“Sei que os dias que correm são de grande azáfama fora da incubadora e que vocês estão com o coração muito apertadinho por eu ter sido muito apressado e ter vindo mais cedo do que tinham planeado. Mas não se preocupem, vou crescer e não faltará muito para podermos estar todos juntos. Sei que o mundo está uma grande confusão aí fora, mas por aqui as coisas são muito tranquilas. As ‘tias enfermeiras’ cuidam de mim todos os dias, com muito carinho, para que eu possa crescer.”
Maria Lucena e Francisco Pereira Nunes conhecem estas palavras de cor. O casal nunca imaginou que um dia fosse receber uma carta no correio escrita em nome do seu bebé nascido prematuramente. Por estarem infetados com a Covid-19, não podiam vê-lo nem tocar-lhe. E o tempo tornou-se verdadeiramente relativo.
Dois segundos. À medida que Maria Lucena, 34 anos, soma pormenores ao nascimento do seu primeiro filho, vai repetindo essa informação a espaços: dois segundos. Afinal, foi apenas durante esse curtíssimo período de tempo que conseguiu vislumbrar o seu bebé, após dar à luz. Seguiram-se horas, dias, semanas de separação. “Era como se o tempo não passasse. A mim, pareceram-me dez anos. Foi horrível”, confessa, numa sala de espera próxima do Serviço de Neonatologia da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, onde agora passa os seus dias.
A secretária executiva soube que estava infetada com a Covid-19 às 28 semanas de gravidez. O marido, Francisco Pereira Nunes, 34 anos, foi contaminado durante uma viagem a uma estância de esqui na Suíça, no início de março, e transmitiu-lhe a doença. “Não fomos a tempo de impedir o contágio”, lamenta o bancário, sentado ao seu lado. Mas nenhum deles infetou mais ninguém.
A Covid-19 foi o primeiro contratempo de uma gravidez que decorria de forma serena.
“Inicialmente, fiquei muito preocupada por ter sido contagiada grávida, mas o meu obstetra tranquilizou-me. Disse-me que não há evidência de que a doença se transmita da mãe para o filho durante a gravidez”, recorda. Ainda com sensivelmente três meses de gestação pela frente, a sua expectativa era a de recuperar a tempo de o parto decorrer com toda a normalidade. Manteve-se assintomática, nunca teve febre nem tosse, só sentiu falta de paladar e de olfato durante um par de dias, tal como o marido, que também não inspirava cuidados. A evolução da doença não os preocupava. Refugiaram-se calmamente em casa.
O que Maria Lucena não esperava era que o bebé nascesse duas semanas depois do diagnóstico da infeção. “Nenhuma mulher imagina ter um filho aos sete meses…”, constata.
Estava descontraidamente em casa, a cumprir a quarentena, quando lhe rebentaram as águas. O obstetra que a acompanhava num hospital privado encaminhou-a imediatamente para a MAC, que ficou de sobreaviso para a chegada da primeira parturiente com Covid-19. “Senti que a equipa estava um pouco assustada e com muitos cuidados, mas foram todos impecáveis”, sublinha. Maria Lucena esteve dois dias internada, em isolamento, até ao nascimento do bebé.
Quando chegou a hora, a sala de partos pareceu-lhe um cenário de ficção científica: “Lembro-me de estar coberta com um plástico transparente e de todas as pessoas à minha volta parecerem astronautas. Não seria capaz de reconhecer nenhuma delas porque não consegui ver o seu rosto”, admite. O neonatologista que estava preparado para receber o bebé nem sequer entrou na sala de partos para diminuir a possibilidade de contágio.
Manuel nasceu às 30 semanas e quatro dias de gestação, por cesariana, a 27 de março daquele que, não é difícil adivinhar, ficará conhecido como “o ano da pandemia”. Pesava 1,530 quilogramas. Aos dois segundos inesquecíveis em que a mãe conseguiu vislumbrar o seu bebé seguiu-se o vazio.
Tão perto, tão longe
“Foi muito difícil. Senti-me muito sozinha e isolada. Só pensava no Manuel e no que podia acontecer-lhe. Era uma angústia muito grande”, revela Maria Lucena. “Durante os cinco dias em que estive internada na maternidade não recebi uma única visita e, depois de o Manuel nascer, as enfermeiras já não estavam sempre ao pé de mim. Se eu precisasse, tinha de as chamar, mas nunca as chamei. Eu sabia que as pessoas tinham medo de estar ao pé de mim.”
Enquanto a mãe permanecia na zona da maternidade reservada às pacientes com Covid-19, o pequeno Manuel estava na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais. Durante as suas primeiras horas de vida, também o recém-nascido seria tratado como se estivesse infetado. Foi levado para um quarto de pressão negativa (com um sistema de ventilação próprio que não permite a disseminação do ar contaminado) e os profissionais de saúde que o acompanharam estavam totalmente equipados com fatos de proteção. O bebé foi testado logo à nascença e também 48 horas depois. As análises confirmaram que não tinha sido contagiado com o novo coronavírus.
