No último fim de semana, enquanto o País se inteirava da suposta relevância do “extra queijo” e do pepperoni no condimentado processo judicial de José Sócrates, um dos ingredientes da transferência do preso 44 da cadeia de Évora para o número 33 de uma rua de Lisboa passara despercebido: na noite de sexta, 4, à chegada ao apartamento agora transformado em cela domiciliária, o antigo primeiro-ministro fora saudado por um agente da PSP, que lhe batera continência.
Ocorrida à porta da casa da Rua Abade Faria, religioso cuja prática da hipnose lhe trouxe farta clientela, a cena gerara sobressalto a mais de 160 quilómetros da capital. Em Mação, terra de nascença do juiz que mantém Sócrates preso, o insólito episódio e o combustível das manchetes foram rastilho de animadas conversas do dia seguinte no Café Central, onde a troca de galhardetes sobre a prisão do último chefe de Governo socialista ganha, por vezes, foros de Benfica-Sporting. Vários maçanicos, nome dado aos mais arreigados cidadãos desta vila da Beira Baixa, comentariam, já na presença do amigo Carlos Alexandre, entre tremoços e imperiais, aquele gesto mecânico, pavloviano, do polícia, “como se Sócrates fosse ainda o dono da bola”. Mas se algo o juiz deixou escapar a propósito do televisionado acontecimento será quase segredo de Justiça.
Acompanhado por familiares, Carlos Alexandre chegara a Mação naquela tarde de sábado, 5, no seu BMW 520 D, pelo qual paga 400 euros mensais, para cumprir um ritual anual: participar nas festas e na procissão em honra de Santa Maria. O juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, vulgo Ticão, só descansa ao sétimo dia e às vezes nem isso. Os sábados são, para ele, sagrados, mas não no sentido que se pensa: é nesse dia que intervala dos processos quentes e volumosos e se ocupa, noutras instâncias, dos casos típicos de “pilha-galinhas”, dos assaltos no elétrico 28, do pequeno tráfico de droga, da gente desafortunada e fora da linha, a quem, por vezes, dirige palavras de ânimo para a via-sacra da regeneração. Para o bem e para o mal, os seus gestos ou decisões prolongam-se na memória de quem com ele se cruza. “Eu não me esqueço de quem me faz bem, mas muito menos me esqueço de quem me faz mal”, terá desabafado José Sócrates a uma funcionária do tribunal, na noite em que foi preso.
No princípio era a injustiça
A última sexta, 4, até pelas circunstâncias já relatadas, foi mais uma maratona na vida deste homem de andar desajeitado e curvado, óculos grossos, avesso a mediatismos, que conta três décadas de magistratura e 54 anos feitos a 24 de março último. Em dias como aquele em que teve de fundamentar a saída “do engenheiro Pinto de Sousa” do Estabelecimento Prisional de Évora, Carlos Alexandre quase esquece as refeições. Nas buscas e outras diligências de norte a sul do País valem-lhe, por vezes, as buchas preparadas pela mulher, funcionária das Finanças.
Ela sabe o que tem vai para trinta anos: Floribela casou-se com o magistrado numa sexta-feira de 1986 e Carlos foi trabalhar na segunda-feira seguinte. “Para ele, a Justiça é um sacerdócio”, ouvem-na dizer. Ali mesmo, na casa de Mação, já o viu “engolido” por muralhas de volumes dos processos ou refugiar-se num silêncio de esteta. Ainda hoje, o “superjuiz” passa horas infindas a tentar perceber se escaparam nacos de filet-mignon sonoros aos puzzles sensíveis que tem em mãos.
Se não o obriga a voto de castidade, este tipo de sacerdócio encerra algo de franciscano. Não é sequer apenas o facto de Carlos Alexandre ser, à luz dos princípios dos frades menores, humilde e simples ou, como gosta de dizer aos do ofício, “um modesto filho de um carteiro e de uma tecelã, sem fortuna pessoal e sem parentes na magistratura e na advocacia”.
