Verão de 1972. Alguns dias por semana três miúdas de 12 anos vão até ao Hospital Ortopédico de Sant’Ana, na Parede, e passam horas a ler histórias às crianças internadas, a fazer joguinhos que as distraiam da lonjura da família, a ajudá-las ao almoço. São Parreira achava um desperdício três meses e meio de férias gastos só em idas à praia e não lhe terá sido difícil convencer a filha do meio a estrear-se no voluntariado com as amigas.
“Foi a primeira vez que percebemos que podíamos fazer a diferença”, diz Teté Sequeira, “e sei que a experiência marcou muito a Bli.” Durante quatro anos, Bli está boa parte das manhãs de verão no Hospital de Sant’Ana. No tempo que sobra, tem encontro marcado, na praia de Santo Amaro, a dois minutos de casa, onde as famílias alugam sempre o mesmo toldo.
O dos Parreira é o n.° 7 do túnel velho, os pais nem precisam de ir, porque aparecem sempre umas “tias” a fazer que tomam conta do grupo de adolescentes.
Joga-se ao prego na areia com o mesmo entusiasmo com que se joga ao mata, em tempo de aulas. Entre os amigos que também são colegas, as conversas giram, invariavelmente, em torno dos professores do Liceu Nacional de Oeiras, até ao 25 de Abril uma escola pseudo-mista, com as raparigas no turno da manhã e os rapazes no da tarde e acessos por portões diferentes. Há nomes que não se hão de esquecer, como o de Miss Patrício, personagem sempre vestida de preto e de carrapito branco, que faz toda a gente tremer à sua passagem, ou do professor de Moral, o mítico padre Andrade, que um grupo de alunos ajuda a angariar dinheiro para uma nova paróquia.
Bli, petit-nom de Maria Isabel Torres Baptista Parreira antes de se tornar conhecida com o apelido do marido, o ex-jornalista Nuno Jonet, faz parte desse grupo. A família Parreira é muito católica, de catequese e missa semanal. Maria da Conceição e José Parreira apostam numa educação conservadora e responsabilizante para os cinco filhos, Madalena, Carmo, Isabel, Zé Maria e Miguel.
Será em casa que Bli vai descobrir que o voluntariado faz parte da vida. “Quando se tem uma família grande, aprende-se que é preciso contribuir para o bem comum.”
MENINA-PONTO-CRUZ
Quem frequenta os Parreira sabe que se estuda bem na mesa de camilha da sala e que a “tia” São, engenheira agrónoma como o marido, é uma ótima explicadora.
Em casa, manda ela, com a ajuda de Dida, a empregada mais do que fiel.
O “tio” Zé é muito presente mas pouco visível. Além de trabalhar na CUF, vai com frequência a Elvas tratar das propriedades da família.
Os Parreira tinham morado na cidade-fortaleza até 1966. Depois disso, passam umas semanas das férias grandes no Monte da Serra e Horta e as da Páscoa no Monte do Salvador. “Elvas, para mim, é a felicidade. Largueza. Brincar no campo.
Fumar às escondidas”, diz Bli. Fora das férias, em tribo no Baleal, sempre que pode é na Herdade da Granja que hoje recarrega as baterias.
Nos anos 70, a parte de leão das férias faz-se em Santo Amaro de Oeiras, onde os serões são quase sempre gastos num café-mais-matraquilhos, no vizinho restaurante Saisa. Mesmo quando se aventuram até Cascais, para um gelado no Santini, a festa está feita pelas onze da noite, a não ser quando há autorização para ir ao Club ou ao Rolls, duas das discotecas da moda.
O 25 de Abril apanha Bli com 14 anos e vontade de intervir. Não perde as RGA’s, anda de emblema ao peito. Gira, divertida e bem-disposta, destaca-se no grupo de amigos mas nem por isso é namoradeira.
Gosta de andar a cavalo (nessa altura, a equitação é um desporto escolar), mas prefere ficar em casa a fazer ponto cruz ou tricô. É séria com a vida e parece ter pressa de crescer. Briosa no liceu, no último ano ajuda a organizar a viagem de finalistas a Londres, onde assiste ao musical Jesus Christ Superstar, no West End.
Em 1977, inscreve-se na Universidade Católica; enquanto a maioria dos colegas marca passo no propedêutico, entra no curso de Economia, por sugestão dos testes psicotécnicos.
‘A MULHER DE NUNO JONET’
Longe do estereótipo da menina privilegiada da Linha, todos os dias Bli apanha o comboio das 10 para as 7 da manhã, vai a pé do Cais do Sodré ao Rossio e segue de metro rumo a Sete Rios, de onde faz novamente a pé o percurso até à faculdade.
Na Católica, é colega de Vítor Gaspar, hoje ministro das Finanças, e aluna de Cavaco Silva, atual Presidente da República.
Ao longo do curso, faz muitos amigos, “e um tão amigo”, dirá com graça, que há de casar com ele. Chama-se Nuno Maria Mariano de Carvalho Jonet e, tal como ela, revela-se muito bom aluno.
“Eram ambos certinhos, empenhados, superinteligentes e discretos”, recorda uma colega.
A dada altura, para não ter de pedir aos pais dinheiro para os alfinetes, trabalha umas horas no Chef, uma loja de comida pronta, na Lapa. Alegre e dinâmica, não se apaga mas passa rapidamente a ser conhecida como “a namorada do Nuno Jonet”, estatuto que se altera em setembro de 1982, quando se torna “a mulher do Nuno Jonet”.
