O relógio marca as 11 horas e, com o sol já a queimar, Amândio Martins, 29 anos, continua em passo acelerado carregando duas cestas penduradas nos braços, ao mesmo tempo que enxuga as gotas de suor, que teimam em escorrer-lhe pelo rosto. Há 12 anos que passa o verão a percorrer o areal da praia de Cabanas, em Tavira, vendendo as bolas sem creme, fabricadas por uma familiar na vila. Conhecida como Os bolinhas, a sua família dedica-se ao negócio há 50 anos, quando um tio trouxe a receita da Guiné e a ensinou aos irmãos.
Nesta praia, as licenças estão nas mãos d’Os bolinhas, mas, ainda assim, Amândio só entrou para a venda na praia quando foi substituir um familiar que falecera. Há dois anos que não arranja trabalho no inverno e, por isso, trata de amealhar os 40% que recebe de comissão sobre o que vende na praia entre junho e setembro. A crise também chegou aqui e, hoje, despacha uma média diária de 160 bolas, a €1,20 cada, muito longe das 250 de outros tempos. São dias inteiros a carregar perto de 12 quilos, com 50 bolas em cada cesto.
Numa pequena pausa, Amândio tira do bolso do calção branco uma carteira preta, onde guarda uma mão cheia de documentos.
Este ano, a Capitania lembrou-se de instituir uma licença mensal de atividade, em vez de ser por época, como anteriormente, e, a cada mês, tem um custo e uma cor diferentes.
Quando se aproxima o final do mês, lá tem de ir bater à porta da Capitania, para tratar da nova licença. E o custo é uma surpresa: oscila entre 25 e 30 euros. Além das regras da ASAE, os vendedores ambulantes de bolos nas praias têm de seguir as ordens avulsas da Capitania local. Foi assim que, há três anos, o então comandante em Tavira “pediu” aos vendedores de praia do concelho para depilarem os pelos dos braços e das pernas, em nome da higiene. Desta já se safaram, mas todos os anos esperam por novas regras impostas pela Capitania, como se não bastasse a complicada burocracia de outras entidades.
Para Kafka, com exaustão
A menos de 60 quilómetros, na praia da Falésia, em Vilamoura, Paulo Pereira, 51 anos, reabastece várias vezes ao dia as cestas, na sua carrinha frigorífica, altura em que ameniza o calor com uns tragos de água. Mas o verdadeiro descanso só chega depois do entardecer. “Há uns tempos, já tinha tudo vendido às cinco e meia”, conta este antigo pasteleiro.
No areal da Falésia, os pedidos sucedem-se. São os clientes fiéis desde que, há 15 anos, entrou no negócio. Não foi fácil começar. Existe uma longa lista de exigências a cumprir junto de entidades diferentes Câmara Municipal, ASAE, Delegado de Saúde, Fisco, Segurança Social. Os candidatos têm de se sujeitar a exames físicos e psicológicos, para provarem que estão aptos a passar longas horas debaixo do sol abrasador e a carregar pesos nos braços, dia após dia. Só com tudo tratado e emitido é que podem dirigir-se à Capitania local, para pedirem a licença de venda ambulante na praia. Aí, é preciso que exista uma vaga por preencher e que o comandante aprove todos os documentos.
Paulo Pereira distingue-se, na Falésia, da concorrência de vendedores brasileiros.
Veste umas calças e uma camisola brancas, e os cestos são de verga, “para deixar as bolas respirar”. Tem a liderança assegurada, o que já lhe valeu uns pneus da carrinha furados no parque de estacionamento. “O negócio está mais fraco, mas ainda vendo uma média de 250 bolas por dia”, conta. Há uns anos, eram 200 bolas quase de seguida, só nos toldos.
“Precisamos de ter as unhas arranjadas, o cabelo curto, a barba feita e os dentes em boas condições. O asseio e a apresentação são muito importantes”, aceita Paulo Pereira.
Do que não precisa é de uma multidão de entidades a dizerem-lhe o que já sabe.
COM OU SEM CREME?
O que a legislação impõe para os apetitosos bolos
Nas nossas praias, o famoso pregão da “bolinha com e sem creme” tem vindo a ser substituído por um curto “olhá bolinha”. Muitas vezes os vendedores justificam a ausência do creme com proibições da ASAE, mas na verdade as bolas podem ser vendidas recheadas, na praia, desde que cumpram diferentes requisitos de higiene e saúde pública. Os bolos têm de ser fabricados em estabelecimentos licenciados, os quais são com frequência inspecionados, incluindo o tipo de óleo e os ingredientes que usam. Depois, as bolas têm de ser transportadas e mantidas em locais frescos e refrigerados, para evitar qualquer tipo de contaminação ou deterioração. Cumpridos os requisitos, nada impede os vendedores de fazerem ressoar, no areal, o pregão mais tradicional.
Os 15 ditames da lei
É MUITÍSSIMO EXIGENTE A LISTA DE OBRIGAÇÕES QUE OS VENDEDORES DE BOLAS DE BERLIM NAS PRAIAS TÊM DE CUMPRIR, PARA OBTER A DESEJADA LICENÇA. CONFIRA