O preço da opção profissional está mesmo cotado em ações de tribunal. Pegue-se à sorte num dos mediáticos processos dos quais ele é guardião e o cenário vale para os outros: no “altar”, corruptela que adotou para se referir ao seu posto na sala de audiências, senta-se um juiz que ganha cerca de 10 euros à hora, sem recorrer a staff ou pagamento de horas extraordinárias, mas com rácios para cumprir. Do outro lado, exércitos das maiores sociedades de advogados, onde os 60 minutos se fazem pagar, no mínimo, a 300 euros. “Mete-te com os gajos do teu tamanho, pois precisas do dinheiro para comer”, mandaram dizer-lhe, por interposta pessoa, a propósito do Caso Portucale. “Como se viu, foi um conselho que não tomei em boa conta”, graceja, quando recorda o episódio entre amigos. “Consoante os casos, aumentam os inimigos. Esses, sim, são perenes” é mais uma das suas “alexandrices”.
O que o trouxe até aqui?
Carlos Alexandre sabe o que quer desde a 4.ª classe. Nessa altura, foi chamado a redigir um texto sobre o que gostaria de ser quando fosse grande. “Juiz”, escreveu.
Nascido em família católica, modesta e considerada, segundo varão de três filhos, o magistrado ainda ensaiou homílias caseiras, paramentado com um cobertor na cabeça, lendo passagens da Bíblia. Fugia-lhe o pé para a liturgia religiosa. Mas, afinal, havia outra.
Nas caminhadas para a escola primária passava pelo tribunal, que funcionava na Câmara, e deslumbrava-se. Carlos deixava-se ficar, pasmo de curiosidade, a observar o pano enorme de cor grená que, ao tempo, fazia de guarda-vento da improvisada sala de audiências. Logo ali, “fiquei com a ideia de que haveria sempre uma maneira de se fazer justiça”, relatou a conterrâneos.
Na memória, pelos seus sete anos, ficara-lhe o julgamento do alegado filho ilegítimo do abastado Francisco de Pina Falcão, de quem o avô materno, Francisco Simples, era cocheiro. Nas voltas da charrete, o fidalgo, de afetos e cumplicidades com o Integralismo Lusitano, tecia considerações menos abonatórias sobre a figura de Salazar.
O avô, ouvindo-as em sóbrio, reproduzia-as em bêbado. Foi preso, seis dias com os joelhos em areia, até se perceber que não falaria. “Na família, somos todos um bocado tortos”, ilustra um parente do juiz.
Do avô, o pequeno Carlos herdou o apelido “Lagarto”, que apesar do sportinguismo assumido, se deve ao facto de o familiar ser natural do Sardoal, cujo sardão está perpetuado na heráldica. O rapaz cresceu ainda a escutar as Conversas em Família, de Marcelo Caetano, fascinado pelo tom pausado do então Presidente do Conselho e o seu cadeirão de napa preta. Não se pense que outras figuras de antigamente não lhe deixaram ensinamentos para os dias que correm. “Vossa Excelência governará o País com o que está e com o que resta. Mas não mexa no Estado paralelo”, avisara o Presidente Carmona na tomada de posse de Salazar, segundo lhe contara um amigo da PSP.
A liturgia conquistara nele, entretanto, o caminho do Direito. Mas, em Mação, esse escrevia-se por linhas tortas. Não fora apenas o episódio pidesco do avô a remexer as entranhas de menino. A família viverá privações e humilhações que deixarão Carlos Alexandre com “lágrimas de sangue” embargadas até aos dias de hoje. Influenciado por um guarda-livros com ideias revolucionárias, o pai, José Alexandre, atravessará o calvário judicial da ditadura por ousar reivindicar o pagamento de sábados e domingos na fábrica de lanifícios Mirrado, a Famir, onde trabalhava também a mãe. Foi proibido de entrar nas instalações e acusado de não ser obediente à ordem vigente. “Já nessa altura, o meu pai acreditava nos tribunais”, acentua o magistrado, quando amigos o desafiam a tricotar lembranças.
José será carteiro de 1958 em diante, quase até ao fim da vida. Tecelã e cerzideira, a mãe, Narcisa, agravará os problemas asmáticos a trabalhar nos teares mecânicos da fábrica e reformar-se-á cedo. Ambos estiveram doentes por temporadas longas. A dada altura, o dinheiro, derretido em medicamentos, mal chegava para as necessidades.
