Pedófilos que não são afastados das crianças, heranças que não são pagas, regulações parentais por definir, indemnizações congeladas, cartas de condução cativas. Por muitas voltas que se dê ao discurso, nada altera as consequências da paralisação do sistema de justiça causada pela generalização do Citius, depois da entrada em vigor da reforma, a ?1 de setembro.
Na secretaria geral do serviço externo do Palácio de Justiça de Lisboa passava um pouco de tudo. Agora passa muito de nada. “O meu serviço recebe de todos os tribunais. Antes do Citius fazíamos cerca de ?3 mil mandados por mês, agora fazemos uns 30. Estamos quase parados porque as novas plataformas não conseguem emitir os mandados para o serviço externo, que não é assumido como estando dentro do sistema”, disse à VISÃO Francisco Medeiros, membro da direção do Sindicato dos Funcionários Judiciais.
Noutros tribunais começa a sentir-se o desespero: “O Citius era o nosso oxigénio. Estamos a respirar com botijas sem oxigénio”, desabafa um funcionário da zona centro. O problema agrava-se a cada dia que passa sem sistema – e já lá vão mais de 40. Por exemplo, nos tribunais do Trabalho, conhecidos como sendo dos mais céleres, os julgamentos estão a ser marcados para o final de 2015. Porque, “um dia de paragem não é um dia de atraso nos processos, é muito mais”.
Mesmo que a normalidade voltasse nos próximos dias, as consequências da paralisação já não poderiam ser evitadas. “Um simples relatório médico é uma peça processual. Como não se encontram os processos nos tribunais, vão-se acumulando os papéis, em pastinhas e montinhos. Quando isto tudo estiver arrumado, os processos podem ficar incompletos ou coxos porque faltam coisas. O Citius vai ter costas largas durante muito tempo”, vaticina Mauro Paulino, psicólogo forense, coordenador do livro Psicologia, Justiça e Ciências Forenses.
Embora se associem os serviços de Justiça a grandes casos mediáticos, a verdade é que entram em assuntos normalmente tão banais como uma carta de condução, retirada como pena acessória em caso de violação do código da estrada – e agora difícil de recuperar mesmo depois de cumprido o castigo porque não se encontram os processos – ou a viagens com filhos para o estrangeiro. Aqui se relatam alguns casos exemplares.
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TEM O FILHO EM PERIGO
Onde há uma mãe agredida, há filhos em risco. Por isso, a transferência da mulher maltratada para uma Casa Abrigo devia ter acontecido na companhia do filho de 10 anos. Mas para tudo se desenrolar dentro da legalidade, era preciso dar a guarda provisória do menor à mãe. Normalmente seriam precisos dois dias para que isso acontecesse. Desta vez, as falhas no sistema impediram que se registasse o processo atempadamente para ir ao juiz. Mãe e filho tiveram de seguir caminhos separados. Ela já está na Casa Abrigo, “a sofrer com o medo do que poderá estar a acontecer ao filho”. Ele terá de continuar com o pai durante semanas, até o caso chegar às mãos do juiz. Porque, explica fonte ligada ao caso, “não se consegue dar número ao processo nem atribuir a um juiz”.
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FALÊNCIA ESCONDIDA
Quando as empresas são declaradas insolventes, falidas, os trabalhadores podem recorrer a fundos de garantia que lhes asseguram alguma compensação pelos salários em atraso. Mas para isso é preciso que o sistema judicial funcione. “Nas insolvências, enquanto não se publicar os anúncios no portal do Citius – único meio para o fazer – não se executa a sentença porque é a publicação que a dá a conhecer. Sem a publicação, os credores não sabem que há uma insolvência e os trabalhadores não podem requerer o fundo de garantia salarial”, explicou à VISÃO Maria José Costeira, juíza do Tribunal do Comércio de Lisboa. Perante a paralisação óbvia que o impedimento implica, a juíza decidiu pedir ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) que tratasse das publicações. “Mas recusaram-se”. Além da crise criada pelo novo sistema informático da justiça, Maria José Costeira – e os tribunais do comércio em geral – tem-se confrontado com os problemas criados pelas soluções: “Os processos despachados na sexta-feira, 3, desapareceram de onde estavam e foram parar a outro juízo. Nada bate certo. A solução não está a resolver o problema. Deixei de ter acesso ao sistema todo. Não sei quantos processo entraram, nem quantos avançaram. Neste momento, ninguém confia no que está no computador”, relata, sem disfarçar algum desalento. E o regresso ao passado também não é solução: “Tínhamos tudo em papel, mas não adianta porque não podemos tramitar fora do sistema. Os processos que se conseguem despachar são uma gota de água. No fundo, está tudo parado. Não consigo imaginar o impacto disto”.
