“Tudo o que a menina precisou até agora eu tenho dado. Sou um pai à distância, mas muito presente”, conta à VISÃO João Pinheiro, o mesmo que há dez anos deu a cara perante a opinião pública e a justiça para defender que a menina que lhe tinha sido entregue ainda bebé deveria permanecer aos seus cuidados.
Ele e a mulher, Florinda Vieira, já tinham os seus filhos criados. Reuniam todas as condições para a tratar como uma princesa. Os tribunais haveriam de decidir que não, depois de a mãe, uma imigrante russa, saber que tinha de voltar ao seu país – e se ter batido com as armas que tinha para levar a filha consigo.“
A minha Alexandra pediu-me luta e eu agora vou até ao fim”, confessa-nos o homem, com a mesma convicção que tinha à época dos acontecimentos. Como se nem tivesse passado uma década desde então. Pelo meio, mudou de casa e de emprego – ele e a mulher já nem têm a Tasca da Xaninha, um estabelecimento cujo lucro era depositado numa conta em nome da criança. “Mas mantemos o quarto dela tal e qual, com todos os bonecos que tinha”, revela. “Ela sabe que a amamos e está desejosa de vir ter connosco”. Mas já lá vamos.
Até à Rússia, com amor
Em 2009, quando a polémica estalou, Alexandra tinha seis anos. Passara os primeiros tempos da sua vida com aquele casal de Barcelos, que acedeu a acolhê-la em sua casa, depois de a mãe, Natália, anuir que não reunia o básico para a criar. Nos tempos seguintes, conta-se que a russa mal visitara a filha. Tudo mudou quando, por estar cá de forma ilegal, a mulher acabou por receber ordem de expulsão das autoridades portuguesas. Foi quando se iniciou a batalha legal por Alexandra, o nome que a família Pinheiro lhe dera, ou Sandra, como Natália Zarubina, então com 34 anos, lhe chamava.
A guerra judicial durou dois anos, com recursos, mas logo depois da decisão em primeira instância, a 11 de maio de 2009, favorável a Natália, a criança foi com a mãe para Prechistoe, a 350 quilómetros de Moscovo – para a mesma casa de madeira onde já viviam os avós: Olga, contabilista num infantário, e Serguey, mineiro reformado. E ainda Valéria, a irmã mais velha de Alexandra, que fora sempre educada sem a mãe.
Apesar da distância, nem assim escaparam a ficar debaixo dos holofotes dos media. E imagina-se que os meses seguintes não terão sido nada fáceis: no fim do verão, e depois de várias queixas da vizinhança, os responsáveis locais assumiam que a mulher tinha problemas de alcoolismo. Foi quando começaram a correr rumores de que havia uma intenção assumida de lhe retirarem a filha. “É mentira”, refutava Natália. “É pura mentira!”
As autoridades de Prechistoe chegaram a garantir publicamente que mantinham essa possibilidade em cima da mesa – mas sempre rejeitando o seu regresso a Portugal. “Alexandra é cidadã da Rússia e o nosso objetivo é que fique no país”, declarava então à agência russa Ria-Novosti, Iuri Kudriavtsev, chefe da Comissão para Protecção de Menores do Concelho de Pervomaisk, onde se encontra a localidade de Prechistoe. “Ela já nem se lembra dos pais de acolhimento. Será melhor que seja adotada por uma família russa”, defendia aquele responsável.
No mês seguinte, foi o vice-governador da região que se viu obrigado a sair em defesa da menina, escrevendo aos responsáveis do blogue Xaninhanossa, que reunia defensores do seu regresso a Barcelos. Tudo para lhes assegurar que ela estava bem integrada – embora, como deixou escapar, continuasse a receber apoio domiciliário.
“Não pretendemos voltar a Portugal…”
O final desse ano de 2009 haveria de ficar marcado pelo casamento de Natália com Alexei, um cidadão georgiano que também esteve imigrado em Portugal (o que fez com que se alimentassem esperanças do regresso dos três ao nosso País). O registo oficial da cerimónia, modesto, decorreu na conservatória local. A noiva socorrera-se de um pequeno vestido cinzento bordado, colocando nos ombros um casaco de peles sintéticas e, ao lado de Alexei, apregoava a quem quisesse ouvir: “Por enquanto vamos procurar trabalho e viver em Prechistoe. Não pretendemos voltar a Portugal”.