Apesar de mãe e filho estarem separados apenas por um piso, a distância era intransponível. Maria Lucena só via o seu bebé nas videochamadas que médicos e enfermeiros lhe faziam diariamente. Era através do telefone que mantinha contacto com o exterior, incluindo com Francisco, que continuava doente em casa. Mas o mais difícil foi regressar a casa sozinha.
“Só pensava que o Manuel precisava de mim e que eu não podia estar com ele”, recorda, angustiada. Francisco procurou uma forma racional de lidar com o facto de ainda não conhecer o filho: “Se ele não tivesse nascido prematuro, ainda estaria na barriga da mãe e também não o teríamos conhecido. Pensar assim ajudou-me.”
Maria não conseguiu encontrar nenhuma estratégia que a ajudasse a suportar a separação. “Foi muito mau… Foi horrível…”, diz, procurando o adjetivo que transmita a dor de não conhecer o próprio filho. Escapa-lhe a palavra certa. “Chorava muito. Chorava quase todos os dias”, sublinha a jovem mãe.
Correio especial
“Espero que a Mamã e o Papá em casa também estejam tranquilos e, acima de tudo, que estejam a cuidar de vocês para que nos possamos conhecer pessoalmente. Anseio por ouvir a vossa voz, poder-vos tocar e cheirar!” As palavras foram escritas pelas “tias enfermeiras”, que lhes deixaram a carta em nome do Manuel na caixa do correio no Domingo de Páscoa, dia 12.
A enfermeira-chefe do Serviço de Neonatologia, Esmeralda Pereira, revela que a sua equipa estava de coração partido por o Manelinho ser o único bebé sem possibilidade de receber a visita dos pais na Páscoa. Então, pediram autorização para terem acesso à morada dos pais, que vivem próximo da maternidade, e puseram mãos à obra. A carta conta que o recém-nascido já respira sozinho ou que é alimentado de três em três horas por uma sonda. As enfermeiras juntaram outra preciosidade à correspondência: fotografias polaroide do bebé. Ninguém contou, mas não duvidam de que terão olhado para elas centenas de vezes.
Os pais não poupam nos elogios à equipa que os tem acompanhado na maternidade: “São como uns segundos pais”, afirmam.
“O Manelinho foi o nosso primeiro bebé filho de pais positivos [para a Covid-19], mas o risco está totalmente ultrapassado. E ele está a evoluir muito bem”, afirma, satisfeita, a coordenadora de Neonatologia do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, que inclui o Hospital Dona Estefânia e a Maternidade Alfredo da Costa, Teresa Tomé. Para surpresa dos pais, a equipa da maternidade adotou rapidamente o diminutivo Manelinho.
A neonatologista explica que as mães infetadas com o coronavírus podem levar os bebés para casa se tiverem condições para manterem a devida distância, respeitarem todas as normas de proteção e estiver um cuidador de apoio por perto. Neste caso, sendo o Manuel prematuro, ir para casa estava fora de questão e, estando ambos positivos para a Covid-19, também não podiam deslocar-se à maternidade. Uma situação absolutamente atípica e, nas palavras de Teresa Tomé, “violenta”.
“Sentimos a dor destes pais”, garante a médica. “O contacto entre a pele dos progenitores e a do bebé é muito importante mas, neste caso, o toque estava completamente inviabilizado”, lamenta.
O fim da espera
Dezanove dias. Ao todo, os pais foram obrigados a esperar 19 dias até poderem ver o seu filho ao vivo pela primeira vez. Tocar-lhe. Dar-lhe colo.
Após o nascimento de Manuel, um único pensamento ocupava as suas mentes: curar a doença e correr para a maternidade. “Desinfetávamos a casa todos os dias, limpávamos puxadores, interruptores, móveis, computadores, telemóveis… Fazíamos as camas de lavado várias vezes por semana… Às tantas, tornámo-nos loucos das limpezas porque queríamos muito eliminar o vírus e negativar por causa do nosso filho”, conta Maria, sem disfarçar a ansiedade provocada por essa ausência.
O primeiro teste negativo para a Covid-19 chegou no dia 9 de abril. Mas são necessários dois para serem considerados recuperados. Repetiram no dia 11. Francisco voltou a testar negativo, mas o resultado de Maria foi inconclusivo. “Nem queria acreditar”, diz, recordando o desespero. Apenas uma análise negativa a separava de estar com Manuel pela primeira vez. Em vez de ir sozinho à maternidade, Francisco resolveu esperar por Maria. “Achei que tínhamos de o conhecer os dois no mesmo dia.”
Na segunda-feira da semana passada, dia 13, Maria recebeu o resultado há muito aguardado. Estava livre da Covid-19. No dia seguinte, os pais foram juntos conhecer o seu filho.
“Foi maravilhoso”, atira Francisco. “Único”, acrescenta Maria. Mas também um pouco assustador: “Ele é muito mais pequeno do que eu imaginava. Até um Nenuco é maior do que ele”, compara a mãe com ternura.
