Ainda há um mês, seca era a palavra que nos atormentava. Os rios estavam sem água, as barragens a produzir eletricidade muito abaixo das suas capacidades. As imagens que nos chegavam podiam classificar-se de pré-apocalípticas.
E de repente, começou a chover. Respirámos de alívio. Afinal, era disso que precisávamos e até estávamos na época adequada para caírem algumas chuvadas, mesmo sem frio.
Só que ninguém estava preparado para que, num ápice, Lisboa e arredores virassem caos, que estações de metro inundassem, que centros comerciais tivessem de ser evacuados, que a zona ribeirinha ficasse mais uma vez intrasitável, que comerciantes de rua vissem os seus produtos a boiar, que se morresse numa cave, enquanto se salvava um familiar. Registaram-se valores de precipitação acima dos 70 milímetros no dia 7 de Dezembro – caíram mais de 70 litros de água por metros quadrados numa hora.
Tudo isto se passou há apenas cinco dias. Terça-feira, a capital e redondezas acordaram de novo debaixo de água. As imagens que nos chegam são assustadoras. Mandam-nos ficar em casa e esse conselho vai bater direto noutros semelhantes, dos tempos da pandemia. Lêem-se comunicados: o restaurante X não abre hoje, o espetáculo Y vai ser adiado, o bar da frente ribeirinha não recebe clientes.
Mas afinal, teremos de estar preparados para sair de galochas ou de sapatos a la barbatanas, como sugere um dos muitos memes criados sabe-se lá por quem para nos fazer rir desta situação?
O Plano de 2016 e os 250 milhões de euros
José Sá Fernandes, ex-vereador da câmara de Lisboa com o pelouro do ambiente, afirma que “se chover com intensidades gigantescas vai haver sempre inundações em Lisboa, porque é uma cidade com frente ribeirinha”. Mas, realça, ao tornarem-se mais frequentes estes fenómenos, há que trabalhar ainda mais ao nível das drenagens.
O ex-autarca da equipa de António Costa e depois de Fernando Medina conhece bem a história da impermeabilização dos solos lisboetas, pois ouviu muitas vezes o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles a falar nos corredores verdes, que deveriam existir para levar a água para o rio sem provocar estragos em caso de chuva intensa.
Em vez disso acontecer no seu devido tempo, Sá Fernandes foi assistindo ao loteamento em leitos de cheia e em declives. “Quando estivemos na câmara, parámos com isso no Vale de Chelas e no Vale de Santo António. Foi uma mudança total. Aliás, o PDM já não o permite desde 2012.”
José Sá Fernandes conhece bem a história da impermeabilização dos solos lisboetas, pois ouviu muitas vezes o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles a falar nos corredores verdes, que deveriam existir para levar a água para o rio sem provocar estragos em caso de chuva intensa
Entretanto, diz, pegaram no esquema que Carmona Rodrigues, anterior presidente da câmara, tinha elaborado quando percebeu que só os coletores construídos nos anos 1960 não chegavam para evitar catástrofes, e criaram um plano, apresentado finalmente em 2016.
“Era bastante diferente do que nos chegou às mãos, pois fomos ouvir pareceres técnicos de especialistas do LNEC e do Instituto Superior Técnico e abrimos concurso público para esse plano de grande envergadura. Conseguimos financiamento europeu de 250 milhões de euros e começámos então a trabalhar nas bacias de retenção a céu aberto, que já existem em todos os jardins que projetámos”, explica.
Faltou consignar a construção dos túneis de escoamento para o rio, parte muito importante da obra e que minimizará as consequências de uma cheia na Baixa e em Alcântara. Foi isso que a nova equipa autárquica fez – a obra, segundo Carlos Moedas, atual presidente da capital, começará em março.
Para resolver as situações no Campo Grande, Campo Pequeno, Praça de Espanha e Sete Rios só “aumentando a capacidade dos coletores, para fazerem melhor drenagem”.
A culpa não é das alterações climáticas
Não sendo engenheiro, o climatologista João Santos também sabe que a culpa das imagens que nos chegam no day after é da impermeabilização dos solos, das cidades crescerem sem respeitarem a sua morfologia e sem criar infraestruturas adequadas para lidar com estes fenómenos meteorológicos.
Por isso, afasta a possibilidade de estas chuvadas estarem relacionadas com as alterações climáticas, embora elas sejam responsáveis pela ocorrência de fenómenos extremos. O docente da universidade de Trás-os-Montes e diretor do CITAB, centro de investigação e tecnologias agroambientais e biológicas, lembra: “Temos muitos episódios de cheias na nossa Histórias, alguns até mais graves do que estes, com muitas mortes e prejuízos associados, só que já não estamos habituados a eles, pois o cenário mais preocupante, provocado pelas alterações climáticas é a seca.”
Tal como Sá Fernandes, João Santos nota que, em meio urbano, mesmo com algumas infraestruturas adequadas, a intensidade e concentração da precipitação (muita quantidade em muito pouco tempo) determina as inundações, especialmente em zonas críticas das cidades, como as que se situam junto a rios e mares.
O que está a causar elevados níveis de precipitação é a movimentação da corrente de jato, muito forte, que existe à volta do Planeta, e que se deslocou muito para sul
Neste particular, o que está a causar elevados níveis de precipitação é a movimentação da corrente de jato, muito forte, que existe à volta do Planeta, e que se deslocou muito para sul. “Por baixo dessa corrente, mais junto à superfície, formam-se baixas pressões e ciclones, massas de ar do Atlântico, húmidas e instáveis. Quando ela se desloca demasiado para sul, traz consigo esses fenómenos para o sul da Europa e vagas de frio mais a norte, como se está a verificar, por exemplo, em Inglaterra”, explica o climatologista.
Esta deslocação até pode ser considerada anormal num contexto de alterações climáticas, pois quando a corrente de jato está mais para norte, provoca situações de seca, o que tem acontecido com mais frequência. “Quase se pode dizer que isto é uma bênção, porque são fenómenos cada vez mais raros.”
“Estamos dentro da normalidade. Ainda nem podemos dizer que dezembro será um mês particularmente chuvoso, apesar de agora termos essa sensação. As pessoas tendem a esquecer – já não estranham ondas de calor, mas vagas de frio ou inundações sim, porque já são cada vez mais raras.”