Nos intervalos do estudo, do berlinde, do pião e do bilhar com amigos da mesma condição, Carlos Alexandre recorria à biblioteca itinerante da Gulbenkian, mas sobretudo ao Café Ideal, onde prateleiras com livros o desafiavam e via o Bonanza e filmes de Kung Fu. A veia literária é cultivada desde criança, hoje vertida para despachos ou motivo de revisitações. “Volto muito ao Eça e ao Camilo”, admite, em círculos mais íntimos. “Confronto-me todos os dias com upgrades, subprodutos e réplicas das personagens dos livros”, ironiza, gerando gargalhadas entre amigos.
Em Mação, a estratificação social colocara-o na contracapa da história. “Os senhores da terra organizavam bailes e festas num terrado e ao povo era apenas permitido ficar do lado de lá da praça, a assistir, sem tugir nem mugir”, explicam os mais antigos. A família será ainda sujeita a enxovalhos e destemperos do autoritário Anastácio Lalanda, professor e diretor do Colégio D. Pedro V, de Mação, antepassado de Paulo Lalanda de Castro, da Octapharma, ex-patrão de Sócrates e arguido na Operação Marquês.
Uma das humilhações, feita ao irmão João, marcará Carlos Alexandre para a vida, obrigado a frequentar a Telescola.
A mensalidade dava apenas para manter o irmão no colégio às ordens do professor Lalanda. Eram 200 escudos, um terço do orçamento lá de casa. Várias famílias, algumas de posses, atrasavam-se nos pagamentos, mas foi o filho mais velho do carteiro, a principal vítima. “Diz lá ao teu pai que se ele não vier pagar não te levo a exame”, ameaçou, dirigindo-se ao irmão João, diante dos colegas. O pai, de palavra honrada em Mação e mais além, só teve uma solução: prescindir da motoreta comprada com esforço e valer-se do empréstimo de um amigo. “Onde é que você foi buscar esse dinheiro?”, voltou à carga o professor Lalanda quando confrontado com o pagamento. João iria a exame. Tirou 19,7, a melhor nota do distrito.
Mais tarde seria Carlos Alexandre a colocar-se a jeito. Lalanda chamava-lhe “o menino bonito da Telescola”, duvidando da sua inteligência. Num exame de Português, tendo por tema o conto do galo
Tenório, de Miguel Torga, não lhe perdoou um deslize após uma vintena de perguntas. “Você tem a mania de que é esperto, mas já cá tive espertos como você e mandei-os embora.” Após o 25 de Abril de 1974, num gesto de aparente redenção, Lalanda ofereceu ao carteiro os eucaliptos para os andaimes da casa de família que estava em construção. “Nunca pediu desculpa do que nos fez, mas os eucaliptos cortou-os ele”, lembra, amiúde, o juiz.
Dar serventia a pedreiros
Carlos Alexandre estudou em Abrantes, dormindo num pequeno divã, de abrir e fechar, colocado no corredor da casa do irmão, funcionário das Finanças. Andou dois meses, nas férias de verão, a distribuir o correio na localidade ferroviária da Ortiga, na motoreta do pai onde também carregava a bucha. Assentou os 17 degraus maciços da capela de São Miguel e foi servente em várias obras, além de vigia florestal.
Em 1979, Carlos Alexandre rumou à capital. Esperava-o uma casa de hóspedes na Avenida Miguel Bombarda. Pelo número 100, 5.º, passaram gerações de maçanicos que haviam galgado 96 degraus às escuras, buscando guarida nos quartos humildes alugados por Catarina Angelina de Jesus. Um banho de água quente duas vezes por semana era o único luxo. Sem direito a isenção de propinas por causa da capitação (o pai era funcionário dos CTT), o jovem que viria a tornar-se o juiz mais mediático do País frequentará o curso contando os tostões.
Fazia a pé os três quilómetros que separam o Saldanha da Faculdade de Direito. Almoçava e jantava na Cantina Velha, quando não recorria aos tupperwares de arroz que a mãe lhe fazia chegar. Enquanto isso, de olhos marejados, via os filhos dos talhantes, dos médicos, dos industriais, todos com carro à porta e trajando blusões de cabedal que ele invejava, a esbanjarem o dinheiro das bolsas em jantares na Baixa, raparigas e noitadas no Jamaica, no Cais do Sodré. Carlos Alexandre não podia gastar mais de um quarto do orçamento familiar e isso implicava trabalhar no verão para poder comprar livros e sebentas.
