“Os toxicodependentes devem ser fechados para não incomodarem as outras pessoas”? “As associações ecologistas impedem o desenvolvimento industrial”? “É perigoso ter um vizinho doente com SIDA, já que pode contagiar-me”? “Em tempos de crise económica, os emigrantes devem dar os seus postos de trabalhos aos naturais do país”? “Em minha casa, ficariam incomodados se eu me casasse com uma pessoa deficiente”? “As mulheres só deveriam trabalhar fora de casa se pudessem também tomar conta da família e das tarefas domésticas”? Estas são algumas das questões-afirmações incluídas num questionário (anónimo) aplicado a 11.500 alunos dos ensinos básico (1º, 2º e 3º ciclos), secundário e profissional, de 18 escolas do País, no âmbito do AVES – Programa de Avaliação Externa de Escolas. À VISÃO, a Fundação Manuel Leão (FML), responsável pelo AVES, diz que “as afirmações contidas no inquérito Valores e Atitudes visam provocar a reação e a opinião de cada respondente, de forma o mais inequívoca possível, numa escala de cinco níveis, do muito em desacordo total ao muito de acordo, e, como é óbvio, nada têm que ver com a adoção e manifestação de um ponto de vista por parte da entidade que formula o questionário”.
É, precisamente, este parâmetro Valores e Atitudes, com o âmbito de avaliar as opiniões dos estudantes relativamente a dimensões como a tolerância, a igualdade de oportunidades entre os sexos, a ecologia, a saúde e bem-estar, que está a causar mal-estar entre alguns pais do Agrupamento de Escolas de Miraflores, em Algés, Oeiras. A VISÃO teve acesso a uma exposição feita por uma mãe, cujo filho frequenta o 5º ano, à diretora do agrupamento, sobre a surpresa provocada pelo facto de “a maioria das questões não irem ao encontro da maturidade cognitiva, emocional e de competências de uma criança de 10/11 anos. Adicionalmente, a forma como são formuladas é descontextualizada, desadequada e ambígua, criando uma grande confusão nas crianças”.
Em conversa com a VISÃO, preferindo manter o anonimato, a mãe refere que “na verdade, quase nenhuma pergunta se aproveitava e tenho dúvidas se passariam de forma tranquila numa comissão de ética, porque são muito discutíveis… e vão sempre pela negativa: ‘os toxicodependentes atrapalham as pessoas’, ‘as pessoas com SIDA podem contagiar’. Podem lançar-se aqui algumas sementes nas cabeças dos miúdos, de coisas que eles eventualmente nunca pensaram. E não tem só a ver com a maturidade”, critica. No que diz respeito ao seu filho, conta que “estava um pouco confuso e desconfortável com algumas questões, por não saber o que eram ou por não saber o que responder”.
Na exposição feita à direção, a encarregada de educação pede o esclarecimento se este instrumento foi alvo de uma reflexão séria. “Não temos nada contra a formulação das questões, foram vistas e revistas, a única coisa que podíamos ter feito era uma adaptação aos níveis etários”, responde Fátima Rodrigues, a diretora do agrupamento, à VISÃO. Admite, aliás, ter já contactado com a gestora do projeto, da FML, para adaptar algumas das perguntas. Esclarece ainda que este processo diz respeito à autoavaliação das escolas, a que estão obrigados, uma ferramenta “extraordinariamente importante, porque permite-nos arranjar estratégias para melhorar os pontos identificados”, com a ajuda desta entidade externa.
A FML afirma que “as escolas aderentes podem sempre aplicar os instrumentos do AVES no todo ou em parte e não existe nenhum tipo de imposição por parte do Programa. Apenas no caso das chamadas Provas de Conhecimento (que avaliam as aprendizagens realizadas em várias disciplinas) se recomenda a cada escola uma aplicação regular”. Mas também reconhece que houve estabelecimentos de ensino aderentes que solicitaram que o inquérito em concreto fosse aplicado ao 1º e 2º ciclos, “sem que os serviços da Fundação os tivessem advertido para a necessidade de se realizar a prévia adequação a outros níveis etários”.
No entanto, adianta que “no ano 2022 foi decidido iniciar um processo de revisão do AVES, e também deste questionário, tendo em conta o facto de ter havido escolas que aplicam o AVES e que nos pediram para que os seus questionários fossem aplicados a alunos mais novos. Esse processo encontra-se em fase de conclusão e verificou-se que é necessário alterar a formulação de algumas questões-afirmações. Entretanto as escolas do AVES têm aplicado estes questionários e a próxima aplicação deste questionário, em concreto, conterá uma versão com algumas reformulações.”
A diretora do agrupamento de Escolas de Miraflores não põe em causa o racional científico em que se baseia o AVES, “até porque a fundação tem à sua frente o professor Joaquim Azevedo [professor catedrático, membro do Conselho Nacional de Educação e ex-secretário de Estado da Educação], e outros nomes credíveis e idóneos no mercado educacional”. De acordo com a FML, o programa “resulta de um acordo com o Instituto IDEA, de Espanha, criado e apoiado pela Fundação SM Santilhana, que o aplicava em Espanha. Foi analisado e avaliado pela nossa equipa científico-técnica e adotado, tendo revelado ser um elemento robusto de avaliação das atitudes e valores dos alunos, em torno das seguintes categorias: tolerância, ecologia, saúde e transversalidade”.
Em Miraflores, apesar das críticas ao questionário levantadas durante as reuniões de pais, apenas duas queixas foram apresentadas. A FML também garante ter recebido apenas um pedido de esclarecimento de um encarregado de educação, entre todos os 18 estabelecimentos de ensino em que o AVES foi aplicado.
“Sei que o inquérito foi mordaz, mas está a dar-me um certo nervosismo, porque isto vai inquietar imenso o nosso grupo de docentes e os pais”, indica Fátima Rodrigues. A diretora ainda não teve acesso aos resultados – cujas respostas são confidenciais –, mas chegaram-lhe relatos de “miúdos do 9º ano que não sabem o que é a SIDA e foram perguntar à professora se não era a doença dos ‘maricas’. Estas coisas têm de ser desconstruídas na escola, temos a obrigação de abrir os olhos a estes jovens”, aponta. “Posso garantir-lhe que os resultados vão ser duros.”