Alexandra, essa, não esteve presente. A mãe optara por mandá-la para a escola, como de costume. A irmã mais velha também estava na escola, e os pais de Natália ficaram em casa. Mas essas não foram as únicas polémicas do momento: as fotos dos noivos, ou mais propriamente as escoriações na face de Alexei, foram suficientes para se falar, mesmo que à boca pequena, de ‘surras’ e de ‘uma noiva temperamental’. Apesar disso, e do frio – estavam 30 graus negativos, era o dia frio do ano… – era o que Alexei sempre quisera: “É a realização de um sonho”, afiançava.
“…Mas eles podem vir quando quiserem”
De repente, tinha passado um ano desde a disputa judicial. Natália, a mãe da menina, mantinha que não tinha qualquer intenção de regressar a Portugal, mas respondia sempre que João Pinheiro e a mulher, Florinda, podiam perfeitamente ir à Rússia visitar Alexandra. “Eu não posso sair daqui: ainda não tenho férias porque comecei a trabalhar há pouco tempo”, alegava, a confessar que a vida estava a organizar-se devagarinho. “E eles podem vir quando quiserem”, repetia – mesmo que, pelo meio, aproveitasse para lhes apontar o dedo. “Estão sempre a inventar desculpas: ora estão doentes ora a embaixada não lhes concede visto…”
A versão da história segundo João Pinheiro é bem diferente. Ele, que chegou a ir à Rússia em 2012, viu-se obrigado, para isso, a valer-se de uma série de estratagemas para o conseguir. “Tive de dizer que ia visitar um amigo, e foi ele que me levou à cidade de Alexandra”, recorda, agora, ao telefone com a VISÃO, a propósito da visita que lhe fez esse ano. “Noutra ocasião, chegaram a dar-me o visto. Mas depois fui notificado pela embaixada que não iria ser autorizado a embarcar. Tornei-me uma espécie de persona non grata.”
Natália gostava ainda de dizer que a família Pinheiro prometia muito, mas fazia pouco. “Comprometeram-se a enviar dinheiro para comprar um vestido para a Sandra levar à festa de finalista do infantário, mas nada”. João Pinheiro replica que sempre ajudou no que lhe pediam, mas que Natália gastava tudo em vinho: “Foi por isso que passei a enviar o dinheiro, e também o telemóvel com que falo com a Alexandra, para o Alexei”, diz à VISÃO. Alexei, entretanto, separou-se de Natália, e é agora ex-padrasto da miúda, mas ao longo destes anos acabou por se revelar um bom amigo do pai português e um elo seguro entre Barcelos e Prechistoe.
O dinheiro enviado ou por enviar não são os únicos diferendos no discurso de uns e outros. Natália não demorou a apregoar que a miúda já falava perfeitamente russo e se esquecera do português. Já o pai Pinheiro assegura que, ao longo destes anos, Alexandra lhe continua a garantir que não só não quer esquecer a língua portuguesa como quer melhorar o discurso. “Até lhe mandei um dicionário, para ela ir treinando, em vez de se socorrer só dos sites de tradução. Esses vão servindo só para nos ajudarem com as mensagens que trocamos.”
“Ó pai, luta! Não lhes dês descanso”
As últimas notícias de jornal sobre Alexandra datam de 2014, cinco anos depois de ter deixado Portugal. De acordo com o canal local de televisão Perviy Yaroslavskiy, Natália arranjara emprego como costureira numa fábrica de confeções e Alexei, o então padastro, numa serração de madeiras. Ao mesmo tempo, também se normalizavam as relações da família com as autoridades locais. Alexandra já começara a escola e, jurava a avó da menina, tudo corria bem. Ao que dizia a diretora da Secundária local, tratava-se de uma garota alegre, ativa e com excelentes notas. “A melhor aluna que um professor pode ter”.
Mas hoje, fim de março de 2019, João Pinheiro sabe bem que estas versões para russo, ou melhor, para português ver, estão muito longe da realidade. “A mãe mudou-se para Moscovo e não está nada bem. Alexandra ficou ao cuidado da avó.” E é por tudo isto que, acrescenta, foi possível manter viva a esperança de a ter novamente em casa – e muito em breve. “O nosso desejo agora era que pudesse vir em agosto de férias…” E, acredita, nem falta muito para a mudança ser definitiva, já que Alexandra sempre lhe prometeu que quando fizer 18 anos estará de volta. “Dizia-me ‘ó pai, luta, não lhes dês descanso’. E eu, quando me meto numa batalha, vou até ao fim.”