Nesse tempo, torna-se um fervoroso seguidor da série italiana O Polvo, que relata a luta de um superpolícia italiano contra a Camorra, e cujos episódios ia ver à montra de uma loja de eletrodomésticos na Duque de Ávila. Quem hoje o visita em casa garante ser frequentador assíduo da produção francesa Engrenages, da dinamarquesa Borgen, e da norte-americana House of Cards, todas sobre os bastidores da política. Pelo meio, revê religiosamente as temporadas de La Piovra, “divertindo-se com a transposição das personagens para a realidade portuguesa atual”.
Pessoas próximas desconfiam que a sua “perda de virgindade” em relação aos assuntos de Estado terá acontecido na sequência da Operação Furacão, sem que alguma vez ele lhes tivesse explicado as razões. Segredo de Justiça oblige. Mas terá sido uma expressão utilizada no âmbito do Caso Portucale, envolvendo dirigentes do CDS, que mais luz fez na sua cabeça. Uma figura do partido usara a expressão Pacto da Granja, atualizando o acordo que consumou a bipolarização e partilha do poder entre regeneradores e progressistas no século XIX para se referir à necessidade de manter, na atualidade, o rotativismo sem mácula dos principais partidos. Para Carlos Alexandre, a leitura dos termos daquele pacto iluminavam a atualidade: parecia evidente que a democracia era, para algumas figuras detentoras dos cordelinhos, um mero instrumento, uma espécie de sociedade por quotas, onde se sentam e vão a jogo, em alternância, no Parlamento, nas empresas públicas e nos negócios.
Próximo do PS
O juiz do Ticão foi contemporâneo e apoiante de António Costa, o candidato do PS a primeiro-ministro, que integrou a lista vitoriosa à presidência da associação académica da faculdade. No livro de curso, os colegas tiraram então a pinta ao estudante Alexandre, em verso: a “política está-lhe na veia”, mas “juiz será por ideia”. Por isso, “estuda com afinco” e “ao amor correu o trinco”, escrevera-se. O seu caráter de “guerreiro enérgico e ambicioso”, o perfil “audaz e teimoso”, além de “corajoso”, davam-lhe, segundo os antigos companheiros de faculdade, “a frieza do político, perseverante e objetivo, e a sensibilidade do amigo”. Tudo rimava para o mesmo lado e o juiz admitiu, em conversas descontraídas com amigos que, naqueles anos, “talvez tivesse tido jeito para a política”. Se hoje a questão não se coloca, “também não se pode dizer desta água não beberei”, ouviram-no há tempos, com surpresa. O livro de curso regista ainda uma caricatura de Carlos Alexandre pelo traço eterno de Francisco Zambujal, com uma frase, em latim: “Toda a definição é perigosa em Direito.” Na página ao lado, repousa o verso que atesta uma devoção antiga, entretanto estilhaçada: “Alexandre colega amigo / De todos por igual / Mas desde já aviso / Do Soares não falem mal.” A admiração pelo líder histórico do PS está hoje reduzida a pó. “O juiz Carlos Alexandre que se cuide”, ameaçou Mário Soares, fervoroso defensor de José Sócrates. O magistrado não gostou e, nas suas conversas, passou a referir-se “ao senhor conselheiro de Estado Lopes Soares”.
O humor cáustico do juiz, “por vezes de ir às canelas”, custa a digerir. Quando inquiria Ricardo Salgado, que se queixara de lhe terem ficado com um relógio suíço de milhares de euros nas buscas à residência, Carlos Alexandre perguntou: “Que horas são?” O primeiro a responder foi o antigo patrão do BES. “Está a ver? Afinal, ninguém lhe tirou o relógio”, atirou o magistrado, segundo as nossas fontes.
