. Depois, só queremos viver em paz.
André Ventura chamou “bandido” a Odair, e a outras pessoas que vivem nos bairros. Com discursos destes, ainda tem confiança no futuro?
O Chega não representa os portugueses, nem a História de Portugal. Apenas espalha ódio, teorias sem sentido. Acho que as palavras de André Ventura deviam envergonhar todos os portugueses, mas não o confundo com a maioria das pessoas.
Acredita que a morte de Odair pode ser um ponto de viragem?
Já tivemos demasiados casos destes. Se não houvesse vídeos e testemunhas, o Odair seria acusado de atacar a polícia com uma faca, e pronto. Não pode ser! Espero que a PJ descubra a verdade e que seja feita justiça. Tenho esperança que vai ser desta, que estas situações não se voltem a repetir.