Agora, preparam-se para uma longa temporada de recolhimento a três. Não querem correr o mínimo risco. Angustia-os que os avós ainda não conheçam o neto, mas só vão agendar um encontro quando os médicos considerarem totalmente seguro.
Tendo em conta a sua evolução, Manuel deverá deixar a maternidade dentro de 15 dias, quando chegar às 35 semanas e tiver 1,800 quilogramas. “Ainda não sei bem o que é ser mãe e estou ansiosa por descobrir”, assegura Maria. Uma das potenciais consequências da infeção pelo SARS-CoV-2 durante a gravidez pode ser o parto prematuro, mas ainda não existem certezas. “A minha gravidez foi muito tranquila, nada fazia prever um nascimento antecipado. Quero acreditar que teve de ser assim”, diz, resignada.
A conversa é subitamente interrompida, está na hora de ir trocar a fralda ao Manelinho. Maria salta da cadeira e apressa-se a ir ter com o filho. “Já me dou por vencido por saber que, agora, o homem da vida dela é o nosso filho. Cedo-lhe alegremente esse privilégio”, graceja o pai, bem-disposto.
Enquanto Maria se delicia com o bebé na enfermaria da neonatologia, Francisco revela que tentou ser um “ponto de equilíbrio e dar alguma estabilidade emocional” à mulher ao longo de toda esta história. “O choque para uma mãe é muito maior”, acredita. “Tenho noção de que daqui a uns dias posso ser eu a chorar. Ainda não descomprimi esta ansiedade. Se calhar, ela só vai desaparecer quando ele for para casa”, vaticina.
Ali ao lado, Maria segura Manuel ao colo, sabendo que está prestes a terminar a contagem decrescente até a família estar finalmente unida. A seguir, a contagem será sempre crescente.
Inquietações maternas
Persistem dúvidas sobre o impacto da Covid-19 durante a gravidez. Uma das possibilidades é a de a infeção aumentar o risco de parto prematuro
As grávidas são mais vulneráveis à Covid-19?
Até ao momento, não existe evidência científica que comprove uma maior vulnerabilidade das grávidas à infeção ou uma maior probabilidade de desenvolverem doença grave. No entanto, durante a gravidez as mulheres sofrem alterações imunológicas e fisiológicas que podem torná-las mais suscetíveis a infeções respiratórias virais, como a Covid-19. Recomenda-se, por isso, o reforço da higiene das mãos, a manutenção da distância mínima de um metro das outras pessoas e especial atenção a sintomas como febre, tosse ou dificuldades respiratórias.
As mulheres com Covid-19 correm maior risco de complicações durante a gravidez?
Sabe-se que a febre alta durante o primeiro trimestre de gravidez pode aumentar o risco de problemas congénitos do bebé – e este é um dos sintomas habituais da doença. Foram observados problemas gestacionais em mães contagiadas com outros coronavírus, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) ou a Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS), mas não existe informação sobre eventuais consequências adversas provocadas pela Covid-19.O nascimento prematuro do bebé pode ser uma das consequências da infeção?
Apesar do número limitado de casos de gravidez relatados, foram registados alguns partos prematuros de mães infetadas com a doença. Porém, ainda não é certo que esta complicação se deva ao SARS-CoV-2. Outras infeções respiratórias contraídas durante a gravidez, como a gripe ou outros coronavírus, estão associadas a complicações neonatais, como prematuridade ou baixo peso para o tempo gestacional.O vírus pode ser transmitido ao bebé durante a gestação?
Ainda não existem certezas quanto à possibilidade de contágio do feto durante a gestação. Até à data, o vírus não foi detetado em amostras de líquido amniótico, no sangue do cordão umbilical ou no leite materno. Em casos de mães infetadas por outros coronavírus, como o SARS-CoV e o MERS-CoV, não foram registadas situações de contágio do bebé durante a gravidez. Acredita-se que a transmissão entre mãe e filho poderá acontecer, essencialmente, após o nascimento, através de gotículas respiratórias contaminadas.Os bebés nascidos de mães com Covid-19 podem vir a desenvolver outros problemas de saúde?
Não são conhecidos riscos de complicações para os bebés filhos de mães infetadas ou mesmo para os bebés infetados. Se se confirmar a associação entre a doença e o nascimento prematuro ou o baixo peso à nascença, ambas as situações podem provocar complicações a longo prazo.As mães infetadas com o coronavírus podem amamentar?
Sim. O vírus não foi detetado no leite materno. No entanto, devem tomar precauções, como lavar as mãos antes de tocarem no bebé, desinfetar todos os objetos e superfícies onde tocarem e usar uma máscara durante a amamentação.As profissionais de saúde grávidas correm riscos acrescidos quando lidam com doentes com Covid-19?
A Direção-Geral da Saúde recomenda que as instituições limitem a exposição das profissionais grávidas aos pacientes suspeitos ou infetados com a doença, especialmente durante a prestação de cuidados de maior risco, que gerem aerossóis que possam transportar o vírus.
Fonte: DGS, OMS