Para se referir a figuras públicas, edifícios emblemáticos, mostrar desagrado ou despachar assuntos, cunhou algumas expressões que já se lhe colaram à pele e são conhecidas de vários intervenientes nos processos. O “cidadão Mamede” é Passos Coelho. “O Chanceler Disto Tudo” ou “Profeta Daniel” é o advogado Proença de Carvalho. O “Palácio da Praia” é a sede nacional do PS, no Rato, que pertenceu aos marqueses da Praia. “Formalidades de embarque” é quando pede para seguir a papelada que justificará a prisão de algum arguido. “Isso para mim é água destilada”, é quando avisa a pessoa que está a inquirir de que detesta ser enganado. José Sócrates, garantem as nossas fontes, terá sido das mais complexas personagens com que teve de lidar. Geraram-se vários momentos de tensão no tribunal, mas sem que o juiz perdesse as estribeiras.
A costela socialista de Carlos Alexandre é, porém, um segredo de polichinelo. Por isso, num primeiro momento, dirigentes e militantes do PS se revoltaram com o processo de Sócrates, julgando que puxaria aos seus. Não o conhecem. “Cumpro apenas o meu dever”, terá justificado, empertigando-se com insinuações de que é artífice de “vendettas” contra o partido. Com as incidências que se vão verificando, refinou o argumentário. “Estou a seguir o prudente e avisado conselho que me foi significado no seio da magistratura judicial quando me disseram que era preciso ter nervos de aço, algodão nos ouvidos e sangue de lagarto. Este último, no caso, nem sequer é um problema”, terá dito recentemente.
Os amigos não fazem tantos rodeios: “Se tivesse de prender os filhos, não hesitava um segundo”, atestam. Atribuem-lhe um ideário próximo do centro-esquerda que resvala para extremismos quando enfrenta os poderosos e recolhe ao padrão institucional e moldura conservadora quando lhe sugerem, para o picar, que “isto só lá vai à bomba”.
No princípio da década de 1980, influenciado pelo histórico socialista e maçon António Reis, aceitou integrar uma lista à Assembleia Municipal de Mação. Ao seu lado teve, entre outros, o primo Vítor Alexandre, ex-diretor-adjunto da Polícia Judiciária, e hoje a sua sombra, sobretudo quando se trata de fazer diligências pelo País fora a pretexto de casos em andamento ou recolher informações de pessoas que nele confiam. Se a experiência autárquica não foi para recordar, pelo menos de algo valeu: foi graças à intervenção destes e outros homens junto do então governante Rui Machete que Mação conquistou o seu tribunal, entretanto encerrado pela ministra Paula Teixeira da Cruz e hoje em avançado estado de degradação.
Eu contra o mundo?
Atores, adolescentes, pequenos, médios e grandes empresários, terroristas, traficantes, militares, políticos, banqueiros, dirigentes desportivos, magistrados, espiões, advogados, angolanos, brasileiros, chineses, suíços… Poderíamos gastar parágrafos sem conta a descrever as áreas da sociedade e protagonistas em relação aos quais o juiz Carlos Alexandre guarda segredos, documentos e milhares de horas de escutas confidenciais. A passagem por vários tribunais ao longo de décadas, as decisões tomadas em áreas de grande complexidade e que atravessam fronteiras, o conhecimento da realidade, dos crimes, dos pecados mais comezinhos de milhares de desconhecidos e de centenas de figuras públicas dão-lhe um poder sem limites e a garantia de que ele, por si só, constitui uma espécie de cofre forte ou bomba-relógio do regime. “Não tenho um poder tão grande assim”, responde, quando, em cavaqueiras, lhe perguntam se, querendo, poderia reduzir a pó os alicerces da democracia. “Digamos que há alguns episódios circunstâncias que, bem tricotados, poderiam dar cabo de algumas carreiras, apenas isso”, respondeu, com leve ironia, em certa ocasião, na presença de pessoas de confiança.
Temido, já lhe chamaram “inquisidor da Idade Média”, “justiceiro”, “arrogante” e um sem-número de epítetos que visam desqualificá-lo ou, pelo menos, lançar a dúvida sobre as suas decisões. Porém, na sequência de uma inspeção extraordinária à sua atividade, entre 2008 e 2013, e realizada, a seu pedido, pelo Conselho Superior de Magistratura, Carlos Alexandre recebeu a avaliação global de “muito bom”, tendo a inspetora acrescentado: “Na ponderação conjugada do tempo de serviço, do específico grau de dificuldade e exigibilidade técnico-jurídica, dos resultados obtidos em termos de produtividade, do nível intelectual e cultura jurídica, da personalidade que revela adequada ao desempenho da judicatura”, concluiu-se que o desempenho do juiz é “elevadamente meritório ao longo da carreira”.