Os papéis hão de inverter-se uns anos depois, já se sabe, mas é com esse rótulo que, no início de 1987, chega a Bruxelas, para onde Nuno é destacado como correspondente da agência Lusa a fim de acompanhar a adesão de Portugal à CEE. Antes disso, estreia-se no mercado do emprego, como adjunta da direção administrativo-financeira da Sociedade Portuguesa de Seguros. E gosta.
Em Bruxelas, os Jonet vão com os dois filhos ocupar a casa deixada vaga por Isabel Mota, que regressa a Lisboa para exercer o cargo de secretária de Estado do Planeamento e do Desenvolvimento Regional. Com ela, que vai passando por lá, e os outros portugueses que trabalham na Reper (Representação Permanente de Portugal Junto das Instituições Europeias) ou nas instâncias comunitárias, formam um grupo coeso que vive quase como num gueto. Chamam-lhe o “grupo de Bruxelas” e divertem-se todos muito.
Nuno Jonet há de trocar o jornalismo pelo cargo de conselheiro de imprensa da Reper, enquanto a mulher está uns meses na direção financeira da Assurances Générales de France e quase seis anos como tradutora, no Comité Económico e Social das Comunidades Europeias.
“Já então”, diz Isabel Mota, “a Bli revela uma característica muito clara de liderança.”
DISPARATADA E NADA ‘TIA’
Incapaz de estar parada, Bli desdobra-se em tantas atividades que os amigos ficam cansados só de a ouvir. Além das traduções e dos filhos, organiza tão bem jantares que cria uma empresa informal de catering em casa, com uma amiga também portuguesa. E ainda arranja tempo para andar a cavalo, aprender italiano e receber aulas de viola. “Tenho uma constante insatisfação, em termos de curiosidade “, diz, hoje. Há de, por exemplo, estudar grafologia, ao saber que tudo se reflete na letra.
Os amigos elogiam-lhe o sentido de humor, dizem-na engraçada e até disparatada “no bom sentido, claro”, em contraste evidente com a sua imagem pública.
“Às vezes põe-se no papel de uma ‘tia’ e com as mãos postas à Madre Teresa de Calcutá, coisa que não é!”, comenta o ex-ministro Armando Sevinate Pinto, que a conhece de Bruxelas. “A verdade é que todos sentimos muito orgulho nela.” Os mesmos amigos reconhecem-lhe a capacidade de surpreender. Não se espantam, por isso, quando Bli chega a Portugal em 1994 e, a pretexto de acompanhar a integração escolar dos filhos, que já eram três, se oferece como voluntária ao Banco Alimentar Contra a Fome, em vez de arranjar um trabalho a tempo inteiro. Em três meses, faz parte da direção, presidida pelo comandante José Vaz Pinto, sucedendo-lhe, em 2003, quando ele se afasta por razões de saúde.
Na “casa azul” de Alcântara revoluciona a distribuição e, dez anos depois de ali ter entrado pela primeira vez, funda a Entreajuda, um projeto paralelo que visa ajudar a melhorar a gestão e a organização das instituições de solidariedade social com que colaboram. Surgem, então, a bolsa do voluntariado, o banco de bens doados e o banco de equipamentos. Helena André, da Entreajuda, é só elogios: “Tem visão, é uma boa estratega e extremamente organizada mas criativa, por isso pensa out of the box.”
Sempre que quer criar uma coisa nova, Bli faz um casaquinho de bebé ou um tapete de Arraiolos e os projetos desenrolam-se. “Quando vou de férias, dizem-me: ‘Não faça nada!’, que é para eu não ter ideias.” Antes de lançar a Entreajuda, começou um tapete no Baleal.
UMA ESPÉCIE DE LUÍS XIV
Bli revê-se na frase “as pessoas desassossegadas não têm vidas sossegadas”.
Não leva para casa qualquer salário.
Nunca levou. Entende o seu papel no Banco Alimentar como uma missão da família cinco filhos incluídos. Uma missão impossível se o marido não fosse um alto quadro da ex-Tabaqueira, reconhece.
Garante que o seu apelo de ajudar surge da vontade de uniformizar, de tornar mais justo. “Tenho em mim um grande sentido de justiça, no sentido de redistribuição.
A minha luta é a luta contra o desperdício. Desperdício de tempo, de pessoas, de recursos. Esse é o motor da minha vida.” Diz isto e não se fica pelas palavras. Todas as manhãs vai buscar o excedente de bolos a uma pastelaria ao pé de sua casa montou uma escala com os filhos e amigos para quando não pode fazê-lo.
Aos 51 anos, já provou que sabe pedir, sabe congregar, sabe liderar. “Alguém deve fazer e assumir que pode fazer bem”, diz, sem falsas modéstias. “Nunca receio assumir riscos quando acredito nas minhas convicções. Ter alguma ousadia naquilo que se sonha é que nos levou além-mar.” E defeitos, Sra. Banco Alimentar, não existem? Se muitos lhe gabam a capacidade de trabalho desmedida, alguns lamentam a sua tendência centralizadora.
“É uma espécie de Luís XIV, uma rainha com a sua corte, mas uma corte que a respeita.
” Outros tantos dizem-na impulsiva, teimosa e dura. Neste último adjetivo, a própria concede: “Sou afetiva, mas também rigorosa. Quem trabalha aqui sabe que há regras. Por exemplo, nunca vai encontrar o pátio [do armazém] sujo.” Bli não hesita na autoavaliação, mas é ao deixar escapar um comentário sobre a filha mais nova, Isabel, de 11 anos, que mais se revela: “Ela é igual a mim: híperorganizada, orienta a vida de toda a gente. Eu aos 12 anos também já era tal e qual o que sou agora.”