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SEM RECEBER A HERANÇA
O dinheiro pertence-lhe, está lá, mas não está… Parece brincadeira, mas a família da zona centro não tem achado graça nenhuma. E só não desesperou ainda porque as visitas semanais ao tribunal competente para exigir as tornas (compensação financeira) a que tem direito, na sequência da morte do pai, estão a ser resolvidas com pinças pelos funcionários judiciais. “Até agora temos conseguido acalmá-lo, mas nunca sabemos quando as pessoas vão entrar em desespero”, confessa um funcionário judicial. Depois do inventário e da partilha, um dos irmãos ficou com um prédio e o outro tinha de lhe pagar a parte que lhe cabia em herança. Os vários milhares de euros já foram pagos por um dos herdeiros, mas continuam sem chegar às mãos do outro. “O dinheiro está lá, mas não podemos pagar-lho porque temos de importar o processo para o programa das custas e não conseguimos por causa dos problemas informáticos”. Embora o dinheiro não pertença ao Estado, serão precisos meses até chegar às mãos do seu verdadeiro dono.
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FAMÍLIA SEPARADA
Houve tempos em que se faziam manchetes com a falta de enfermeiros em Portugal. Hoje fazem-se manchetes com os que deixam o País por não conseguirem trabalho. Mas há uma enfermeira de Loures que poderia ser manchete – por não conseguir emigrar. Pelo menos, não sem o filho. Divorciada e desempregada, decidiu procurar emprego na Arábia Saudita. Conseguiu um – e bem pago. Conseguiu ainda o acordo do ex-marido para o filho partir com ela rumo a terras tão longínquas. Só não podia imaginar que o sistema judicial seria o seu maior inimigo. “Falta a homologação do juiz, a dizer que tem a totalidade das responsabilidades parentais, para poder passar nas fronteiras”, relata Francisco Medeiros, membro da direção do Sindicato dos Funcionários Judiciais. “No tribunal, não encontram o processo de regulação parental e arrisca-se a perder a oportunidade de emprego que conseguiu a tanto custo porque não pode sair do País para se apresentar ao serviço. Esta mãe está em desespero”. Com a vida paralisada, tal como o sistema informático da justiça.
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PEDÓFILO À SOLTA
Tem processos contra ele em seis tribunais por todo o País, do Alentejo à Nazaré, passando por Lisboa, apresenta-se como animador sócio cultural e é repetente no abuso sexual de crianças entre os 10 e os 12 anos. A descrição seria já suficiente para pôr os técnicos de psicologia forense em alerta, mas os sinais de alarme soaram todos quando chegaram à parte do documento que dizia: “Continua a fazer voluntariado em instituições com crianças”. O Ministério Público queria o relatório pericial do suspeito de 30 anos, mas como esse documento leva algum tempo a elaborar os técnicos do sul do País decidiram alertar o juiz para a necessidade de impedir o homem de trabalhar com menores. Tal impedimento tem de ficar no processo. E é aí que a máquina pára. “Antes da crise do Citius, o oficial de justiça devolvia-nos a chamada dali a minutos. Agora precisaram de alguns dias para localizar o processo. Apesar do enorme risco de outras crianças serem abusadas, não pudemos fazer outra coisa senão esperar”, contou à VISÃO um psicólogo forense.