Mesmo assim, em algumas das grandes sociedades de advogados, a sua fama é escarnecida. Em buscas e apreensões, advogados poderosos já o convidaram para almoços breves, onde a delicadeza deu lugar a parábolas que o comparavam a diretores da PIDE e insinuavam que ele não passava de um grãozinho na engrenagem que funciona com os mesmos traficantes de mecanismos paralelos de sempre. “Tenho baixa tolerância para os comportamentos borderline de alguns escritórios e o apropriar dos bens públicos e recursos de Estado”, reage em privado, amiúde, irritado com expressões tipo “embelezamento de balanço” praticado em instituições financeiras de grande calado. “Gosto de levar a carta a Garcia. Mas ainda nesta encarnação, se for possível”, esgrime, nesses cenários reservados, obcecado em cumprir a sua missão. Aqui e ali, vai também lembrando, a propósito, que na última estrofe de Os Lusíadas mora “a tão portuguesa inveja”. Alguns meios judiciais gostariam de vê-lo anestesiado, mudado de poiso, talvez candidato a um lugar no Tribunal da Relação. A intriga de corredor e de alcatifa deixa-o com os nervos em franja. “Sou um simples e perene juiz de província”, costuma dizer, em privado. “Não tenho estudos, não sei comer de faca e garfo, nem estou habituado a comer certos pratos”, defende-se, recusando-se a entrar “no comboio automático para a inércia” onde, supostamente, “alguns veneráveis” e a designada “púrpura cardinalícia” gostariam de o meter.
Tem a seu favor, desde logo, o facto de ter trabalhado em circunstâncias difíceis, por vezes em condições limitadas de saúde, a desoras e sem meios: telemóvel com plafond reduzido, gabinetes demasiado permeáveis a curiosos, meios técnicos da Idade da Pedra. Nos tribunais por onde passou, mandou pôr átrios a brilhar e lutou para pavimentar logradouros. “E no gabinete andava sempre com o pano do pó atrás”, comenta quem com ele conviveu. Infoexcluído voluntário, é um defensor da videogravação das inquirições em tribunal, projeto-piloto que vem experimentando no Ticão.
A segurança é uma das preocupações de quem o admira. Preocupação diária. Já lhe envenenaram dois cães, que foi enterrar a Mação em terrenos seus. Em 2007, arrombaram-lhe a casa, tendo os assaltantes levado um relógio de estimação, peças de ouro de valor sentimental, e deixado uma arma em cima da fotografia de um dos filhos. Guarda papéis para defesa pessoal, cópias de gravações de todos os interrogatórios. É algo paranóico com escutas e terá razões para isso. Do lado de lá da linha, ouvem-no por vezes numa linguagem em código quase indecifrável que ele terá explicado a um agente de segurança nestes moldes: “Faço telefonemas por hieróglifos por causa das ondas hertzianas.” E diz-se que apanhou o SIS de ponta.
Tem segurança pessoal desde março de 2005, mas recusa-a em assuntos de natureza particular, incluindo as deslocações a Mação. Figuras algo sinistras geraram a desconfiança quando desataram a fazer perguntas pela vila sobre o juiz numa época de manchetes gordas nos jornais, tentando descobrir “podres” sobre ele. “Não adianta, o Carlos fica a saber cinco minutos depois”, refere um elemento da “confraria dos amigos”. “No meu caso, ninguém vem atrás dos meus cunhados ou irmãos como fonte seja do que for”, ouviram-no desabafar, rangendo os dentes.
A vila continua a ser o seu lugar de eleição para recarregar baterias. E fazer a purificação do quotidiano de fadigas. Noutros tempos, também Marinho Pinto, que o juiz processou por difamação, se deu bem com os ares de Mação, onde deu aulas. Na vila, estudou também a famosa aluna 427, mais conhecida no País por Maria Luís Albuquerque. A ministra das Finanças era de tirar 5 a tudo, exceto a Educação Física.
“Não me dou com a corte”, terá explicado Carlos Alexandre a uma mesa-rodeada de amigos e familiares, “mas por vezes”, justificou, “tenho de recorrer à corte para me respaldar e não ficar sozinho em campo aberto”. O outro polo de afetividade de Carlos Alexandre é o Alandroal, terra da mulher, cuja família possui casas e propriedades com inquilinos de respeito: sim, as senhorias das sedes do PS e PCP no concelho alentejano são a esposa e uma cunhada.
Na sequência de cartas anónimas enviadas ao Ministério Público e que visaram a sua seriedade, o magistrado pelou-se por fazer uma espécie de striptease da sua vida pessoal e património junto da Procuradoria-Geral da República. Inquirido a 6 de março deste ano, declarou ser proprietário de uma vivenda em Linda-a-Velha, cujo empréstimo hipotecário de 400 mil euros “vem pagando com dificuldades” através de uma prestação mensal de dois mil euros. Há dez anos, adquiriu, também com empréstimo na Caixa Geral de Depósitos, um apartamento na praia do Carvoeiro, no Algarve, que lhe custa 600 euros mensais. Carlos e a mulher são donos de duas pequenas casas em ruínas no Alandroal, e de uma fração de uma moradia dos pais do juiz, em Mação. Desde os 18 anos a viver em Lisboa, o magistrado trabalhou, sucessivamente, no Ministério das Finanças, no Centro de Estudos Judiciários e na magistratura desde 1 de outubro de 1985. Atropelada em novembro de 2002, a mulher receberia uma indemnização de 75 mil euros pelo acidente. Na altura das declarações, que a VISÃO consultou, o rendimento mensal do casal cifrava-se em 8 mil euros mensais, provenientes dos respetivos vencimentos e da reforma da sogra do magistrado. “O depoente não tem cavalos nem quintas”, esclareceu então Carlos Alexandre, dizendo-se disponível para fornecer toda a documentação relativa ao seu património, e rematando: “Não se escusa a dizer que, pretendendo dar uma volta à sua vida, quando daqui a uma década, se lá chegar, atingir a reforma”, se meteu “em mais uma obra de edificação” nos terrenos dos pais, para construir uma moradia, para a qual contraiu um empréstimo de 100 mil euros, “intentando aí viver a sua velhice, se necessário, alienando o que for preciso”.
Apesar das diversas insistências da VISÃO junto do magistrado, durante vários dias, no sentido de se disponibilizar para esclarecer aspetos da sua biografia e matérias desta reportagem, Carlos Alexandre recusou sempre, ainda que amavelmente, fazê-lo. “Compreendo o vosso trabalho, mas, como já devem saber, sou avesso a expor em público as minhas opiniões e juízos sobre qualquer matéria, até por dever de ofício”, justificou.
Diluído na multidão
Repousa a tarde de domingo em Mação. Na Igreja Matriz, abarrotada de fiéis, o pigarrear e os sussurros ecoam e prenunciam o início da missa solene em honra de Santa Maria. Carlos Alexandre chega de mão dada com a mulher. Acena a um conhecido, atravessa o átrio e entra no templo.
O juiz vai sentar-se numa escadaria interior. Repousa a cabeça nas mãos e cerra os olhos, em oração. O organista de serviço às cerimónias e sonoridades celestiais é o amigo António Colaço, filho adotivo da terra, antigo assessor do grupo parlamentar do PS. Na homília, o padre Amândio Mateus pede que os ouvidos dos crentes não estejam forrados “com notinhas de euro” e saibam ouvir outras coisas, “que não as daqueles que falam mais alto e mais vezes. Que as nossas palavras valham quanto pesam”, exorta.
Às cinco da tarde, a multidão sai para o largo e aguarda o andor. O magistrado fica à conversa com amigos. Os poucos que dele se aproximam cumprimentam com respeito, sem salamaleques ou mesuras. Entoam vozes de mulheres, de adufes pela mão, que chegam aos céus. Duas crianças vestidas de anjinhos vão na frente, marcando o compasso e deixando ao caminho pétalas de flores. Mais atrás, cabisbaixo, compenetrado e de mãos atrás das costas, Carlos Alexandre segue o passo lento e dilui-se na procissão.
Artigo publicado na Revista VISÃO nº 1175 de 10 de setembro de 2015